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A "Guerra das Papeleiras": mais um capítulo judicial

Na última quarta-feira, um tribunal arbitral do Mercosul proferiu decisão preliminar no controverso litígio envolvendo a construção de fábricas de pasta de celulose às margens do Rio Uruguai. Esta sentença é apenas mais um capítulo deste conflito, originado dos temores argentinos de que a construção das fábricas implicará dano irreparável ao meio ambiente da região.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Atualizado em 11 de setembro de 2006 14:58


A "Guerra das Papeleiras": mais um capítulo judicial

 

Welber Barral*

 

Na última quarta-feira, um tribunal arbitral do Mercosul proferiu decisão preliminar no controverso litígio envolvendo a construção de fábricas de pasta de celulose às margens do Rio Uruguai. Esta sentença é apenas mais um capítulo deste conflito, originado dos temores argentinos de que a construção das fábricas implicará dano irreparável ao meio ambiente da região.

 

De fato, a chamada "Guerra das Papeleiras" vem hostilizando os dois vizinhos nos últimos dois anos. Em outubro de 2003, o governo uruguaio autorizou a empresa ENCE, de capital espanhol, a iniciar a construção de uma fábrica na localidade de Fray Bentos, às margens do rio Uruguai. Posteriormente, em fevereiro de 2005, nova autorização foi concedida para uma fábrica similar da finlandesa Oy Metsä-Botnia, na mesma região. Os investimentos totais relacionados aos projetos somarão US$ 1,8 bilhão, o maior investimento estrangeiro já ocorrido na história uruguaia.

 

Os benefícios para o país vizinho, entretanto, não serviram para reduzir o impacto da notícia para os argentinos. Do lado oposto do rio Uruguai, os moradores da cidade argentina de Gualeguaychú, com 300 mil habitantes, iniciaram protestos, logo encampados pelos políticos locais e nacionais. Os argumentos são de que as fábricas afetarão o delicado equilíbrio ambiental do rio Uruguai (um dos principais tributários do rio da Prata), com a poluição das águas, deterioração da biodiversidade, efeitos negativos sobre a saúde e a prática pesqueira, além dos efeitos para o turismo e para os interesses econômicos da região. A preocupação dos moradores menciona, recorrentemente, os prováveis efeitos que os gases fétidos da indústria de celulose terão para uma região balneária.

 

Ao longo de 2005, o conflito entre os dois países se agravou, culminando com a interrupção das pontes entre os dois países por manifestantes argentinos. A interrupção, de mais de dois meses, cortou o fluxo comercial uruguaio, causando enormes prejuízos às suas indústrias.

 

Na falta de entendimento entre os dois governos, o tema - que supostamente deveria ser avaliado e negociado com base em critérios técnico-ambientais - tornou-se o embrião de um imbróglio processual. Primeiro, a Argentina iniciou um processo contra o Uruguai perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), solicitando uma medida cautelar que determinasse a suspensão da construção das fábricas, até que um estudo ambiental determinasse se haveria um dano ambiental irreversível. Em seguida, o Uruguai iniciou um litígio contra a Argentina, desta vez perante o sistema de solução de controvérsias do Mercosul, argumentando a responsabilidade argentina pela interrupção do comércio.

 

A existência de dois foros internacionais para a solução de um mesmo conflito é um dos fenômenos paradoxais do Direito Internacional contemporâneo. Neste caso, a competência da CIJ deriva do Estatuto do Rio Uruguai, firmado entre os dois países. Perante o sistema do Mercosul, de outro lado, são discutidas as reclamações de caráter comercial, como a questão do bloqueio das pontes entre os dois países.

 

A CIJ, por quatorze votos a um, negou a medida cautelar solicitada pela Argentina. Segundo a decisão, não havia demonstrações nos autos de que a construção das fábricas traria uma ameaça iminente de dano irreparável ao meio ambiente do Rio Uruguai ou aos interesses econômicos e sociais dos habitantes do lado argentino do rio. O argumento principal foi de que a Argentina não conseguira trazer provas de que a poluição resultante traria um dano de caráter irreparável. O processo continuará até a decisão de mérito, que pode levar anos, sobretudo considerando os intricados aspectos técnico-ambientais envolvidos. Observe-se, ainda, que a negativa de concessão da medida cautelar não exime o Uruguai de reparar eventuais danos ambientais, se a decisão de mérito lhe for desfavorável. A própria CIJ chamou a atenção para o fato de que "o Uruguai assume todos os riscos relativos à implementação da sentença futura". Esta implementação pode, em tese, implicar desde o desmantelamento das fábricas até a reparação dos danos causados.

 

No caso do tribunal arbitral do Mercosul, a reclamação do Uruguai buscava a declaração de responsabilidade da Argentina quanto aos bloqueios das pontes, com impedimento de que o mesmo ocorresse no futuro. A decisão dos árbitros tentou ser salomônica, mas aproximou-se muito da ambigüidade.

 

De fato, os árbitros acolheram apenas parcialmente a reclamação uruguaia, ao declarar que a ausência de diligência pelo governo argentino "não é compatível com os compromissos do Mercosul de garantir a livre circulação de bens e serviços". Mas ao mesmo tempo, reconheceu que não houve má fé da Argentina, e que não poderia o tribunal arbitral "adotar determinações sobre condutas futuras da parte reclamada". Os árbitros foram extremamente cautelosos na redação do laudo, tanto quanto a não se comprometerem além de seu mandato, quanto ao evitar palavras que pudessem atiçar um caso que já tem graves implicações políticas. Para um árbitro, esse é um equilíbrio difícil, pois acaba levando um grau de ambigüidade incompatível com o grau de segurança jurídica desejável num bloco de integração.

 

Quanto às perspectivas futuras, ainda é possível ao Uruguai apresentar uma reclamação ao Mercosul pelos danos que alega haver sofrido (e que estima em 400 milhões de dólares). Esta reclamação dependerá da demonstração dos danos, em um processo ainda mais complexo. Tão complexo quanto a decisão de mérito perante a CIJ.

Neste cenário, uma solução mais cordata, portanto, parece ser a negociação bilateral ou regional, que estabeleça princípios comuns de proteção ao meio ambiente e que, concomitantemente, permita políticas de industrialização, sobretudo para os parceiros menores no Mercosul. Esta solução somente será possível se os líderes da região não permitirem que objetivos integracionistas de médio e longo prazo sejam obscurecidos pelas bravatas eleitoreiras.
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** A decisão da Corte Internacional de Justiça encontra-se disponível em https://www.icj-cij.org/icjwww/idocket/iau/iauframe.htm.

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*Professor de Direito Internacional Econômico (UFSC)

 





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