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Reflexões sobre o ADIn RFB 5/19 e o planejamento tributário abusivo

O que se analisa é aplicabilidade do entendimento firmado no que se refere aos limites à competência do fisco para rejeitar planejamentos tributários.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Atualizado às 11:27

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Quando todos caminhavam para o encerramento do ano de 2019, com as atenções voltadas ao planejamento e início de 2020, a Receita Federal do Brasil ("RFB") publicou o relevante Ato Declaratório Interpretativo 5/19, que buscou esclarecer o tratamento tributário aplicável aos investimentos do não residente, previsto nos artigos 88 a 98 da instrução normativa 1.585/15. Estes dispositivos regulamentam a isenção do imposto de renda concedida aos ganhos de capital auferidos decorrentes dos investimentos de estrangeiros no país.

Esta desoneração beneficia diretamente os investimentos de portfólio, realizados por fundos de investimento, fundamentais para o desenvolvimento do mercado de capitais do Brasil. Acontece que, por muito tempo, esta desoneração foi objeto de controvérsia entre o fisco e contribuintes.

Isso porque, o fisco exigia ampla transparência com relação à identificação dos beneficiários dos investimentos, com a demonstração de que em todos os níveis da estrutura restasse comprovado ser o investidor, de fato, estrangeiro.

A razão principal dessas exigências era combater as operações conhecidas como Roading-Tripping, isto é, o investidor residente, ao invés de realizar o investimento no Brasil de forma direta, utiliza-se de uma estrutura estrangeira para tanto, usufruindo, por consequência, da isenção do imposto de renda sobre os ganhos de capital auferidos. A situação acarretou grande insegurança jurídica, com a lavratura de diversos autos de infração.

A RFB classificava essas operações como abusivas, não oponíveis ao fisco, já que possuíam como único objetivo a economia tributária. Os contribuintes, por sua vez, argumentavam que a legislação não permitia uma análise acerca da origem do investidor, para além daquele que realizava diretamente os aportes no país. A partir daí, seguiu-se uma longa discussão.

A RFB, em clara tentativa de trazer previsibilidade, esclareceu, através da norma complementar em questão, que "a origem do investimento, para fins de aplicação do regime de tributação previsto nos artigos 88 a 98 da instrução normativa 1.585, de 31 de agosto de 2015, será determinada com base na jurisdição do investidor direto no país, exceto nos casos de dolo, fraude ou simulação".

Após este posicionamento não resta, portanto, qualquer dúvida. A identificação do investidor direto é suficiente para a concessão da isenção em questão, o que deve acarretar diminuição da litigiosidade relacionada ao tema. Apesar do acerto e importância deste entendimento, o que nos chamou atenção foi a parte final do pronunciamento, que condiciona a aplicação desta interpretação à inexistência, nos casos concretos, da presença de dolo, fraude ou simulação.

Merece destaque o fato de a RFB, ao consignar as hipóteses legitimadoras de desconsideração da operação realizada pelo contribuinte, limitá-las às figuras previstas de forma expressa na legislação, rejeitando conceitos extrajurídicos ou dotados de alto grau de vagueza, como propósito negocial e a figura do abuso, respectivamente.

Esta limitação à desconsideração dos negócios jurídicos às hipóteses de dolo, fraude e simulação, levada a cabo pelo ato interpretativo, é da mais alta relevância e merece uma análise criteriosa para além da situação fática constante na norma analisada. É que, atualmente, o debate acerca do planejamento tributário e os seus limites ocorrem em um cenário bastante polarizado, em que o único e verdadeiro consenso é, justamente, sobre a existência de acirrada divergência1. Os posicionamentos vão de um formalismo exacerbado, com grande liberdade à atuação dos sujeitos passivos, até, mais recentemente, um pós-positivismo valorativo, substituindo o "tudo é permitido" "por tudo é proibido"2. Este último, inclusive, é bastante recorrente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Ambos os extremos acarretaram inconvenientes e problemas. Especificamente com relação à resposta ao formalismo, a partir da doutrina do propósito negocial, permitiu-se a invasão da subjetividade e valores na aplicação do direito tributário, com o esvaziamento da segurança jurídica. A ausência de critérios claros do que representaria motivos extra tributários relevantes para economia fiscal descambou em um decisionismo, assim entendido como a troca do texto legal, pela vontade do aplicador. Um cenário arbitrário e perigoso.

