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Sairemos melhores do que entramos

O Brasil vive um momento de refundação. Há uma Velha Ordem sendo empurrada para a margem da história e uma Nova Ordem chegando como luz ao final da madrugada.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Atualizado em 26 de fevereiro de 2019 16:58

I. A resiliência das instituições

Um curso de Direito Constitucional, mais ainda em um país em transformação como o Brasil, é um trabalho em progresso permanente. Para quem gosta de mitologia grega, quase um trabalho de Sísifo, personagem que foi condenado a empurrar uma pedra morro acima. Cada vez que se aproximava do topo, a pedra rolava para baixo, obrigando-o a recomeçar tudo de novo.

 

Não têm sido tempos fáceis no Brasil. O trauma do impeachment, o avanço nas investigações sobre corrupção, uma recessão persistente e eleições presidenciais extremamente polarizadas têm pressionado as instituições constitucionais até o seu limite. A parte boa é que elas têm resistido bem, assegurando o mais longo período de estabilidade democrática da história brasileira. Animo-me a compartilhar com o leitor algumas reflexões sobre o momento brasileiro, procurando enfrentar a onda de negatividade trazida pelas agruras de um contexto extremamente desfavorável.

 

II. Uma breve reflexão sobre o momento brasileiro

 

Para se ter uma ideia da trajetória que percorremos como país e como consciência cívica, gosto de lembrar as preocupações que me afligiam na segunda metade dos anos 70 do século passado, quando ingressei na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Eram elas: (i) como acabar com a tortura, que manchava de desonra a história do país; (ii) como acabar com a censura, que limitava a capacidade crítica das pessoas; (iii) como criar instituições democráticas, em um país e em um continente de tradição de quebras da legalidade constitucional. E, apesar de as pessoas estarem impressionadas com a fotografia sombria e devastadora do momento atual, gostaria de lembrar, não sem uma ponta de orgulho, que a nossa geração derrotou a ditadura militar, a hiper-inflação e obteve resultados expressivos sobre a pobreza extrema. É preciso não se deixar hipnotizar pelo que aconteceu de ruim: as conquistas desses trinta anos foram muito expressivas. Temos andado na direção certa, ainda quando não na velocidade desejada.

 

Por evidente, não me passa despercebido o fato de que o país foi alcançado, já faz alguns anos, por uma tempestade perfeita. Há uma crise política, cujo ponto culminante foi o impeachment de 2016, que gerou ressentimento, polarização e déficit de representatividade democrática. Há uma crise econômica, decorrente, em larga medida, do descontrole fiscal, que gerou recessão, desemprego e desinvestimento. Há uma crise ética, que se evidenciou com o Mensalão e explodiu com a Operação Lava Jato, reveladora de um país feio e desonesto. O modo de se fazer política e de se fazerem negócios no Brasil envolve, numa extensão e profundidade abismantes, desvios de dinheiro público, propinas e achaques. A fotografia do momento atual faz tudo parecer sombrio, depressivo, decadente.

 

Mas, na verdade, não é assim. Sem fugir do lugar comum, crises são pontos de partida dos grandes projetos de transformação. Ao descobrir-se aquém do seu destino, devastado por uma corrupção desmoralizante, por um setor público contaminado pela mediocridade e um setor privado repleto de vícios civilizatórios, a sociedade brasileira, entre perplexa, indignada e cheia de autocrítica, vai desenvolvendo uma nova consciência. O Brasil vive um momento de refundação. Há uma Velha Ordem sendo empurrada para a margem da história e uma Nova Ordem chegando como luz ao final da madrugada. O dia começa a nascer quando a noite é mais profunda. A claridade, porém, não é imediata. Os resultados não são para semana que vem ou para as próximas eleições. Trata-se de um processo histórico que chega com atraso, mas não tarde demais, de elevação da ética pública e da ética privada no país. Não se devem ter ilusões: é trabalho para mais de uma geração. Assim é o ciclo da vida: plantam-se árvores para a posteridade, para que outros possam colher os frutos.

 

III. Iluminismo, idealismo e pragmatismo

 

O processo de transformação envolve um choque de iluminismo, idealismo e pragmatismo, conceitos bem distintos que, por vezes, podem ser antagônicos e, outras vezes - como é o caso brasileiro - complementares. Historicamente, Iluminismo designa um abrangente movimento filosófico que revolucionou o mundo das ideias ao longo do século XVIII. Foi o ponto culminante de um ciclo iniciado com o Renascimento, no século XIV, e que teve como marcos a Reforma Protestante, a formação dos Estados nacionais, a chegada dos europeus à América e a Revolução Científica. Os ideais do Iluminismo são, desde então, razão, ciência, humanismo e progresso1. Trata-se de uma mudança de paradigma civilizatório, pelo qual a razão humanista passa para o centro do sistema de pensamento, de onde são afastados dogmas metafísicos e entronizados valores seculares, como limitação do poder, liberdade individual e igualdade entre as pessoas. A razão científica, por sua vez, fomenta o conhecimento ("Ouse saber"2), afastando preconceitos e superstições. Iluminismo é um antídoto contra muitos dos males do nosso tempo: autoritarismo, fanatismo religioso, tribalismo, radicalismo e intolerância política, entre outros. Sob sua influência, mudou-se o patamar da condição humana e da convivência entre pessoas e entre os povos. Em relação a isso, cabe uma advertência importante: parte das nossas aflições contemporâneas não se devem a sinais de decadência, mas sim ao fato de que nossos padrões de exigência se elevaram.

