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Direito de Propriedade Intergeracional

Quem são as gerações futuras e qual o sentido de se falar em um direito de propriedade intergeracional?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Atualizado às 08:05

Em 2019 assistimos aos protestos de crianças e adolescentes em defesa do meio ambiente que ocorreram no mundo todo impulsionados pelas manifestações lideradas pela adolescente Greta Thunberg na Suécia. A jovem que passou a deixar de assistir aulas nas sextas-feiras para protestar sozinha em frente ao parlamento sueco ganhou notoriedade quando postou suas fotos sentada na rua com cartazes nas redes sociais com a hashtag #fridaysforfuture e inspirou uma onda de protestos por todo o mundo.

O que mais chamou a atenção nos acontecimentos foi o protagonismo de crianças e adolescentes com relação à preservação ambiental. O meio ambiente, com efeito, não pertence somente aos que estão usufruindo dos recursos naturais neste exato momento, mas também às gerações futuras. No Brasil a Constituição Federal de 1988 estipula uma exigência de solidariedade entre as gerações presentes e com as gerações futuras no artigo 225 quando prevê que compete à coletividade e ao poder público o dever de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Mas quem são as gerações futuras e qual o sentido de se falar em um direito de propriedade intergeracional?

O jurista e filósofo belga François Ost desenvolveu em sua obra conceitos como "natureza-projeto", "meio justo" e "patrimônio comum ecológico" que sustentam o entendimento de que seria possível falar no plano constitucional brasileiro em bem ambiental constitucional e em um direito subjetivo fundamental ao ambiente. O ambiente, enquanto bem jurídico autônomo coletivo, teria um conjunto de titulares indetermináveis, ao passo em que existiria também uma dimensão subjetiva individualizável da proteção ambiental1.

Ost elaborou ainda um "modelo de transmissão de um patrimônio comum" segundo o qual os beneficiários seriam as futuras gerações dos seres humanos pensadas em um linha temporal infinita, não restrita, portanto, a algumas gerações apenas2. Ele entende que a obrigação das gerações presentes para com as futuras não se caracteriza pela reciprocidade, mas deve ser equilibrada e percebida como transitiva, uma vez que o patrimônio comum ecológico já foi herdado das gerações antecedentes. Pensada desse modo dinâmico, não se trataria de uma obrigação unilateral3.

A questão central é que as gerações futuras somente poderão se constituir se lhes for assegurado no presente o direito subjetivo fundamental ao patrimônio comum ecológico.

O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado da geração vindoura é futuro, mas a norma que o prevê é presente, tal como o valor nela consagrado. O que significa que a norma, pelo simples fato de vigorar e de possuir conteúdo axiológico tido por intemporal, impõe à geração atual o dever de se abster de praticar qualquer tipo de conduta que possa obstar ao seu futuro preenchimento e concretização4.

Os direitos intergeracionais devem ser compreendidos enquanto direitos coletivos, no sentido de que as gerações mantêm esses direitos enquanto grupos. Assim, tais direitos são indiferentes à identidade das composições individuais de cada geração, beneficiando os membros das gerações e não apenas o indivíduo5. Mas nada impede o reconhecimento do indivíduo como titular potencial do direito fundamental ao patrimônio comum ecológico ou que os futuros indivíduos venham se beneficiar das normas constitucionais que preveem os direitos fundamentais relativos ao ambiente.

Segundo Canotilho, é preciso reconhecer também um direito subjetivo ao meio ambiente para que este seja afirmado como bem jurídico autônomo em moldes jurídico-constitucionais. Assim, não bastaria consagrar constitucionalmente o direito à proteção do ambiente como dever/tarefa do Estado, esta perspectiva não ofereceria operacionalidade suficiente para recortar um âmbito normativo garantidor de posições subjetivas individuais no que respeita ao ambiente6.     

No direito anglo-saxão há o instituto do "trust", que permite nomear um guardião (trustee) da natureza, encarregado da sua proteção e gestão judiciosa, em benefício do público presente e futuro7.

