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A propriedade como fundamento do Estado de Direito na filosofia de Kant

O puro ato unilateral que visa assegurar o direito, por mais que ele seja racionalmente legítimo, não é garantia de que os demais membros da coletividade irão legitimá-lo nem tampouco agir com respeito ao direito à posse particular.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Atualizado às 09:39

Já nas primeiras páginas da Metafísica dos Costumes, texto posterior às duas primeiras críticas, revelando a maturidade intelectual de Kant, o autor oferece as balizas daquilo que viria a se constituir como a forma mais bem-acabada da sua filosofia do direito.

De fato, como nos adverte, trata-se de um direito fundado segundo os conceitos da mera razão, estabelecendo "um sistema emanado da razão, aquilo que poderia se chamar de metafísica do direito [...]" (2011a, p. 5).

Com efeito, a obra de 1797 estabelece um vínculo estreito com a segunda crítica numa sequência natural da filosofia prática kantiana que, não obstante, apresenta-se como o desenvolvimento filosófico de Kant no tocante à liberdade dos homens e a sua ação de acordo com os princípios racionais do fazer e/ou do deixar de fazer.

Deste modo, a filosofia dos costumes ocupa-se com as leis da liberdade do homem no exercício das ações que devem ou não ser praticadas, com os fundamentos do agir humano, quer relativos às ações atinentes às atividades internas, quer referentes à regulação das relações interpessoais dos indivíduos numa coletividade, referindo-se assim àquilo que deve ser.

Sob a perspectiva da exposição dos Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito que, de resto, apresenta-se como uma subdivisão da Metafísica dos Costumes, teremos a elaboração e os desdobramentos da ideia kantiana quanto ao direito, exposto, por seu turno, a partir dos direitos público e privado. Por outra perspectiva, agora a partir da segunda parte da obra e desenvolvida sob os Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude, Kant se ocupará dos fundamentos a priori da ética.

Semelhantes e distintos, a ética e o direito aproximam-se na medida em que ambos versam sobre a liberdade e distanciam-se quanto ao fundamento da ação. Se, por um lado, a ética se alicerçará no respeito pela lei moral como aquilo que motiva a ação dos homens, o direito, por seu turno, terá por pressuposto a imposição exterior que coagirá os mesmos homens à prática das ações que convém à coletividade, sendo esta uma atitude legal que, diferentemente da primeira, Kant apresentará como moral.

A despeito dos elementos teóricos que distinguem a ética e o direito, condicionando racionalmente a sua atividade ao exercício do livre arbítrio, vinculando a atividade do direito a uma relação externa dos homens entre si, Kant finalmente define o direito como "o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal da liberdade".

Ora, no campo das relações humanas, do uso concreto da liberdade, ela se exercita sobretudo em relação ao mundo e a tudo que o rodeia, podendo dele se apossar, modificar, adaptá-lo à melhor realidade. Das diversas formas como os homens se relacionam com o mundo, como detentor da própria liberdade, eles se apropriam daquilo que no mundo está à sua disposição.

Como possíveis objetos externos de posse, podemos considerá-los sob duas perspectivas, ou eles podem ser "diferentes de mim" enquanto sujeito, ou, de outro modo, "se encontram situados (positus) noutro lugar no espaço e no tempo" (Kant, p.68). A posse externa pode, portanto, ser meramente empírica, no sentido da detenção física do objeto ou, inversamente, uma posse inteligível. Aquilo que se possui e pode-se afirmar como seu manifesta-se segundo duas possibilidades não necessariamente excludentes. Pode-se ter algo como seu por meio da posse empírica, ou seja, aquilo que graças à liberdade inata que lhe permite tomar posse de bens, possibilita ter à mão ou defender por meio de suas armas ou; por outro lado, aquilo que independentemente da posse física pode-se afirmar como seu por direito.

Por esse modo, funda-se uma relação jurídica segundo a qual um sujeito qualquer sendo dotado de direito, tendo em vista que quando afirmar ter a posse legítima de determinado bem não só se afirma como detentor de tal direito mas, simultaneamente, pressupõe como lesivo o uso que dele porventura fizerem sem o seu consentimento; dito em outras palavras, pela posse inteligível exerce-se não somente no direito particular como também se estabelece uma mútua relação de respeito segundo o princípio da lei universal da liberdade anteriormente referida.

Contudo, o puro ato unilateral que visa assegurar o direito, por mais que ele seja racionalmente legítimo, não é garantia de que os demais membros da coletividade irão legitimá-lo nem tampouco agir com respeito ao direito à posse particular. Mais do que isso, como nos recorda Kant, os homens considerados no seu estado de natureza não podem garantir a legitimidade das leis sendo, portanto, um direito apenas provisório que, para a concretização da sua efetividade, ou passagem a um direito peremptório, necessitaria passar à condição de uma instituição forte que pudesse garantir o mútuo respeito e a aplicabilidade das leis por meio, inclusive, da coerção. Ora, como podemos observar, a instância que garante a legitimidade das leis, bem como a segurança quanto ao cumprimento e ao respeito no que toca aos interesses públicos e privados reside na criação do Estado Civil que, segundo a argumentação racional Kantiana, teria a sua efetividade por meio da formulação racional do direito à propriedade.

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KANT, I. A Metafísica dos Costumes. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2ª ed., 2011.

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*Glauber Freire de Oliveira é advogado e filósofo.

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