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Criminalização da homofobia e transfobia - Um louvável caso de ativismo judicial do STF

É importante registar que o fenômeno do ativismo judicial é recorrente nas democracias contemporâneas, consistindo ele na interpretação proativa, audaciosa e criativa da Constituição pelo Judiciário, de modo a sanar, via de regra, as omissões ou mora dos outros poderes, notadamente do Legislativo, na edição de seus respectivos atos normativos.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Atualizado em 14 de outubro de 2019 09:45

Em julgamento já ultimado, os ministros do STF, por oito votos a três, na ADO 26 e no MI 4733, entenderam por bem criminalizar as homofobia e transfobia, equiparando tais práticas ao racismo. Os votos condutores foram, respectivamente, do decano Ministro Celso de Mello e Edson Fachin.

Antes de adentrar na matéria de fundo do presente artigo, é importante registar que o fenômeno do ativismo judicial é recorrente nas democracias contemporâneas, consistindo ele na interpretação proativa, audaciosa e criativa da Constituição pelo Judiciário, de modo a sanar, via de regra, as omissões ou mora dos outros poderes, notadamente do Legislativo, na edição de seus respectivos atos normativos. Frise-se que, segundo pensamos,  a mencionada interpretação da Constituição deve ser implementada à luz das peculiaridades de cada caso submetido ao crivo do Poder Judiciário, notadamente das supremas cortes, observando inclusive o princípio instrumental da razoabilidade, bem assim a compatibilidade com a Constituição 

A antítese do ativismo judicial é a autocontenção, que se dá quando o Judiciário busca tão - somente impugnar os atos normativos dos outros poderes, notadamente as leis, a partir de uma interpretação da Constituição muito limitada e restrita, para não dizer literal, bem assim quando ele se nega a agir para suprir omissões ou mora dos outros poderes. Assim, na autocontenção o Judiciário, em especial as supremas cortes, cinge - se a detectar e fulminar os atos normativos dos outro poderes, principalmente a lei, demitindo-se, o Judiciário, do seu poder de suprir as omissões ou mora dos outros poderes, em especial do Legislativo, na edição de seus respectivos atos normativos. 

De logo, importa assinalar que o ativismo judicial, em nosso entender, pode conter aspectos positivos e negativos. A exemplo dos primeiros podemos citar a decisão do STF em mandado de injunção que versava sobre a aplicação das regras do direito de greve no setor privado aos funcionários públicos (já tivemos a honrosa oportunidade de escrever sobre esse tema no Migalhas, em 26 de junho de 2006, cujo título foi "O STF e a mudança radical e alvissareira com relação á aplicação da ação constitucional do mandado de injunção").  

Ainda na senda dos aspectos positivos do ativismo judicial, podemos trazer a lume dois lapidares julgados do STF: o primeiro, ainda pendente de julgamento definitivo do STF, atinente à execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância (confira-se, nesse particular, o artigo que tivemos a ventura de ver publicado no Migalhas de 21 de maio de 2018); o segundo, relativo à restrição do foro privilegiado para alcançar somente os crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, julgamento este já ultimado, com aplausos maciço da sociedade. Em ambos os casos o STF, a partir do encetamento de uma interpretação proativa, audaciosa e criativa da CF, em observância, também, às  peculiaridades de cada caso e ao princípio da razoabilidade, produziu julgados merecedores de elogios. Ademias, o ativismo judicial em tais caos foi procedido com amparo na Constituição Federal e levando em conta situações em que inexistiam, e inexistem, fortes desacordos morais razoáveis. É dizer: a sociedade civil, pex., em uníssono, abomina o foro privilegiado (está em trâmite  no Congresso PEC que estabelece a restrição do foro privilegiado a algumas autoridades), bem assim, em nome da punibilidade dos culpados, rechaça, a sociedade civil, a ingente procrastinação das ações penais, daí porque porfia a tese da prisão do réu após a condenação em segunda instância.

Quanto aos aspectos negativos do ativismo judicial podemos citar três casos emblemáticos no STF, a saber: a descriminalização do aborto de feto anencefálico; a descriminalização do aborto realizado até o terceiro mês de gestação; finalmente, a descriminalização do   uso de drogas. Todos esse casos --- à exceção do aborto de fetos anencefálicos, em que o STF reescreveu os artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro, para incluir dito aborto no rol das hipótese lícitas de aborto - pendem de julgamento definitivo no  STF. 

Sobre a descriminalização do aborto de feto anencefálico, tivemos a felicidade de escrever artigo no livro lançado pelo Migalhas, cujo título é "Anencefalia nos Tribunais.", pags 49 a 54. Nele, dentre outros argumentos de fundo, sustentamos que a chancela do citado aborto pelo STF implicaria na usurpação flagrante e chapada das competências e atribuições do Poder Legislativo.

No que concerne à descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, produzimos artigo para o Migalhas intitulado "O STF e a descriminalização do aborto", em que assentamos que a chancela pelo STF do dito aborto  configuraria flagrante, ostensiva e chapada invasão da competência do Legislativo.  

