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É possível, em tese, imputar o homicídio doloso no caso Brumadinho? Breves comentários sobre o elemento subjetivo

Rodrigo Pardal

Se há fiscalização que demonstra o enorme risco da operação que se potencializa por fatores específicos, o modelo ultrapassado e desaconselhado de barragem utilizada, a dispensa de um licenciamento mais acautelador, dividido em três etapas e a não ocorrência de estudo e relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA), a autorização para que se dê a exploração, desde que feita por quem tenha conhecimento e tenha tomado ciência destas peculiaridades não pode vir acompanhada de simples culpa.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Atualizado em 19 de fevereiro de 2019 13:25

O evento ocorrido em Brumadinho, que vitimou diversas pessoas traz consigo inúmeras consequências jurídicas das mais diversas. No âmbito penal a discussão não é menos farta. Não obstante a responsabilidade penal ambiental que se pode imputar às pessoas física e jurídica1, cogita-se da responsabilidade pelas mortes ocorridas, cuja imputação apenas pode se dirigir às pessoas físicas. Neste pequeno esboço tratarei apenas da discussão acerca do elemento subjetivo dolo em eventual delito de homicídio imputado.

Cediça a importância da fiscalização como elemento de efetivação do princípio da prevenção sendo relevante pontuar até que ponto aspectos técnicos obtidos a partir de estudo de impacto ambiental podem influenciar na análise do aspecto subjetivo no âmbito penal.

A imputação de delitos praticados por pessoas físicas no bojo de grandes corporações envolve complexidades e releituras dogmáticas das mais diversas para as quais a teoria do crime não foi concebida originariamente. Ora, como se imputar o dolo de homicídio, em qualquer modalidade que seja, a um sujeito que em uma estrutura hierárquica complexa apenas assinou um laudo ou autorizou por escrito a construção de uma barragem sem nunca ter tido contato com as vítimas ou se dirigido ao local?

A necessidade de dar uma resposta rápida, atender a um processo penal midiático e selecionar bodes expiatórios não deve atropelar as construções teóricas em nome de uma suposta justiça ou de uma "caça às bruxas". Daí a necessidade de se estabelecer um critério racional, coerente, mormente quando se trata de comprovação de elemento subjetivo, que não pode se presumir em absoluto, sob pena de violação do princípio da culpabilidade, que veda a responsabilidade objetiva em Direito Penal.

Segundo orientação majoritária, o dolo é conceituado como conhecimento e vontade de realizar as elementares do fato típico. É a chamada concepção dualista de dolo, pois para seu preenchimento são necessários dois elementos: o cognitivo (conhecimento) e o volitivo (vontade). Adoto este conceito no presente artigo.

O aspecto mais intrincado envolve a comprovação da vontade. Não se pode partir do fetiche de que o elemento volitivo busca obter e comprovar exatamente a vontade do sujeito em seu sentido psicológico, interno, psíquico. Tal jamais será comprovável empiricamente, pois está na mente do agente. Não se pode exigir a comprovação do conteúdo do pensamento!

Em verdade a comprovação do elemento subjetivo é retirada de elementos externos, objetivos, a partir dos quais se extrai, se intui, o aspecto subjetivo. Portanto, a comprovação do elemento subjetivo necessariamente se dá de maneira indireta, por indução, ou seja, parte-se de dados específicos para se obter a noção mais ampla relativa à existência ou não do elemento subjetivo. Exemplifico de maneira bastante singela: se um sujeito efetua disparos em direção a alguém e o faz de perto, mirando até atingir região letal, a partir destes atos externos empiricamente verificáveis extraio que havia animus necandi, pois o agente estava a curta distância, tinha pleno domínio da arma de fogo, podendo apontar com precisão e se optou por mirar em região vital se depreende que buscava ceifar a vida da vítima.

Conclui-se isto, pois quem mira em região letal sabe, segundo as regras de experiência obtidas da vida cotidiana (id quod plerumque accidit) que o resultado morte é extremamente provável e tais dados externos permitem que se conclua que o agente "queria" matar. Verifica-se desde já que de interno, subjetivo nada há puramente no dolo. Em verdade imputa-se a partir de referenciais empírico-normativos para, posteriormente se chegar a um suposto elemento interno que jamais se comprovará peremptoriamente. Portanto, a comprovação e análise do dolo sempre levará em conta referenciais objetivos sem os quais nunca será comprovado. Mesmo o exemplo mencionado cuja prova é simples e rotineiramente obtida depende de uma análise objetiva.

No entanto, a questão se complica quando há suposto conflito entre o que se afere dos indicadores externos e do suposto "elemento subjetivo". Se o atirador jura que não almejava matar a vítima, em que pese os dados externos mencionados, restaria afastado o dolo? Não, basicamente por dois motivos. O primeiro motivo é o de que há em verdade um falso conflito entre o objetivo e o subjetivo, pois quando o atirador verbaliza sua intenção, em verdade é a partir de sua palavra, um dado objetivo, que novamente se depreende o "subjetivo".  Portanto, há aqui dois elementos objetivos colidentes, de um lado o modus operandi que permite concluir pela existência de um animus necandi e, de outro lado, um mero discurso em sentido contrário. Ocorre que o discurso é contra fático e não encontra respaldo na regra do id quod plerumque accidit, pois quem, tendo controle sobre a arma, mira e atira em região legal, usualmente quer matar. A contraprova deve ser feita a partir de outra regra de experiência que ofereça uma comunicação em sentido contrário, crível a ponto de desconstruir a evidência empírica já posta. Portanto, a simples verbalização em sentido contrário ao dolo não o afasta quando é evidentemente contra-fática.

Estabelecidas essas premissas para se aferir o dolo, para as quais me utilizei de um exemplo simples, momento é de aplicá-las a supostas peculiaridades que podem surgir durante a apuração do caso de Brumadinho.

Se há fiscalização que demonstra o enorme risco da operação que se potencializa por fatores específicos, o modelo ultrapassado e desaconselhado de barragem utilizada, a dispensa de um licenciamento mais acautelador, dividido em três etapas e a não ocorrência de estudo e relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA), a autorização para que se dê a exploração, desde que feita por quem tenha conhecimento e tenha tomado ciência destas peculiaridades não pode vir acompanhada de simples culpa.

Caso as regras de experiência e os dados empíricos tenham indicado fortemente a probabilidade de mortes ocorrerem em razão de desastres envolvendo a barragem a simples crença de que nada ocorreria é extremamente contra-fática, irracional, é mero ato de fé sem qualquer base empírica. Atos de fé, sem qualquer base empírica e totalmente contra-fáticos, não podem sugerir apenas culpa se os dados objetivos são contundentes e demonstram que, agindo desta forma, segundo as regras de experiência (id quod plerumque accidit), mortes têm alta probabilidade de ocorrência. Voltando ao exemplo singelo, é irracional sustentar que não queria matar se foram efetuados à curta distância três disparos, dois na cabeça e um no coração.

Não se está aqui a concluir o que deve ser decidido nos autos do processo-crime que surgirá a partir do ocorrido em Brumadinho, mas apenas se buscou fornecer subsídios dogmáticos para a discussão envolvendo o elemento subjetivo, já que a busca por responsáveis não deve jamais subverter a dogmática.

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1 Importante ressaltar que a responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica independe da que se imputa à pessoa física, já que atualmente tanto o STF, quanto o STJ não adotam a teoria da dupla imputação que só autoriza a responsabilidade penal da pessoa jurídica atrelada a da pessoa física.

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*Rodrigo Pardal é professor de Direito Penal do Damásio Educacional e assistente jurídico do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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