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As possíveis razões para o cancelamento da súmula 469 do STJ mediante o justo pleito das autogestões em saúde

Pode-se concluir que o afastamento do CDC pela súmula do STJ decorre exatamente de as autogestões não possuírem fins lucrativos e conseqüentemente não há relação de consumo.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Atualizado em 31 de julho de 2019 14:46

Questão que vem começando a ser enfrentada nos Tribunais de Justiça, o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de planos de saúde na modalidade autogestão merece breves considerações da sua importância e relevância no setor.

Com o advento da lei federal 9.656/98 (Lei dos planos de saúde), estabeleceu-se uma especificação dos tipos de planos, encontrando-se o conceito de autogestão no inciso II do artigo 1º da aludida norma.1

Interessante destacar que a lei que regulamenta os planos de saúde foi criada antes da agência que regulamenta a matéria. Somente nos idos de 2000, ano em que foi promulgada a lei federal 9.961/00, criou-se a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, cujas atribuições estão elencadas em seu artigo 1º.2

Cumprindo seu papel de normatização e regulamentação, a Diretoria Colegiada da ANS editou a instrução normativa 137, de 14/11/06, regulamentando as entidades de autogestão no âmbito do sistema de saúde suplementar3.

A autogestão em saúde é o segmento em que a própria instituição é a responsável pela administração do plano de assistência à saúde oferecido aos seus empregados, servidores ou associados e respectivos dependentes, sendo o único modelo que elimina a necessidade de contratação de intermediários.

Com efeito, Fernanda Schaefer4 assim conceitua essa modalidade de operadora de plano de assistência à saúde:

"A autogestão (expressão que já era adotada antes da lei 9.656/98) corresponde a um plano de saúde criado por uma ou mais empresas para assistir seus empregados ou funcionários ativos, dependentes, aposentados, pensionistas e até ex-empregados, que poderão ser chamados a participar financeiramente (por meio do pagamento de mensalidades). São denominados de autogestão porque gerenciam e controlam os atendimentos, não têm fins lucrativos, e a sua personalidade jurídica não difere da personalidade jurídica da empresa que as mantém, cabendo a essas a tarefa de dirigi-las e administrá-las."

Com precisão o ministro Massami Uyeda, no voto proferido no julgamento pela 3ª Turma, no RESp 1.121.067/PR, descreve com clareza o conceito de autogestão:

" Dentre os planos de saúde, existe uma categoria a qual pode ser chamada de planos de autogestão ou planos fechados, nos quais não há a presença da comercialização de produtos e a instituição não visa lucros.

São planos criados por instituições diversas, governos municipais ou estaduais e empresas, sendo que algumas caixas de assistência existem há décadas e, portanto, anteriores à lei 9.656/98.

Os planos de autogestão, em geral, são administrados paritariamente e, no seu conselho deliberativo ou de administração, há representantes do órgão ou empresa instituidora e dos associados ou usuários.

O objetivo desses planos fechados é baratear o custo, tendo em vista que não visam o lucro e evitam o custo da intermediação. A participação nos planos de autogestão, por serem fechados, ocorre quando o indivíduo passa a fazer parte do quadro de empregados ou servidores da empresa/órgão que instituiu o plano, tornando-se um associado com direito a votar e ser votado e a exercer cargos dentro da estrutura administrativa.

É comum, nesse tipo de plano, como é o caso do plano de saúde aqui do Superior Tribunal de Justiça, a existência de regras restritivas na cobertura dos eventos, havendo a exigência de participação financeira do usuário em parte do custo dos eventos.

Alguns eventos não são cobertos pelo plano e o ressarcimento é mínimo ou inexistente. Isso faz parte do regulamento com vista à manutenção de um custo mensal menor e o equilíbrio atuarial do plano.

Nos planos de saúde fechados, a mensalidade dos associados é um percentual da remuneração, criando um sistema solidário entre os participantes, pois quem tem maior salário, contribui com mais para o todo e o custo adicional por dependentes é menor, sendo que em algumas caixas de assistência não há cobrança adicional por dependente."

Segundo o mesmo entendimento, transcreve-se as lições da renomada professora Josiane Araújo Gomes5, a saber:

"2.4.3 Autogestão

Quanto às entidades de autogestão, disciplinadas pela resolução normativa 137, de 14 de novembro de 2006, verifica-se que a característica principal dos planos de saúde por ela geridos diz respeito a não serem disponíveis aos consumidores em geral, mas sim apenas a um grupo restrito, constituindo, pois, um sistema fechado. De acordo com o art. 2° da Resolução supra, as operadores de autogestão podem ser constituídas em três modalidades diversas: "

E por essas razões em 2018, o S.T.J cancelou a súmula 469 cuja readação era "aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde" passando a vigorar a súmula 608: "aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão."