Preleciona o ilustre Ministro do STF Luís Roberto Barroso a respeito do ativismo judicial:    

"Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o  seu sentido e alcance. Normalmente , ele se instala - e este é o caso do Brasil - em situações  de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo judicial é a autocontenção, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes." (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, %ª edição, pag 442)    

O eminente Ministro arrola, no seu livro "A judicialização da Vida," alguns emblemáticos casos no STF de ativismo judicial, alguns, no nosso entender, positivos e outros negativos, como acima mencionado, estes últimos por representarem chapada e direta invasão da competência dos outros poderes, notadamente do Legislativo, em matérias em que há na sociedade grande desacordo moral razoável. 

Assim sendo, posicionamo-nos no sentido de que o ativismo judicial deve ser procedido com cautela e parcimônia, a partir de uma interpretação proativa e devidamente fundamentada da Constituição, e atenta às peculiaridades de cada caso e ao princípio instrumental da razoabilidade, de preferência em relação a situações em que não haja na sociedade forte desacordo moral razoável, sob pena da invasão direta, flagrante e chapada nas competências dos outros Poderes, notadamente do Legislativo.

Ademais, entendemos que -- com a devida permissão dos que pensam em contrário -- em democracias representativas ainda frágeis e insipientes como a nossa, em que impera o chamado presidencialismo de colisão, é inelutável o ativismo  judicial, notadamente das supremas cortes, sem embargo da constatação óbvia de que, em regimes democráticos, melhor seria que os problemas fossem resolvidos, em grande medida, na arena política, pelos representantes eleitos pelo povo.

De outra parte, pensamos que, adotando- se uma postura maniqueísta, não se pode rechaçar, de forma absoluta, como fazem alguns, se não a maioria dos doutrinadores, o ativismo judicial, vez que, em algumas situações, com acima mencionado, ele se mostra indispensável.

No presente artigo, apresentamos uma forma louvável e salutar de ativismo judicial do STF, pelas seguintes razões adiante aprofundadas: é patente que, no Brasil e nos países democráticos, a homofobia e a trânsfobia são veementemente repugnadas; no caso em apreço, restou patenteada a omissão do Legislativo brasileiro em legislar criminalizando a homofobia e a transfobia; o STF, guardando respeito à Constituição Federal, levou a cabo uma interpretação proativa e criativa, de molde a criminalizar a homofobia.

Com efeito, o Decano Ministro Celso de Mello discorre, preambularmente, sobre a grave perseguição aos LGBT desde o nosso período colonial até os dias atuais, aduzindo depois, em seu denso e magistral voto condutor, dados  estatísticos e normas legais --- de índole infraconstitucional e constitucional, inclusive tratados e convenções internacionais --- referentes a esse tormentoso problema.

Prosseguindo no seu memorável voto, que, repita-se, foi acompanhado pela ilustrada maioria do STF, o Decano demonstra à saciedade a mora do Congresso Nacional, notadamente do Senado, em editar lei criminalizando a homofobia e a transfobia. Não atoa asseverou que o projeto de lei 122/06 referente ao tema tramita no Congresso há mais de 17 anos com idas e vindas, percalços e paralisações nada razoáveis.

Assinala, ademais, nesse diapasão, que essa postura omissiva do Congresso denota mora deliberandi do Parlamento brasileiro, a ensejar, como recurso último e insuperável, a supressão de tal lacuna pelo STF.

Salienta ainda, em linha de princípio, que o artigo 103, & 2º, da CF, se revela ineficaz no caso em apreço, pois, em verdade, a mera intimação do Congresso para editar uma lei criminalizando as homofobia e transfobia seria estéril e inútil, como fatos pretéritos já ocorridos no STF bem demonstram.

Por outro lado, o voto condutor do decano assenta um interpretação criativa, proativa  e audaciosa da corte, própria do ativismo judicial, no sentido de alargar o conceito de racismo extraído da lei 7.716/89, para alcançar a homofobia e a transfobia. É dizer: o crime de racismo, na forma da citada lei, compreende não só fatores antropológicos e biológicas (fenotípicos), mas também aspectos sociais, daí porque, segundo o Relator, se pode falar em racismo social.

Registre-se, por oportuno, na esteira do voto do decano, que assim procedendo o STF não estaria promovendo analogia in malam partem, que é vedada no Direito Penal. Ao contrário, dita interpretação conforme a Constituição da lei 7.716/89 à luz do artigo 5º, incisos XLI e XLII da nossa Carta Magna, fazendo compreender na noção de racismo a homofobia e a transfobia, a par de ser incontornável na espécie, revela- se medida imperativa e de rigor do STF, sob pena de violação do princípio maior da dignidade da pessoa humana.  

Para concluir, é forçoso reconhecer, ao nosso ver e também do STF, que no caso sob análise se operou um louvável caso de ativismo judicial, na medida em que, a partir de uma interpretação proativa e criativa da CF pela Corte, esta conferiu efetividade ao artigo 5º, XLI e XLII, ao promover interpretação conforme a Constituição da lei 7.716/89, isso tudo à vista da  de omissão e mora do Congresso Nacional em editar lei criminalizando a homofobia e a transfobia.         

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*Gustavo Hasselmann é procurador do município do Salvador/BA e advogado

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