MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O STF e a prisão em segunda instância

O STF e a prisão em segunda instância

O nó górdio do referido julgamento reside na interpretação do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, in verbis: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

domingo, 10 de novembro de 2019

Atualizado em 11 de novembro de 2019 07:04

Muito se tem comentado em todos os veículos de comunicação a respeito do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal que, por 6 votos a 5, abandonou o entendimento anterior e deu validade à prisão somente após esgotados todos os recursos, com a comprovação do trânsito em julgado. Com a concretização democrática, a Corte Maior, guardiã da Carta Magna, vem sendo chamada insistentemente para decidir questões relevantes para o país. Tanto é que seus ministros tornaram-se conhecidos da população brasileira que já decifra com certa facilidade a tendência de cada um eles. Tamanha participação ativa integra o conteúdo dogmático constitucional que já prevê, em alguns casos, a participação popular nas audiências públicas, assim como a legitimação extraordinária do amicus curiae, com a finalidade de encontrar a melhor decisão para o país, refletindo em todos os ângulos, como um caleidoscópico, a denominação "Constituição Cidadã".

Sob outro prisma, várias críticas foram feitas com relação à postura ativista do Judiciário, pois avoca para si competências que, aparentemente, pertencem a outros poderes da República. Em laborioso trabalho, Marcos Paulo Veríssimo, após fazer uma leitura do desenho institucional do Supremo Tribunal Federal, é incisivo em sua conclusão: "Trata-se do surgimento, no País, de um judiciário "ativista", que não se constrange em exercer competências de revisão cada vez mais amplas, quer incidentes sobre a política parlamentar (via controle de constitucionalidade, sobretudo), quer incidentes sobre as políticas de ação social do governo (por intermédio das competências de controle da administração pública, controle esse interpretado de forma cada vez mais larga nos dias atuais)".1

O nó górdio do referido julgamento reside na interpretação do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, in verbis: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

Quando Charles Hugles, que foi presidente da Suprema Corte Americana, profetizou que "a Constituição é o que os juízes dizem que ela é", ficou bem claro que o julgamento é uma nítida função interpretativa da Lei Maior. Interpretá-la não é só buscar em sua essência o espírito derivado da mens legis, mas, também, com a elasticidade hermenêutica recomendada, equilibrá-la, cum grano salis, com a atualidade, com a cultura, e com o anseio popular visando realizar um processo de definição que seja coerente com a realidade da nação.

É nítida a influência que o pensamento popular exerceu sobre a Corte Maior. No caso específico do julgamento em questão, uma forte corrente popular, apesar de conhecer a regra imposta anteriormente via judicial em reiteradas decisões, mas desconhecendo as regras jurídicas pertinentes ao caso, elegeu a legalidade da prisão após a condenação em segunda instância como indispensável para o país, principalmente nos casos que resultaram em prisões de réus da chamada operação Lava Jato. E a sabedoria popular, na sua mais apurada interpretação, entendeu que a exagerada busca de recursos, que se apresentam de forma infindável nas prateleiras processuais, deveria ter um limite e permitir o cumprimento da prisão, observando que nenhuma outra prova seria produzida nas ulteriores instâncias e o reexame seria meramente procrastinatório, muitas vezes em busca até mesmo da prescrição penal.

Já até antecipando um julgamento, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, encaminhou para os presidentes da Câmara Federal e do Senado proposta de inclusão de um artigo ao atual 116 do Código Penal que impede a prescrição enquanto não ocorrerem os julgamentos dos recursos extraordinários ou especiais.

Rousseau já advertia no Contrato Social que a sustentação da república é a soberania do povo e o direito da vontade geral, representado pelo desejo coletivo da comunidade, não no sentido de se construir um estado totalitário que irá decidir sobre o que é inconveniente ou não para a sociedade, mas sim a liberdade de um povo formar seu juízo a respeito de seus peculiares interesses. Não se pode olvidar que a fonte originária da construção de um regramento é o anseio do povo, representado por manifestações reiteradas, já testadas suficientemente e que necessita somente da homologação do Estado.    

Mas, o Tribunal Maior, em sua ampla esfera interpretativa, optou por entendimento divorciado da opinião popular, com igual embasamento jurídico, valendo-se do mesmo texto constitucional. Quando o artigo combatido se refere ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não faz qualquer sinalização a respeito do momento de sua ocorrência e a regra geral, pela prática forense, compreende o exaurimento do último recurso interposto. Em nenhuma oportunidade é feita qualquer referência ao segundo grau de jurisdição que, na realidade, também é uma construção jurisprudencial, justificada pelo alto índice de criminalidade que assola o país. Há uma premissa hermenêutica que se casa com perfeição a tal opção de raciocínio: Quando a lei não fizer qualquer distinção, não é lícito ao intérprete fazê-la (Ubi lex non distinguit, nec interprete distinguere potest).

Assim, seguindo rigorosamente a parêmia latina, não havendo na lei qualquer restrição com relação ao momento consumativo do trânsito em julgado, presume-se que prevalece sempre a regra da decisão proferida no último recurso.

Paralelamente, até mesmo para colocar uma derradeira pá de cal na discussão, para extirpar de vez a insegurança do texto constitucional, tramita pela Câmara dos Deputados a PEC 410/18 cuja finalidade é possibilitar a prisão após a condenação em segunda instância. Aí o texto fica claro, sem necessidade de divagações hermenêuticas (in claris cessat interpretatio).

_______________

1 Clique aqui.

_______________

*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

t

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca