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O surgimento do termo fake news nas eleições brasileiras, comparando a campanha de 2016 e 2018, e o que esperar para a campanha de 2020

A imprensa noticiou diversas desinformações, nomeando-as de boatos.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Atualizado em 24 de fevereiro de 2022 15:04

Os boatos e a desinformação acontecem em todas as campanhas eleitorais e não foi diferente no pleito de 2016. Ocorre que, naquela época, o termo fake news não era utilizado e as notícias falsas, imprecisas ou enganosas projetadas, apresentadas e promovidas para causar intencionalmente danos públicos ou para fins lucrativos1 foram classificadas como "boatos".

Tomando como exemplo a campanha majoritária para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, na eleição de 2016, principalmente o segundo turno, vimos uma série de boatos que, difundidos nas redes sociais, foram capazes de embaraçar as campanhas dos candidatos Marcelo Freixo (PSOL) e Marcelo Crivella (PRP), que chegaram a criar páginas de checagem de fatos - fact-checking - de suas próprias campanhas.

A imprensa noticiou diversas desinformações, nomeando-as de boatos. Para ilustrar, cita-se que O Globo informou que "Campanhas de Freixo e Crivella vão à Justiça contra boatos na internet"2. O UOL fez uma reportagem falando sobre "O que é boato e o que é verdade sobre Crivella e Freixo na batalha virtual"3 e a Folha de S. Paulo noticiou que "Eleição no Rio tem tática 'antiboato' e suspeita de uso de robôs"4.

De fato, as desinformações que surgiram no segundo turno eram tão absurdas que os candidatos criaram canais de fact-checking, para apresentar informações verídicas, a partir de fontes confiáveis para os eleitores.

A campanha do candidato Marcelo Freixo criou o site https://www.averdadesobrefreixo.com.br/. Algumas das notícias falsas versavam sobre Freixo ter ficado com o dinheiro da família do pedreiro Amarildo de Souza, que desapareceu após entrar na UPP da Rocinha em 14 de julho de 2013, logo após a campanha "Somos todos Amarildo", que arrecadou verbas para a família e para entidades de direitos humanos, ou estar ligado aos black blocks. Este último boato, por exemplo, acabou resultando na criação de uma página no Facebook chamada "Eu tenho ligação com Freixo"5, que era o então presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, que acabou se popularizando em uma série de manifestações espontâneas de apoio à Marcelo Freixo.

Já o candidato Marcelo Crivella (PRB), criou uma seção denominada "Boatos" em seu site oficial https://crivella10.com.br/rio/verdades-x-mentiras/, onde classificava as polêmicas como verdades ou mentiras. Um dos rumores falsos era de que, caso eleito, cobraria entrada para o parque Madureira.

A maioria dos casos de "boatos" ocorreu no Facebook. Mas um caso que viralizou e chamou a atenção da campanha de Marcelo Freixo foi um áudio com alguém imitando a voz do candidato do PSOL, fazendo críticas aos taxistas que circulou no Whatsapp6

As eleições de 2016 se encerraram com o candidato Marcelo Freixo acumulando, quase que integralmente, o tempo disponível da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, como direito de resposta concedido pela justiça eleitoral. O candidato do PSOL pode informar ao eleitorado as notícias verdadeiras7, ante a campanha de difamação e inverdades promovida pelo então candidato Marcelo Crivella, que, segundo o juíz da fiscalização e propaganda à época, Dr. Marcelo Rubioli, tratou-se de propaganda difamatória que não pode ser aceita em uma campanha democrática.

Então, só nas eleições de 2018, o termo boato foi substituído por fake news, e diversos veículos de imprensa que noticiaram o fenômeno, adotaram a nova nomenclatura, que já estava difundido e foi (e é) usado para identificar as notícias falsas como acima conceituada.