A noção de patrimônio comum ecológico se assenta na compreensão de que o meio, quadro das relações homem/natureza, consiste em um "patrimônio urdido de direitos privativos, mas também de usos coletivos, no prolongamento dos investimentos simbólicos e vitais que a humanidade realiza, nesta natureza que lhe dá existência"8. Assim, a noção de patrimônio implica uma dialética entre o ser e o haver, a ideia de continuidade, de garantia de suas faculdades de regeneração, a sobreposição entre interesses vulgares e superiores - transtemporais9.

Afirmar a existência de um direito de propriedade intergeracional é afirmar o direito das gerações futuras ao patrimônio comum ecológico, mas é dizer ainda de uma outra maneira que o direito ao meio ambiente equilibrado consiste também em direito subjetivo fundamental e quiçá assumiria mesmo o caráter de direito real.

O que mais caracteriza o direito real é o poder direto do titular sobre a coisa, que se exerce "erga omnes" ou contra toda a coletividade. Assim, o proprietário é aquele que pode usar diretamente ou por meio de terceiro (emprestar), fruir (alugar) e dispor (alienar, alterar, destruir, consumir) o bem, podendo perseguir o objeto de seu direito onde quer que esteja e reivindicá-lo do poder de quem injustamente o possua10.

Ora, decorre da exigência de solidariedade intergeracional a necessidade de um planejamento racional para conciliar o desenvolvimento e a sustentabilidade. A Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano no Princípio 14 estatui que o planejamento racional constitui um instrumento indispensável para conciliar as diferenças que possam surgir entre as exigências do desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente.

Trata-se, portanto, de impor uma limitação legal ao direito de propriedade das gerações presentes sobre o patrimônio comum ecológico para garantir o acesso das futuras gerações ao meio ambiente equilibrado. E o instrumento previsto para a obtenção deste resultado é o cuidadoso planejamento racional e a administração adequada dos recursos naturais de tal modo que toda a humanidade participe dos benefícios de tal uso.

O direito de propriedade intergeracional, portanto, é aquele que cabe às gerações futuras e, embora limitado no espaço-tempo, se projeta no presente até o futuro através do planejamento contínuo da utilização dos recursos naturais.

Se no Brasil qualquer pessoa pode propor ação popular para fazer cessar ato lesivo ao meio ambiente, considerando que o meio ambiente é patrimônio comum ecológico é possível ir além, é possível visualizar um direito subjetivo fundamental à propriedade deste patrimônio para a constituição das gerações futuras enquanto coletividade ou para assegurar o futuro de apenas um indivíduo da próxima geração.  

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1 SILVEIRA, Clóvis Eduardo da; GRASSI, Karine. Configuração e justificação de um direito fundamental ao meio ambiente à luz dos conceitos de meio justo e de natureza-projeto em François Ost. Revista Direito e Práxis v. 5, n. 8, 2014, p. 76-93.

2 LIEDKE, Mônica Souza; SCHIOCCHET, Taysa. O Direito e a Proteção das Gerações Futuras na Sociedade de Risco Global. Revista Veredas do Direito, v. 9, n. 17, 2012.

3 Idem.    

4 SEQUEIRA, Elsa Vaz de. Direitos sem Sujeitos?. Revista Justiça entre Gerações, 2017.

5 LIEDKE, Mônica Souza; SCHIOCCHET, Taysa. O Direito e a Proteção das Gerações Futuras na Sociedade de Risco Global. Revista Veredas do Direito, v. 9, n. 17, 2012.

6 SILVEIRA, Clóvis Eduardo da; GRASSI, Karine. Configuração e justificação de um direito fundamental ao meio ambiente à luz dos conceitos de meio justo e de natureza-projeto em François Ost. Revista Direito e Práxis v. 5, n. 8, 2014, p. 76-93.

7 Idem.

8 Idem.

9 SILVEIRA, Clóvis Eduardo da; GRASSI, Karine. Configuração e justificação de um direito fundamental ao meio ambiente à luz dos conceitos de meio justo e de natureza-projeto em François Ost. Revista Direito e Práxis v. 5, n. 8, 2014, p. 76-93.

10 COSTA, Dilvanir José da. O Conceito de Direito Real. Revista de Informação Legislativa, n. 144, 1999.

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*Adérica Ynis Ferreira Campos é advogada, especialista pela Escola Superior do Ministério Público da Bahia.

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