Mas, no ápice deste contexto de subjetividades e valores, a RFB achou por bem limitar a desconsideração de uma operação tida por ela como abusiva, apenas quando presente o dolo, a fraude e a simulação. Ao proceder desta forma, o fisco federal percorreu caminho diferente do que vem sendo adotado por diversos agentes de fiscalização, bem como os órgãos responsáveis pelo controle da legalidade dos lançamentos tributários.

A reflexão proposta consiste na seguinte pergunta: é possível a aplicação deste posicionamento mais restritivo da atuação da fiscalização na análise de outras estruturas, que são, frequentemente, objeto de questionamentos acerca de sua legitimidade perante o fisco, como é o caso do ágio e da redução do capital social com a devolução ao sócio pelo valor contábil para posterior alienação?

Acreditamos que sim. Isto porque, em que pese as diversas peculiaridades de cada uma dessas operações, bastante complexas por si só, o cerne das discussões travadas é o mesmo: a classificação da operação como abusiva, apesar de não violar a lei, e a fundamentação para sua desconsideração a partir do propósito negocial.

Não há qualquer razão para limitar a interpretação dada pela RFB no caso de Roading-Tripping quando suas razões servem, perfeitamente, a diversas outras situações, comuns à experiência tributária brasileira. Afasta-se, desde logo, eventual argumento no sentido de que, por tratar de isenção, tal interpretação não poderia ser expandida, devendo ser interpretada de forma literal como prevê o art. 111, II do CTN. Isso porque, a proposta aqui defendida não busca alargar o campo de incidência da isenção. Esta permanece a mesma. O que se analisa é aplicabilidade do entendimento firmado no que se refere aos limites à competência do fisco para rejeitar planejamentos tributários.

Com isso, não se está a defender uma volta ao formalismo e a liberdade incondicionada para a realização de atos e negócios jurídicos destinados à redução da carga tributária, mas sim a construção de critérios intersubjetivamente controláveis e seguros para ambas as partes do jogo. Não há como negar que o dolo, a fraude e a simulação gozam de tradição jurídica, sendo amplamente conhecidas e trabalhadas pela doutrina e jurisprudência, ao contrário do que ocorre com o propósito negocial e o conceito de abuso no direito tributário, seja lá o que isto signifique.

Ao restringir a atuação da fiscalização às categorias positivadas no ordenamento jurídico, foi dado um importante passo no refinamento e aprimoramento da aplicação do direito tributário. É necessário que se tenha claro que o problema não está em negar eficácia a determinado planejamento tributário, mas na justificativa para tal negativa. Não é demais lembrar que mais importante que a decisão, é o caminho até ela.

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1 Para sistematização das diversas teses acerca do planejamento tributário no brasil, conferir a recente obra de Sérgio André Rocha: Rocha, Sérgio André. Planejamento Tributário na Obra de Marco Aurélio Greco. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2019.

2 Esta transição entre os dois posicionamentos foi percebida com cautela pelo próprio Marco Aurélio Greco, um dos críticos mais importantes ao método formalista na análise dos casos referentes a planejamento tributário. Greco. Marco Aurélio. Planejamento Tributário. "Planejamento tributário: nem tanto ao mar, nem tanto à terra". Grandes questões atuais do Direito Tributário. 10º volume. São Paulo: Dialética, 2006, p. 326, apud, SANTOS, Ramon Tomazela; FAJERSZTAJN, Bruno. Planejamento tributário - entre o positivismo formalista e o pós-positivismo valorativo: a nova fase da jurisprudência administrativa e os limites para a desconsideração dos negócios jurídicos. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 223, p. 49, 2014.

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*Gabriel Moreira é colaborador do escritório da Fonte, Advogados.

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