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Descriminalização parcial do aborto

O objetivo deste modesto trabalho, não é o de descer ao aprofundamento que o tema suscita e comporta, mas o de apontar de forma simples e sucinta os motivos, a seguir alinhavados, que nos levam à convicção de que a descriminalização do aborto até do terceiro mês de gestação (12 semanas), via judicial, constitui grave equívoco jurídico.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Atualizado em 11 de outubro de 2019 13:33

"É a vida humana que dá existência ao direito; não é o direito que dá existência à vida humana, em torno da qual gravita todo o ordenamento jurídico".

O crime de aborto está definido nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

O artigo 124 incrimina a conduta da gestante, consistente em "provocar aborto em si mesma" ou "consentir que outrem lho provoque o aborto", sancionada com pena de detenção de 1 a 3 anos; crime próprio, no sentido de que o sujeito ativo só pode ser gestante, embora admissível a participação, nos termos do artigo 29 do CP.

Tal crime, considerada a pena mínima em abstrato (1 ano de detenção) admite a suspensão condicional do processo (sursis processual), nos termos do artigo 89 da lei 9.099/95, desde que a autora do fato (gestante) não esteja sendo processada ou não tenha sido condenada por outro crime, e presentes os demais requisitos que autorizam a suspensão condicional da pena (artigo 77 do CP); vale dizer, oferecida a denúncia, e presentes tais requisitos, o MP proporá à acusada a suspensão condicional do processo pelo prazo de 2 a 4 anos, mediante as seguintes condições: a) proibição de frequentar determinados lugares; b) proibição de ausentarse da comarca sem autorização do juiz; c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades (§ 1º)1.

A acusada, acompanhada, obrigatoriamente, de defensor, na audiência previamente designada com essa finalidade, poderá livremente aceitar ou não o benefício que lhe é proposto.

Aceita a proposta e homologada pelo juiz, decorrido o tempo da suspensão e cumpridas as condições, será declarada extinta a punibilidade da acusada e o processo arquivado, sem julgamento do mérito (§ 5º); não haverá nesse caso sentença condenatória, nem absolutória; a acusada sequer será julgada pelo fato criminoso cometido.

O processo só terá seguimento com o julgamento do mérito se a acusada não aceitar o benefício da suspensão condicional do processo ou não preencher os requisitos legais para sua obtenção, ou, ainda, der causa à revogação do benefício concedido.

 

Já com relação ao terceiro que provoca o aborto na gestante a lei penal é um pouco mais rigorosa.

O CP sanciona com a pena de 1 a 4 anos de reclusão a conduta do terceiro que "Provocar aborto com o consentimento da gestante" (artigo 126) e com a pena de reclusão de 3 a 10 anos a conduta de quem "Provocar aborto, sem o consentimento da gestante" (artigo 125).

No tocante ao crime de aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (artigo 126 do CP - pena mínima de 1 ano de reclusão), também é possível a suspensão condicional do processo (sursis processual), consoante acima explicitado; quanto ao crime de aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante - fato de maior gravidade objetiva, por violar não só o direito à vida do nascituro, mas também direito ou interesse da gestante (artigo 125 do CP- pena mínima de 3 anos de reclusão) - não é possível o benefício do sursis processual, salvo no caso de crime tentado, e desde que não alcançado pela lei 11.340/06.2

O crime de aborto, em qualquer de suas formas, somente é imputável ao agente a título de dolo - direto ou eventual (não existe crime de aborto culposo), e a objetividade jurídica é a vida3. O crime de aborto está inserido dentro do CP no capítulo dos "crimes contra a vida", que abre o título dos "crimes contra a pessoa".

O CP permite o aborto, excluindo a ilicitude do fato, em duas situações: a) o aborto provocado por médico, quando necessário para salvar a vida da gestante (aborto necessário)4; e, b) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, do seu representante legal (aborto ético, sentimental ou humanitário)5. A essas duas hipóteses de exclusão da ilicitude e, consequentemente, do crime, deve-se acrescentar uma terceira: a anencefalia, reconhecida pelo STF sob a consideração de que o feto anencefálico é natimorto6.

Nas duas últimas hipóteses permissivas (letras "b" e "c") o procedimento de interrupção da gravidez também só pode ser realizado por médico. Na primeira hipótese (letra "a") é até possível que o abortamento seja provocado por qualquer pessoa, mas desde que haja perigo de vida atual para a gestante, amoldando-se a situação ao formato do estado de necessidade geral previsto no artigo 24 do CP.

Em 29/11/16, no julgamento do HC 124.306/RJ, em v. acórdão relatado pelo ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, a primeira turma do STF, por maioria de votos, não conheceu do pedido, mas concederam a ordem de ofício para descriminalizar o aborto até o terceiro mês de gestação (votos vencedores dos ministros LUÍS ROBERTO BARROSO, ROSA WEBER e EDSON FACHIN).

A ementa do acórdão está assim redigida:

"DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS, PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE.

ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1.O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos.

2.Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação.

3.Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do CP - que tipificam o crime de aborto - para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.

4.A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher necessária.

5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.

6.A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

7.Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréu".

Depois, em 15/3/17, o partido socialismo e liberdade (P-SOL) ingressou no STF com a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 442 - Distrito Federal) postulando a declaração judicial da "não recepção, pela ordem constitucional vigente, dos artigos 124 e 126 do CP para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas (...) de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como a garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento".

Os fundamentos do pedido são basicamente os mesmos que serviram para concessão da ordem no HC 124.306/RJ pela primeira turma do STF.

Como o julgamento da ADPF 442 - Distrito Federal, pelo, será, obviamente, jurídico (e não político), a questão a ser dirimida é se a criminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez (ou 12 semanas de gestação) pelo CP (artigos 124 e 126) viola ou não a ordem constitucional em vigor.

O objetivo deste modesto trabalho, não é o de descer ao aprofundamento que o tema suscita e comporta, mas o de apontar de forma simples e sucinta os motivos, a seguir alinhavados, que nos levam à convicção de que a descriminalização do aborto até do terceiro mês de gestação (12 semanas), via judicial, constitui grave equívoco jurídico. Não se trata também de defender a reprovação moral do aborto por grupos religiosos e outros seguimentos da sociedade e tampouco de criminalizar os que defendem posicionamento diverso, mas de defender a ordem jurídica em vigor.

  • Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.

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1 STJ: Quinta turma, relator min. Felix Fischer, RHC 7379/RS, DJ 24/8/98, p. 91: "I - O fato de ser, o auto-aborto, crime doloso contra a vida não é, por si só, óbice para a aplicação da suspensão prevista no art. 89 da lei 9.099/95".

2 STJ: Quinta turma, relator min. Felix Fischer, DJe 19/9/18, AgRg no RHC 94764/GO.

3 José Frederico Marques. Tratado de Direito Penal. 1ª edição atualizada. Campinas: Editora MillenniuM, 1999, IV/197-199; Nelson Hungria e Heleno Fragoso. Comentários ao Código Penal. 5ª edição. Rio: Editora Forense, 1979, V/285; Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. 9ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, II/137.

4 Código Penal, art. 128, I.

5 Código Penal, art. 128, II.

6 STF, ADPF 54/DF.

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*Odival Cicote é membro do MPSP desde 1979, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie e professor de Direito Penal da UNIP desde 1998.

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