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A Empresa Simples de Crédito - ESC: nova modalidade disfarçada de instituição financeira

Estamos diante de uma nova experiência voltada para a redução da taxa de juros em favor dos pequenos e micro empresários, cabendo ao futuro dizer sobre a sua permanência no mercado como instrumento apto a tal finalidade.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Atualizado em 30 de setembro de 2019 16:40

O custo do crédito no Brasil tem sido objeto de críticas de longa data, muitas delas de natureza empírica, pois não trata da verificação das causas efetivas do elevado spread da taxa de juros, presente no nosso mercado financeiro, assunto que no momento deixamos de lado.

De qualquer maneira, conforme visto acima,  o legislativo têm se preocupado com o assunto e buscado soluções pelo aumento da concorrência no SFN (a falta desse fator é, precisamente, uma das fontes do elevado custo dos juros). Nesse sentido, por meio da LC 167, de 24/4/19 foi criada a Empresa Simples de Crédito - ESC, cujos lineamentos e crítica passamos a fazer em seguida.

Em primeiro lugar a forma adotada, de lei complementar, atendeu a uma exigência legal muitas vezes esquecidas, presente no art. 192 da CF, tendo, assim, sido efetivamente introduzida nova modalidade de instituição financeira no nosso mercado, em atendimento aos preceitos do art. 17 da lei 4.595 de 31/12/64. Pelo que parece, o BCB esteve ausente do projeto que criou as ESCs, ao mesmo tempo em que o legislador deixou de lado o seu tratamento integrado dentro do SFN. Esse fato, segundo entendemos, não afasta a necessidade do reconhecimento da existência de mais uma instituição financeira no mercado, do que decorrem as consequências cabíveis nos planos da competência do CMN e do BCB e da atuação deste diante das ESCs e da utilização dos institutos aplicáveis.

Nos termos do art. 1o da lei em questão, a ESC terá âmbito de atuação geográfica exclusivamente municipal ou distrital (incluído o caso do Distrito Federal), em sua sede e em municípios limítrofes.

O seu objeto corresponde à realização de operações de empréstimo, de financiamento e de desconto de títulos de crédito, exclusivamente com recursos próprios, tendo como contrapartes microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte, nos termos da LC 123, de 14/12/06 (Lei do Simples Nacional). Nada diferente do que fazia no passado o execrado agiota. Mas não se pode dizer que as ESCs sejam agiotas com carta-patente. A situação é bastante diferente. Trata-se de um empresário no exercício livre de sua atividade, considerada licita, tanto aqui agora, como em outros ordenamentos jurídicos. Superamos assim aquele ranço histórico consistente, em essência, na negativa do capitalismo e do horror aos juros, presente na antiga doutrina canônica no sentido de que o dinheiro era estéril, não sendo capaz de produzir filhos.

No tocante à sua forma, determina o arr. 2º que as ESCs devem adotar obrigatoriamente as formas de empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli), de empresário individual, ou de sociedade limitada, esta  constituída exclusivamente por pessoas naturais.

Examinando-se o seu o objeto, verifica-se a existência de um aspecto teleológico na autuação das ESCs, voltadas para um segmento de clientes que muitas vezes encontra dificuldades na obtenção de credito junto aos grandes conglomerados financeiros. O fato do exercício de suas atividades se dar dentro de um âmbito geográfico bastante restrito implica em uma proximidade maior entre as partes, a ESC e o cliente, passível de diminuir a assimetria informacional, até mesmo por uma circunstância relativa ao conhecimento pessoal entre um e outro que, em um passado não muito remoto, permitia o fechamento de contratos no fio do bigode ou mediante um simples aperto de mãos. Essa circunstância é denotada muito fortemente nos pequenos municípios, mas não escapa aos grandes, nos quais microcosmos de comércio se desenvolvem nos bairros, nos quais as pessoas se conhecem e compras são feitas ainda na palavra.

E tenha-se em conta que pequenas instituições financeiras existem aos milhares nos Estados Unidos da América, fora do âmbito do Federal Reserve Bank (considerando-se que ali, respeitadas certas condições, essa integração é uma escolha dos bancos). Eles funcionam regularmente e também regulamente (do ponto de vista temporal), muitos quebram todos os dias sem que isso afete o mercado financeiro daquele país.

Penso que, a par de elementos objetivos na concessão de crédito, as circunstâncias acima se revelarão ponderáveis, sem prejuízo maior relativo à questão dos riscos assumidos pelo concedente dos recursos pretendidos pelos clientes.

O nome empresarial da EC conterá a expressão "Empresa Simples de Crédito", e não poderá constar dele, ou de qualquer texto de divulgação de suas atividades, a expressão "banco" ou outra expressão identificadora de instituição autorizada a funcionar pelo BCB.

O capital inicial da ESC e os posteriores aumentos de capital deverão ser realizados integralmente em moeda corrente. Esse fator aumenta a segurança dessas empresas e a fiscalização neste sentido deverá ser substancialmente eficiente. Não se esqueça que o descumprimento dessa condição, na responsabilização do titular, poderá determinar a desconsideração da personalidade jurídica das ESCs ou da quebra da separação patrimonial entre os seus bens e o do titular.

O valor total das operações de empréstimo, de financiamento e de desconto de títulos de crédito da ESC não poderá ser superior ao capital realizado. 

A mesma pessoa natural não poderá participar de mais de uma ESC, ainda que localizadas em Municípios distintos ou sob a forma de filial.