 

Idealismo significa a capacidade de imaginar uma realidade diferente, maior e melhor, estabelecendo objetivos que estejam além do interesse imediato e dos projetos próprios de cada um3. Pensar o mundo como deve ser. O idealismo está para a vida pública como o amor está para a vida privada. Amar significa dar à vida uma dimensão transcendente, que faz com que ela seja mais do que a mera sobrevivência física, o acúmulo de bens, a satisfação de prazeres sensoriais ou conquistas pessoais. Ter ideal, da mesma forma, implica em sair de dentro de si mesmo e viver também para o outro. O idealismo está ligado a valores éticos, à virtude, às conquistas do espírito. O pensamento e a vontade - acompanhados da ação necessária - são aptos a construir a realidade que se deseja. A vitória sobre o despotismo, a abolição da escravatura, a liberdade religiosa, bem como a igualdade entre raças ou entre homens e mulheres já foram ideais remotos, antes de percorrerem a longa trajetória que paulatinamente os foi transformando em realidade. O contrário do idealismo, no sentido aqui empregado, não é o realismo - ter senso de realidade e dos limites do possível a cada tempo faz parte do idealismo consequente -, mas o ceticismo, a descrença de que a pessoa humana possa ser um agente moral do progresso. Para deixar claro: idealismo não é moralismo, nem perfeccionismo. Ao contrário, é um projeto emancipatório, para que cada pessoa seja o melhor que de fato pode ser.

 

Por fim, Pragmatismo significa, em essência, que o mérito de uma ideia, de uma política pública ou das ações em geral se mede pelos resultados práticos que são capazes de produzir. O significado das coisas e a verdade de qualquer proposição são determinados pela experiência e pelas consequências sobre o mundo real e a vida das pessoas, e não por dogmas ou teorias.  Conforme uma sistematização de amplo curso4, o pragmatismo filosófico apresenta três características essenciais. A primeira é o antifundacionalismo, no sentido de não buscar um fundamento último, de ordem moral, para justificar uma decisão. A segunda é o contextualismo, a significar que a realidade concreta em que situada a questão a ser decidida tem peso destacado na determinação da solução adequada. E, por fim, e muito particularmente, o consequencialismo, na medida em que o resultado prático de uma decisão deve ser o elemento decisivo de sua prolação. Não é preciso aderir incondiconalmente ao pragmatismo para reconhecer a necessidade de superarmos o universo da retórica vazia e descompromissada da realidade que ainda caracteriza a ação política no Brasil, onde políticas públicas são praticadas por anos a fio sem qualquer monitoramento ou avaliação de resultados. Há muitas sutilezas e complexidades que não poderão ser exploradas aqui. Porém, não estando em jogo valores ou direitos fundamentais, o papel de qualquer agente público - seja o juiz, o legislador ou o administrador - é adotar o curso de ação que produza os melhores resultados para a sociedade, aferidos com base em pesquisa séria, dados concretos e informações.

 

Iluminismo, idealismo e pragmatismo contêm em si os valores de que o país precisa para furar o cerco, romper círculos viciosos e encontrar o seu destino. Reitero, ao concluir essa Nota, a minha confiança nas potencialidades do Brasil e nas instituições democráticas. E compartilho uma de minhas convicções mais profundas: a de que a história é um fluxo contínuo na direção do bem e do avanço civilizatório. E mesmo quando, olhando da superfície, tudo pareça cinzento e desanimador, ela flui como um rio subterrâneo no curso que lhe cabe seguir. Os países, como as pessoas, passam pelo que têm que passar, no aprendizado constante que leva ao aprimoramento existencial e ao progresso social.

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1 Steven Pinker, Enlightenment now, 2018.

2 Immanuel Kant, An Answer to the Question: What is Enlightenment? In: James Schmidt (ed.), What Is Enlightenment?, 1996, pp. 58, 62 e 63.

3 O idealismo em sentido político, como empregado aqui, não se confunde com o idealismo como corrente filosófica, fundada na premissa de que a realidade somente existe na mente ou consciência de cada um. V. Stanford Encyclopedia of Philosophy, verbete "Idealism". Disponível em clique aqui. Acesso em 26 jul. 2018. 

 

4 V. Richard A. Posner, Pragmatism and democracy, 2003, e How judges think, 2008; Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo: teoria social e política, 2005; Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, in Daniel Sarmento, Filosofia e teoria constitucional contemporânea, 2009, p. 171-211.

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t*Luís Roberto Barroso é mestre em Direito pela Universidade de Yale, Doutor e Livre-Docente pela UERJ, Pós-Doutor pela Universidade de Harvard. Professor titular da UERJ. Professor do UniCEUB. Ministro do STF.




 

 

 

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