Dentre os veículos, destacam-se as seguintes matérias do Estadão "Fake news devem causar impacto em eleições de 2018"8, da Exame "Disseminação de 'fake news' para atacar candidatos marca eleição"9 e da Gazeta do Povo "A eleição das fake news: as mentiras que te contaram e os impactos na campanha"10

Como é de conhecimento público, as desinformações na campanha de 2018 foram massivamente divulgadas via Whatsapp, assim, é possível dizer que houve uma migração do Facebook para o aplicativo de mensagem instantânea. Destaca-se que uma das razões que pode explicar esse processo foi a alteração dos termos de uso do Facebook, por exemplo, com a verificação de perfis falsos, após o escândalo que envolveu a empresa Cambridge Analytica, que utilizou dados coletados no Facebook, tratou-os e utilizou a mesma plataforma para disseminar o conteúdo manipulado, que acabou gerando um estado mental nas pessoas a ponto de influenciá-las na votação do Brexit e na eleição de Donald Trump. A manipulação da opinião pública foi descoberta e a empresa pediu falência em 18 de maio de 2018, antes do período eleitoral.

E como a legislação eleitoral passou a permitir o impulsionamento de conteúdo em provedores de aplicação de internet, regulamentado pela lei 13.488/17, a propaganda eleitoral na internet se massificou.

Diferente de 2016, quando a campanha nas redes foi quase totalmente realizada no Facebook, e não havia previsão legal de impulsionamento de conteúdo na internet, em 2018 o processo também ocorreu no Whatsapp, por uma série de fatores, dentre eles o fato de ser um aplicativo utilizado em um aparelho portátil e a difusão de seu uso, já que em 2018 o Whatsapp tinha 120 milhões de usuários ativos no Brasil, a massificação na divulgação, a velocidade com que cada conteúdo era compartilhado e o difícil - mas não impossível - rastreamento da mensagem.

Na reportagem "Um Brasil dividido e movido a notícias falsas: uma semana dentro de 272 grupos políticos no WhatsApp"11, da BBC News Brasil, apurou-se que dos 272 grupos políticos monitorados, a maioria (33 grupos) era só sobre a campanha de Jair Bolsonaro, em detrimento das campanhas de Haddad, Lula, Ciro e até Cabo Dacciolo. Chama a atenção o fato de que é a rede mais difundida, utilizada por 66% dos eleitores brasileiros.

Ainda segundo o noticiado, em uma semana de monitoramento, foi possível observar "Muita desinformação, como imagens no contexto errado, áudios com teorias conspiratórias, fotos manipuladas, pesquisas falsas; ataques à imprensa tradicional, como capas falsas de revistas e falsa "checagem" de notícias que, de fato, eram verdadeiras; imagens que fomentam o ódio a LGBTs e ao feminismo; uma "guerra cultural" organizada, com ataques sistematizados a artistas em redes sociais; áudios e vídeos de gente comum ou de gente que se passa por gente comum, mas com identidade desconhecida, dando motivos para votar em um candidato".

Para combater a desinformação massivamente disseminada, o Partido dos Trabalhadores criou a plataforma de fact-checking https://lula.com.br/veja-as-mentiras-que-circulam-nas-redes-contra-haddad/, além de um canal de Whatsapp chamado "Zap do Lula 11 974 028 726" para receber denúncias de boatos, mentiras e fake news. As desinformações divulgadas contra a campanha de Fernando Haddad (PT) versavam, por exemplo, sobre a mamadeira de piroca, kit gay nas escolas, que Jean Wyllys seria o ministro da Educação e que a candidata a vice-presidente, Manuela D'Ávila (PC do B) usou uma camisa escrita "Jesus é travesti".

Desconhece-se se a campanha do então candidato Jair Bolsonaro (PSL) criou algum canal de combate a desinformação e checagem de fato, apesar de terem sido identificadas desinformações contra sua campanha12, como por exemplo que Bolsonaro queria anexar o estado do Sergipe à Bahia ou a que o então candidato a vice, General Mourão, havia proposto o confisco da poupança. Pelo contrário, contra o então candidato tramitam duas ações de investigação judicial eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral, a AIJE nº 0601968-80.2018.6.00.0000, proposta pela coligação do candidato Fernando Haddad e a AIJE 0601782-57.2018.6.00.0000, ajuizada pela coligação Brasil Soberano (PDT/Avante). Ambas as ações denunciam a prática de disparo em massa da campanha do então candidato Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão - eleitos presidente e vice-presidente da República no último pleito.