O caso paradigma a respeito da matéria foi da relatoria do ministro Luiz Felipe Salomão, entendendo a 2ª Turma do E. STJ que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica às relações constituídas entre usuários com as operadoras de autogestão, resultando a seguinte ementa:

"RECURSO ESPECIAL. ASSISTÊNCIA PRIVADA À SAÚDE. PLANOS DE SAÚDE DE AUTOGESTÃO. FORMA PECULIAR DE CONSTITUIÇÃO E ADMINISTRAÇÃO. PRODUTO NÃO OFERECIDO AO MERCADO DE CONSUMO. INEXISTÊNCIA DE FINALIDADE LUCRATIVA. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO CONFIGURADA. NÃO INCIDÊNCIA DO CDC. 1. A operadora de planos privados de assistência à saúde, na modalidade de autogestão, é pessoa jurídica de direito privado sem finalidades lucrativas que, vinculada ou não à entidade pública ou privada, opera plano de assistência à saúde com exclusividade para um público determinado de beneficiários. 2. A constituição dos planos sob a modalidade de autogestão diferencia, sensivelmente, essas pessoas jurídicas quanto à administração, forma de associação, obtenção e repartição de receitas, diverso dos contratos firmados com empresas que exploram essa atividade no mercado e visam ao lucro. 3. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor ao contrato de plano de saúde administrado por entidade de autogestão, por inexistência de relação de consumo. 4. Recurso especial não provido. RESp  1.285.483 - PB (2011/0239595-2). Relator: ministro Luis Felipe Salomão. Publicado em 16/8/16."

Adite-se que no julgamento do RE 597064 Tema 345 do excelso Supremo Tribunal Federal, o eminente ministro Gilmar Mendes em decisão monocrática publicada em 24/11/17 afirmou o seguinte sobre a participação de entidade de autogestão na referida lide:

"Quanto ao pedido da Itaipu Binacional, não obstante tenha solicitado sua participação antes da comunicação do julgamento em Plenário pela Presidência do STF, indefiro-a eis que sua intervenção decorre tão somente do fato de ter resolvido "prestar assistência à saúde de seus colaboradores" na condição de exclusiva patrocinadora de plano de saúde na modalidade autogestão (que se assemelha a benefício assistencial) - na qual inexiste exploração de mercado suplementar pelo fato de "não cobra[r] nenhum tipo de contraprestação de seus beneficiários" razão pela qual não vislumbro representatividade adequada. (art. 7º, §2º, da lei 9.868/99)"

Logo, dúvidas não restam que as autogestões são entidades fechadas, que não visam lucro e tem seu escopo delineado pela entidade que irá patrocinar ou mantê-la. Segundo6 a Unidas - União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde, o segmento de autogestão possui cerca de 5 milhões de beneficiários em aproximadamente 120 instituições filiadas.

E esse desenho de plano de saúde vem sendo a salva guarda para milhões de beneficiários que já passaram dos 60 anos, desejam manter um plano de saúde sem os elevados custos de um plano individual com a mesma qualidade dos planos oferecidos pelas operadoras e seguros saúde com fins lucrativos.

É inegável a diferença estrutural existente entre os planos de saúde oferecidos por entidades fechadas, constituídas como autogestão, de acesso restrito a um grupo determinado de pessoas, daqueles planos comercializados por operadoras que oferecem seus produtos ao mercado geral e objetivam o lucro.

Dessa forma, pode-se concluir que o afastamento do CDC pela súmula do STJ decorre exatamente de as autogestões não possuírem fins lucrativos e conseqüentemente não há relação de consumo.

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1 Art. 1º  Submetem-se às disposições desta lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:

I - Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor;

II - Operadora de Plano de Assistência à Saúde: pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de que trata o inciso I deste artigo;

2 Artigo 1º Art. 1o É criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro - RJ, prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.

3 Art. 1º Esta resolução dispõe sobre as entidades de autogestão no âmbito do sistema de saúde suplementar.

Art. 2º Para efeito desta resolução, define-se como operadora de planos privados de assistência à saúde na modalidade de autogestão:

I - a pessoa jurídica de direito privado que, por intermédio de seu departamento de recursos humanos ou órgão assemelhado, opera plano privado de assistência à saúde exclusivamente aos seguintes beneficiários:

II - a pessoa jurídica de direito privado de fins não econômicos que, vinculada à entidade pública ou privada patrocinadora, instituidora ou mantenedora, opera plano privado de assistência à saúde exclusivamente aos seguintes beneficiários: 

III - pessoa jurídica de direito privado de fins não econômicos, constituída sob a forma de associação ou fundação, que opera plano privado de assistência à saúde aos integrantes de determinada categoria profissional que sejam seus associados ou associados de seu instituidor, e aos seguintes beneficiários:

4 (Responsabilidade Civil dos Planos e Seguros de Saúde, 1ª ed., Ed. Juruá, p. 41-42)

5 (GOMES, Josiane Araújo. Contratos de Planos de Saúde, Leme (SP): JH Mizuno, 2016, págs. 115/117 )

6 Disponível aqui.

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*Daniel Conde Falcão Ribeiro é advogado, pós-graduando em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar.

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