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O caso "Porta dos Fundos" - Uma análise da decisão judicial do TJ/RJ de censura do programa humorístico "a primeira tentação de cristo"

Para todos os fins práticos e imediatos deste caso concreto, a questão está resolvida.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Atualizado em 15 de janeiro de 2020 14:13

Como já era esperado, decisão liminar do STF cassou, em questão de poucas horas, a aberrante decisão anterior de um desembargador do TJ/RJ que determinava a remoção do especial de Natal da trupe Porta dos Fundos do catálogo da Netflix.

Para todos os fins práticos e imediatos deste caso concreto, a questão está resolvida.

Do ponto de vista da análise do status da teoria do Direito no Brasil e da aplicação das normas legais pelo Judiciário, no entanto, o exame do caso faz jus a considerações adicionais.

Li a decisão de 40 páginas do desembargador Benedicto Abicair. Ao mesmo tempo em que é um absurdo jurídico em suas conclusões, a decisão é muito representativa do estado de coisas em que vivemos - marcado pela naturalização da discricionariedade judicial, pelo ativismo togado e pela colonização predatória do Direito pela moral (ou, melhor dizendo, por um moralismo difuso de baixa densidade).

Em síntese, a decisão do desembargador Abicair causa espécie e perplexidade pelas seguintes razões:

I. Trata-se de concessão de tutela urgência, por meio de liminar, em cujas razões o julgador afirma expressamente que não irá analisar "quem está com o direito", limitando-se à adoção de um único critério de decidir - qual seja: a ponderação sobre qual medida (proibir temporariamente a exibição da obra artística em questão ou mantê-la "no ar") seria potencialmente menos lesiva e menos danosa à sociedade.

O problema, aqui, é elementar: nos termos do Art. 300 do Código de Processo Civil, a concessão de tutela de urgência depende da verificação da existência concomitante de dois fatores. Primeiro, a presença de elementos que evidenciem a probabilidade do direito. Segundo, o perigo de dano (ao direito subjetivo da parte) ou de risco ao resultado útil do processo. Como todos os profissionais da área jurídica bem sabem, não há nada de novo na referida previsão legal, que apenas reafirma as velhas lições (cujas raízes encontram-se no Direito Romano clássico) sobre a necessidade de identificação do "fumus boni iuris" e do "periculum in mora".

Não obstante, o magistrado Abicair, em sua decisão, afirma expressamente que não fará nenhum exame de mérito (nem sequer em caráter preliminar) a respeito da eventual existência (ainda que meramente indiciária) do direito pleiteado pela parte.

Em outras palavras, o magistrado estabelece textualmente que irá se ater única e exclusivamente ao exame daquilo que ele interpreta como possível "periculum in mora", ignorando expressamente o requisito legal do "fumus boni iuris" (ou, na dicção literal do CPC, a existência de "elementos que evidenciem a probabilidade do direito").

Como se vê, não se trata apenas de decisão que consagra uma "interpretação" excêntrica da normatividade existente. O caso é mais grave do que isso. Trata-se de decisão que adota expressamente uma metodologia solipsista por meio da qual o julgador não ignora somente princípios jurídicos e hermenêutica constitucional, mas sim os mais básicos requisitos legais para concessão de tutela de urgência, textualmente positivados na norma processual vigente.

Não se trata, portanto, de uma decisão "positivista", mas sim de uma decisão ativista, epistemologicamente anárquica e estribada na discricionariedade. O julgador em questão não admite que a sua vontade seja "tolhida" nem mesmo pelas mais inequívocas, literais e tradicionais normas criteriológicas para aplicação da lei em situações análogas.

II. A decisão faz menção ao reconhecimento da repercussão geral da matéria, pelo STF, no RE 662.055/SP - apenas para reconhecer, logo em seguida, que "o referido Recurso Extraordinário ainda não teve seu mérito apreciado pelo Supremo Tribunal Federal".

Ora, qual é o sentido de citar como "precedente" um recurso judicial ainda em trâmite, ao qual não se pode reconhecer qualquer valor como precedente nem mesmo em sentido lato? Não se trata de distinguir um "precedente" judicial em sentido coloquial amplo de um precedente strito sensu (a "stare decisis" do Direito anglo-saxão), mas sim de reconhecer que o referido RE, até o presente momento, não está apto a ser utilizado como argumento persuasivo em prol de tese alguma em relação à matéria, na medida em que, por não ter tido o seu mérito apreciado, não configura um "precedente" nem sequer para fins argumentativos.