E o Tribunal Superior Eleitoral deve estar muito atento sobre os efeitos que a desinformação gera nos eleitores para as próximas eleições, regulamentando, através da resolução sobre propaganda eleitoral, mecanismos de combate e fiscalização específicos sobre a desinformação, instrumentos de pronta e efetiva resposta às desinformações, além da previsão de punição contra a prática desse tipo de propaganda irregular, por vezes até ilícita. t

Ressalta-se que, muito embora o Tribunal Superior Eleitoral tenha criado o Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições, por meio da portaria 949, de 7 de dezembro de 2017, cuja atribuição, segundo o art. 2º, I era "desenvolver pesquisas e estudos sobre as regras eleitorais e a influência da Internet nas eleições, em especial o risco das fake news e o uso de robôs na disseminação das informações", a resolução 23.551, de 18 de dezembro de 2017, que dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral nas eleições, sequer foi alterada para incluir qualquer regra de combate à desinformação, também não foi apresentada outra Resolução específica sobre o tema.

Sobre a influência da internet nas eleições, destaca-se o artigo do psicanalista Luis Fernando Scozzafave de Souza Pinto intitulado "A psicologia das massas em grupos de Whatsapp nas eleições 2018"13, é analisado, sob o ponto de vista psicológico, os efeitos mentais permanentes que os  grupo de Whatsapp produzem sobre as pessoas, "de baixa racionalidade, alta sugestionabilidade e agressividade explosiva ao longo do tempo", uma vez que as pessoas estão conectadas o tempo todo, o que acaba criando uma mentalidade coletiva capaz de influenciar nas opiniões políticas.

 A propaganda eleitoral destas eleições foram preponderantemente feitas de maneira privada e escondida em grupos de Whatsapp e não mais no espaço público. Uma propaganda realizada de forma íntima e secreta, sem regulação e longe dos olhos do Tribunais Eleitorais - o que vai exigir, cada vez mais, decisões rápidas e altamente tecnológicas destes. A tecnologia chegou às urnas, mas os tribunais se esqueceram de que a tecnologia chegou também na vida cotidiana das pessoas e assim na propaganda eleitoral que deve ser regulada. Longe de ser censura como a conhecemos, a regulação de dispositivos de troca de mensagens (Whatsapp sobretudo) precisa acontecer de modo a reduzir seu poder de criação desses "efeitos psicológicos grupais" (i.e. redução do número de usuários por grupo? Redução do número de encaminhamentos e reencaminhamento de mensagens? etc.). Urgente também é a criação de mecanismo de identificação de "fake news" e, mais importante, a punição dura dos responsáveis e corresponsáveis, mesmo em ambiente privado.

Neste sentido, em agosto de 2019, o TSE criou o programa de enfrentamento a desinformação com foco nas eleições de 202014. Uma das reflexões apresentadas pelo programa é a explicação de como o termo fake news não compreende a complexidade da desinformação, acabando por reduzir a uma simples discordância política, em que pese ser um termo popularizado.

O programa do TSE seis pontos focais: organização interna, alfabetização midiática, contenção à desinformação, identificação e checagem da desinformação, aperfeiçoamento no ordenamento jurídico e aperfeiçoamento de recursos tecnológicos. Google, Facebook, Twitter WhatsApp aderiram oficialmente ao programa.

Reputa-se que a capacitação dos julgadores é um dos pontos mais essenciais, além da regulamentação da propaganda eleitoral especificamente no que diz respeito ao combate à desinformação,  pois não adianta criar regras para os candidatos, partidos políticos e fornecedores de serviços para as campanhas se, diante do problema da desinformação contra um candidato, o julgador não entender a dinâmica do processo de criação e compartilhamento em massa, além de não ter regras específicas de combate à desinformação, para oferecer pronta resposta, determinando que se dê a mesma visibilidade, para alcançar todos os indivíduos que foram atingidos pela desinformação, além de punir os envolvidos no processo da desinformação.

Assim, desde a campanha de 2016 até o pleito de 2018, a dinâmica social foi alterada, principalmente pela evolução tecnológica, que permitiu a sofisticação do processo de criação e disseminação da desinformação. O novo modus operandi, que intensificou os boatos, notícias falsas ou fake news do Facebook para o Whatsapp, demonstra que a prática da propagação de desinformação não é consequência do uso de uma plataforma específica que facilita ou pouco fiscaliza o uso que se faz nela. Pelo contrário, a intensificação entre plataformas demonstra o quão dinâmico é o processo de criação e disseminação da desinformações, que se molda conforme a facilidade que encontra em determinado momento.

