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Paternidade incerta

O Direito, acompanhando o pensamento romano que norteou o título, presumia como pai aquele que fosse casado com a mulher. O Código Civil atual, no entanto, estabelece a presunção temporal da paternidade.

domingo, 11 de agosto de 2019

Atualizado em 8 de agosto de 2019 12:34

O pai, como a mãe, exerce uma influência marcante na vida de cada filho. É a imagem que se carrega do berço e invade a vida adulta como se fosse a mesma durante todo o percurso. Merece, é claro, no seu dia, todas as homenagens e reverências, embora muitas vezes pairem dúvidas a respeito da paternidade.

Machado de Assis, no romance Dom Casmurro, com a habilidade literária inconfundível, descreveu a história de um grande amor entre Bentinho e Capitu, mas lançou uma forte dúvida para o leitor a respeito da paternidade do filho Ezequiel nascido dessa união e que carregava uma indisfarçável semelhança física com seu amigo Escobar. Com a peculiar sensibilidade o Bruxo do Cosme Velho deixou transparecer raros indícios da duvidosa paternidade do filho de Bentinho, que foram rechaçados imediatamente por Capitu.

O Direito, acompanhando o pensamento romano que norteou o título, presumia como pai aquele que fosse casado com a mulher. O Código Civil atual, no entanto, estabelece a presunção temporal da paternidade. Assim, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos pelo menos 180 dias depois de estabelecida a convivência conjugal ou 360 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal.

Nos dias atuais, em razão da espetacular evolução da engenharia genética, mesmo na clausura da vida uterina, é possível apontar com segurança a paternidade, por meio de exame não invasivo consistente na procura do DNA fetal circulante na mãe e compará-lo com o material fornecido pelo pretenso pai. O avanço científico é tamanho que, além do objetivo da paternidade, carrega precisão quase que incontestável no sentido de demonstrar que o feto seja portador de síndromes de Down, Edwards, Patau, Turner, Klinefelter e Triplo X.

A regra da paternitas incerta est cai por terra diante da precisão de referido exame e pode se dizer que a até então imutável afirmativa de que maternitas semper certa est também não resiste quando se tratar de inseminação artificial heteróloga, prevista no artigo 1597, inciso III do Código Civil.

E a proteção à prole intrauterina vai além, mesmo sem qualquer amparo em prova científica. A lei 11.804, de 6/11/08, conhecida como "alimentos gravídicos", melhor seria se fosse "alimentos do nascituro", em apertado resumo, confere direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do suposto pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos pelas partes.

Trata-se, como se percebe, de uma de uma decretação provisória de paternidade, calcada somente em indícios. Eventual contestação pugnando pela realização de exame excludente da alegada paternidade será analisada após o nascimento da criança. É uma situação de incerteza que obrigará o suposto pai a arcar com a verba alimentar, não se afastando da finalidade da medida que é atingir uma procriação responsável, com o comprometimento integrado e solidário dos genitores, numa verdadeira guarda compartilhada intrauterina.

Se Machado de Assis vivesse, certamente iria nomear a paternidade de Ezequiel. Mas a obra, com toda certeza, eliminando o suspense, perderia grande parte de sua graça.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

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