III. A decisão se apoia no RHC 14.303, julgado pelo STF em março de 2018, utilizando-o como um precedente para fins de estabelecer que a liberdade de expressão encontra limites na incitação ao ódio contra denominações religiosas.

Todavia, o julgador não procede com nenhuma análise (nem sequer preliminar e indiciária) sobre a eventual existência de "incitação ao ódio contra denominações religiosas" no programa humorístico da produtora Porta dos Fundos. Pelo contrário: o argumento desenvolvido pelo desembargador Abicair constrói uma distinção entre "crítica", "debate" e "achincalhe".

Para o referido julgador, as duas primeiras figuras estariam amparadas pelo direito constitucional à liberdade de expressão, enquanto que a última seria uma espécie de abuso por meio do ato de "desmerecer algo ou alguém por motivos subjetivos, sem medir consequências".

Ora, mas não existe nenhum tipo de precedente do STF no sentido de que o direito à liberdade de expressão encontraria limites neste pseudo-instituto-jurídico do "achincalhe".

Se existisse tal tipo de jurisprudência estabelecida no nosso ordenamento jurídico, na prática estaríamos diante da inviabilização da existência de qualquer tipo de manifestação artística de cunho satírico, humorístico ou cômico.

Com efeito, a decisão do desembargador Abicair deixa implícito que o "achincalhe" seria algo equivalente e indistinguível do ato de "incitação ao ódio". A inexistência de uma distinção lógica e adequada neste sentido automaticamente transformaria, em última instância, todo humorista em um praticante de "hate speech" - o que por si só atesta o absurdo da indevida equiparação feita na decisão ora examinada.

IV. A decisão judicial em questão utiliza, como fundamentos, obras e decisões anteriores que vão exatamente na contramão das conclusões do magistrado Abicair. Na fundamentação de sua decisão, o julgador faz referência à obra "Colisão de Direitos Fundamentais: Liberdade de Expressão e de Comunicação e Direito à Honra e à Imagem", de autoria do ministro Gilmar Mendes, bem como aos precedentes sobre a matéria oriundos da Corte Constitucional Alemã.

No entanto, nenhuma das referências trazidas à baila legitima a intervenção judicial ao direito à liberdade de expressão para fins de proibir e censurar "achincalhes". O que o ministro Gilmar Mendes sustenta, no trecho de sua obra que é colacionado à decisão, vem a ser o caráter não absoluto do direito à liberdade de expressão (o que, por si só, é uma obviedade capaz de gerar pouca ou nenhuma controvérsia entre os juristas) e a possibilidade, no ordenamento jurídico brasileiro, de que o LEGISLATIVO (e não o Poder Judiciário) "discipline o exercício" de tal direito (principalmente no tocante à liberdade de imprensa), "tendo em vista sobretudo a proibição do anonimato, a outorga do direito de resposta e a inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas".

Como se vê, não é possível se valer da obra de Gilmar Mendes para concluir que o Poder Judiciário estaria legitimado a censurar "achincalhes" em nome de valores morais religiosos, tampouco para "acalmar os ânimos" de pessoas que, sem terem sofrido qualquer violação concreta aos seus direitos de personalidade, tenham eventualmente ficado descontentes, nervosas ou agressivas em resposta a um trabalho artístico com elementos de "achincalhe".

Ainda em relação a este particular, cumpre destacar, com todo o respeito ao ilustre magistrado, que se mostra de todo reprovável distorcer o conteúdo ou o teor de obras acadêmicas e de decisões judiciais para utilizá-las artificialmente como legitimação teórica para um argumento que, ao fim das contas, é estabelecido precisamente ao arrepio das suas próprias fontes declaradas de fundamentação. Com a devida vênia, é impossível deixar de observar que tal prática gera, no mínimo, a aparência de má-fé processual. Tanto isso é verdade que, quando tal conduta é praticada por advogado, ela pode até mesmo configurar infração ético-disciplinar, nos termos do Art. 34, XIV da lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), que determina que constitui infração disciplinar o ato de "deturpar o teor de dispositivo de lei, de citação doutrinária ou de julgado [.] para confundir o adversário ou iludir o juiz da causa".

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*Henrique Abel é doutor em Direito pela UNISINOS-RS e delegado da Escola Superior de Advocacia do Rio Grande do Sul (ESA/RS) na OAB Subseção Novo Hamburgo.

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