De acordo com o art. 3º é proibida às ESCs a realização de:

I - qualquer captação de recursos, em nome próprio ou de terceiros, sob pena de enquadramento no crime previsto no art. 16 da lei 7.492, de 1606/1986 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional); e

II - operações de crédito, na qualidade de credora, com entidades integrantes da administração pública direta, indireta e fundacional de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A receita bruta anual da ESC não poderá exceder o limite de receita bruta para Empresa de Pequeno Porte (EPP) definido na LC 123, de 14/12/06 (Lei do Simples Nacional). Considera-se receita bruta, para essa finalidade a remuneração auferida pela ESC com a cobrança de juros, inclusive quando cobertos pela venda do valor do bem objeto de alienação fiduciária.

Nos termos do art. 5º, nas operações referidas das ESCs devem ser observadas as seguintes condições:

I - a remuneração da ESC somente pode ocorrer por meio de juros remuneratórios, vedada a cobrança de quaisquer outros encargos, mesmo sob a forma de tarifa;

II - a formalização do contrato deve ser realizada por meio de instrumento próprio, cuja cópia deverá ser entregue à contraparte da operação;

III - a movimentação dos recursos deve ser realizada exclusivamente mediante débito e crédito em contas de depósito de titularidade da ESC e da pessoa jurídica contraparte na operação.

Não há limite para esses juros. Sua fixação dependerá de diversos fatores segundo as regras que regem historicamente as operações de crédito. A esperança é que eles sejam praticados em faixas mais reduzidas do que os cobrados pelos bancos tradicionais. Nesse sentido expressamente não se aplicam à ESC as limitações à cobrança de juros previstas no decreto 22.626, de 7/4/33 (Lei da Usura), e no art. 591 do CC/02. Essa norma é de extrema importância para o fim de afastar a conhecida propensão do Judiciário de proteger o devedor inadimplente pelo recurso às limitações referidas no texto e também em relação à aplicação do CDC.  

A ESC poderá utilizar o instituto da alienação fiduciária em suas operações de empréstimo, de financiamento e de desconto de títulos de crédito. Sabe-se que, do ponto de vista da eficácia no plano judicial, não se cuida de uma garantia tão significativa como seria natural.

A ESC deverá providenciar a anotação, em bancos de dados, de informações de adimplemento e de inadimplemento de seus clientes, como é o caso do Cadastro Positivo de Crédito.

É condição de validade das operações das ESCs o seu registro em entidade registradora autorizada pelo BCB ou pela CVM, nos termos do art. 28 da lei 12.810, de 15/5/13.

É facultado ao BCB, não constituindo violação ao dever de sigilo, o acesso às informações decorrentes do registro acima referida, para fins estatísticos e de controle macroprudencial do risco de crédito. Trata-se de cuidado desnecessário, uma vez que, tratando-se efetivamente de uma instituição financeira (embora essa natureza não decorra diretamente da LC que as criou) e, portanto, sujeitas à fiscalização daquele Órgão, contra elas e seu titular poderá/deverá o BCB tomar as medidas cabíveis na infringências das normas do SFN.

As ESCs estão sujeitas aos regimes de recuperação judicial e extrajudicial e ao regime falimentar regulados pela lei 11.101, de 9/2/05 (Lei de Recuperação de Empresas e de Falências). Aqui surge um problema relativo à natureza da instituição financeira, da qual decorre a possibilidade de decretação pelo BCB de atos de intervenção, de RAET e de liquidação extrajudicial, os quais, segundo a nossa visão, não podem ser afastados, mesmo que o seu tratamento legal não os tenha referido.  Se assim é, o direito à recuperação judicial deve ser considerado uma novidade específica das ESCs, que não pode ser considerada adequada nem eficiente. Isto porque a confiança no titular de uma empresa desse tipo desaparece no mesmo instante do estabelecimento de sua crise e o fornecimento de dinheiro novo para a sua recuperação será uma tarefa praticamente impossível. De qualquer maneira, trata-se do atendimento da unidade do SFN, a cargo do CMN e do BCB, resultado da lei 4.595/64, que não pode ser quebrado por outra norma, exceto quando se tratasse de nova regulamentação do SFN, o que não é o caso.

A ESC deverá manter escrituração com observância das leis comerciais e fiscais e transmitir a Escrituração Contábil Digital (ECD) por meio do Sistema Público de Escrituração Digital (Sped).

Constitui crime o descumprimento do disposto no art. 1º, no § 3º do art. 2º, no art. 3º e no caput do art. 5º desta lei complementar, ou seja: (i) violação dos limites regionais: (ii) violação dos limites operacionais; (iii) violação do limite máximo do total das operações das ESCs; (iv) e das condições do remuneração. A pena será de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

A criminalização de condutas tem sido uma estratégia bastante utilizada no SFN, não se afastando no caso das ESCs, por exemplo, a Lei dos Crimes Financeiros pela razão de que têm a natureza inegável de instituições financeiras. Além do fato de que essa orientação possa configurar um zelo desmesurado em função dos prejuízos que os titulares dessas empresas possam causar aos seus clientes, nota-se que os crimes em questão se colocam como de mera conduta, ou seja, crimes de perigo de dano, do que decorre uma significativa redução dos mecanismos de defesa dos eventuais réus.

Essa orientação penal está presente expressamente na inclusão das ESCs na Lei de Lavagem de Dinheiro, na forma da nova redação dada ao art. 9º, parágrafo único, inciso V, que expressamente passou a contemplá-las para tal finalidade.

Sobre a questão referida no parágrafo anterior deve-se afastar criminalização quanto aos danos ao mercado financeiro, pela própria limitação geográfica das operações das ESCs, a não ser que, por alguma circunstância excepcional, elas venham a atuar em uma região geográfica mais abrangentes e que suas operações tomem uma dimensão de maior vulto.

Estamos, portanto diante de uma nova experiência voltada para a redução da taxa de juros em favor dos pequenos e micro empresários, cabendo ao futuro dizer sobre a sua permanência no mercado como instrumento apto a tal finalidade.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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