Por isso, os desafios para 2020 são enormes e algumas empresas de aplicação de internet já se manifestaram, depois da análise do que aconteceu nas eleições de 2018.

O presidente do Twitter, Jack Dorsey, anunciou não vai mais permitir impulsionamento de conteúdo político na plataforma de maneira global. Para Dorsey, "o alcance da mensagem política deve ser conquistado, não comprado"15.

Facebook informou em outubro do corrente, uma série de medidas que serão tomadas para evitar conter os abusos e a interferência eleitoral na plataforma, visando proteger as eleições dos Estados Unidos de 202016. Dentre as práticas anunciadas, estão o combate à interferência estrangeira, o aumento da transparência, incluindo detalhes adicionais de gastos em nível estadual ou regional para ajudar as pessoas a analisar os esforços de anunciantes e candidatos para alcançar geograficamente os eleitores, e a redução da desinformação e contas falsas.

Especificamente sobre este último ponto, a plataforma pretende prevenir a disseminação de desinformação viral, combater a supressão de votos e interferência e ajudar as pessoas a entender melhor as informações que elas veem online no Facebook e no Instagram. Dentre as ações, estão a redução na distribuição no feed de contas, páginas ou grupos que reiteradamente compartilham notícias falsas; o conteúdo no Facebook e no Instagram que tenha sido marcado como falso ou parcialmente falso por uma agência de checagem de fatos independente parceira passará a ser rotulado como "informação falsa" e terá um link para o artigo da agência de checagem de fatos sobre aquele conteúdo; também será introduzindo um novo pop-up que aparecerá quando as pessoas tentarem compartilhar publicações no Instagram que incluam conteúdo que tenha sido desmentido por uma agência de checagem de fatos; por fim, para impedir a disseminação de desinformação e ajudar as pessoas a identificá-las, a empresa faz parceria com organizações e especialistas da área de alfabetização midiática.

Já o Whatsapp publicou em 6 de fevereiro do corrente o texto "Stopping Abuse: How WhatsApp Fights Bulk Messaging and Automated Behavior", que relata como a empresa tem desenvolvido mecanismos de machine learning para combater mensagens em massa e comportamento automatizado, analisando contas abusivas, usando as informações disponíveis para fazer a engenharia reversa do comportamento verificado para evitar abusos semelhantes no futuro. Assim, baniu algumas contas, reduziu grupos e quantidade de compartilhamentos, identificou mensagens e quantidade de vezes que foram compartilhadas, além do mecanismo de denunciar contato indesejado.

 E no blog do YouTube, a empresa anunciou17 em junho deste ano que vai remover de sua plataforma vídeos ofensivos e discriminatórios, como forma de um trabalho contínuo para combater o discurso de ódio e supremacista, além de proibir a monetização de contas que promovam conteúdo discriminatório. Também serão banidos da plataforma, os vídeos que promovem a desinformação, através de conteúdos que neguem fatos históricos, documentados,

Por fim, com as revelações feitas pelo The Intercept Brasil sobre a troca de mensagens entre os integrantes da força tarefa da Operação Lava Jato e o então juiz Sérgio Moro, série de reportagens conhecida como Vaza Jato18, a plataforma Telegram se popularizou entre os cidadãos que acompanharam a divulgação das conversas entre juízes, promotores e delegados da Operação Lava Jato. O aplicativo é o único que não se manifestou ou tem políticas de combate a abusos na sua plataforma, o que pode soar como um alerta para a eleição de 2020. Sem regras de quantidade de pessoas no grupo, ou limitação de compartilhamentos, pode ser o Telegram a próxima ferramenta de disparo em massa de mensagens tendentes a manipular a opinião pública?

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1 - Definição cunhada pelo Grupo de Especialistas de Alto Nível em 'Fake News' e Desinformação Online da Comissão Europeia. Disponível em: Final report of the High Level Expert Group on Fake News and Online Disinformation

12 - Clique aqui. 

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Evelyn Melo Silva

Evelyn Melo Silva

Advogada, mestranda em Direito Público pela UERJ. Especialista em direito eleitoral e digital. Membro da ABRADEP e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/RJ.

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