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O direito comercial e maquiavel - Um tratamento com doses de Maquiavel faz muito bem

Neste artigo não temos a intenção de concordar ou de discordar dessa visão de Maquiavel, mas procurar demonstrar em poucas linhas que seus ensinamentos podem ser aproveitados para uma análise construtiva do Direito Comercial.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Atualizado às 10:39

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Nicoló di Bernardo dei Machiavelli (Maquiavel para os íntimos), ficou conhecido entre as pessoas letradas principalmente pela sua obra O Príncipe, ainda que tenha dado à luz a outros textos. Muito citado, menos verdadeiramente lido e, principalmente, muito menos entendido. Podemos dizer que, para a grande maioria dos que a ele se referem, nosso autor teria sido alguém que ensinou a usar o mal em proveito próprio, adotando medidas maquiavélicas, ou seja, tendenciosas ao alcance dos objetivos dos governantes (Príncipes, na sua acepção). Neste artigo não temos a intenção de concordar ou de discordar dessa visão de Maquiavel, mas procurar demonstrar em poucas linhas que seus ensinamentos (ou descaminhos, como queiram) podem ser aproveitados para uma análise construtiva do Direito Comercial1.

Ainda que dificilmente se possa encontrar qualquer referência ao comércio e a legislação pertinente nas comunas italianas ao tempo da vida de Maquiavel, podemos ser levados a crer que ele conhecia bem essa área, uma vez que, entre outras funções, foi Secretário de Estado do Grão-Ducado da Toscana. E, como se sabe, principalmente na intimidade das corporações de ofícios das cidades da famosa Bota, nas quais o comércio foi exercido com grande intensidade, o Direito Comercial teve as suas origens, entretecido na prática dos mercadores. Se Maquiavel não pisou nessa canoa na obra em apreço, devemos inferir que sua preocupação foi com a Política, ou seja, com a Arte de Governar.

Para os nossos propósitos, tomemos como fundamento do nosso objetivo algumas considerações, presentes no Capítulo VI do Príncipe, intitulado Dos Principados Novos que são Conquistados com Armas Próprias e Virtuosamente.

Logo no início desse trecho, Maquiavel ensina que quando os homens trilham sempre as estradas batidas pelos outros e procedendo em suas ações por imitações, não sendo possível seguir fielmente as sendas alheias nem alcançar a virtude do que se procura imitar, um homem prudente deve seguir sempre pelos caminhos percorrido por grandes homens e imitar aqueles que foram excelentes, de modo que, não sendo possível chegar à virtude destes, pelo menos que consiga dela sentir algum odor (bom odor, acrescentamos).

Em resumo para nós particularmente, na vida é mister prestar atenção e seguir a experiência histórica de quem tenha se mostrado excelente, evitando a busca de novidades perigosas. Aqui a tentação de aplicar isso à política brasileira mais recente (pela negativa) é quase que inarredável, mas o objetivo preciso em vista mostra-se mais forte. E se o leitor nos conhece um pouco e já leu alguns dos textos cometidos nos últimos tempos, sabe muito bem que está em vista aqui a apreciação da corrente tentativa de desmoralização do Direito Comercial, secularmente praticado, para se colocar em seu lugar uma esfinge jurídica que jamais será decifrada e que devorará inexoravelmente todos os circunstantes.

Cabe, neste momento perguntar qual a motivação dos Príncipes, segundo Maquiavel, e quais as motivações dos pais das mudanças que eles pretendem introduzir no Direito Comercial. Quanto às primeiras, elas podem ser entrevistas na dedicatória que aquele autor fez ao jovem Lorenzo dei Medici, vale dizer, a busca da grandeza e da fortuna que lhe seriam propiciadas pelas suas qualidades, que poderiam talvez ser traduzidas por poder e riqueza ou vice-versa, como causa eficiente e seu efeito. E sua atuação se daria no campo da política.

Do lado do Direito Comercial, a novidade corresponde ao oferecimento de um cesto de figos (dentro do qual, verdadeiramente se encontram víboras dotadas de veneno mortal), podendo se dizer que as motivações seriam as mesmas, mas em um plano bem rasteiro. E tudo começou com um anteprojeto de lei, desdobrado (ou imitado) depois em projetos de lei, um do Senado outro da Câmara. No nosso longo tempo a serviço de um órgão público, costumava-se dizer malevolamente que alguns colegas ascenderam nas suas carreiras pela sua qualidade de carimbadores malucos, exímios aplicadores de um pedaço de madeira emborrachado e molhado em tinta indelével sobre muitas folhas de papel. Seria essa, mutatis mutandis, a motivação dos proponentes de reformas do Direito Comercial, isto é sua passagem para a história por terem carimbado um novo código. Aqui tudo com letra minúscula por motivos que podem ser imaginados.

Voltando ao passado das corporações de ofícios, pergunta-se quais teriam sido os motivos que as levaram a elaborar corpos de normas destinados a reger as suas atividades, aplicáveis ao rol dos seus membros? Havia uma motivação egoísta no bom sentido, na medida em que, por exemplo, as falências de comerciantes dentro do âmbito de uma corporação determinada prejudicavam todo o grupo como resultado de um efeito dominó. Para reparar o problema duas medidas eram tomadas, simplificando-se aqui as iniciativas então adotadas: (i)reparar os prejuízos dos prejudicados e; (ii) sanear o mercado pelo afastamento do participante danoso. E em cada corporação se legislou na medida da necessidade da solução de questões casuístas, tendo sido criados assim, progressivamente os embriões dos modernos códigos comerciais (nem tão modernos hoje, como sabemos).

É esse o espírito que Maquiavel procura mostrar ao Príncipe. Se algumas coisas deram certo no passado, que sejam imitadas em sua essência, sabendo-se que as mudanças das situações de base durante o tempo tornam necessário provocar também alterações na maneira pela qual seja impositivo adotar uma solução diferenciada, de forma devidamente justificada e não aos trambolhões, como acontecia nas aventuras dos palhaços dos circos antigos a bordo de um calhambeque. E circo é, precisamente, o termo que descreve a odisseia interminável dos malévolos projetos de códigos comerciais.

Foi assim que Maquiavel no mesmo capítulo afirmou que, ao conquistar o principado, em parte surgem dificuldades quanto às novas instituições e sistemas de governo, que Príncipes são forçados a introduzir para fundar os seus Estados e para instaurar a sua segurança. E neste plano o alerta do autor é no sentido de que não há coisa mais difícil a fazer, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais perigosa de conduzir do que se dispor a introduzir novas instituições (destaques nossos).

É este o ponto, senhores padrastos de projetos de novos códigos comerciais aos quais devem prestar atenção. Caso contrário a nave irá inexoravelmente para o fundo do abismo oceânico.

E qual o preço que se propõem a pagar esses novidadeiros? Mais uma vez Maquiavel nos socorre quando diz que os inovadores se sustentam com forças próprias ou dependem de outros. Como em um regime democrático a aprovação de uma nova lei não se dá pela força (ainda que certos governantes ou legisladores atravessados não pensem assim), a dependência dos outros se traduz em um sistema interno de trocas, relativamente ao qual os beneficiários naturais de tais projetos (que seriam os destinatários históricos do Direito Comercial), nada ou pouco recebem, mas sim os geradores das mudanças legislativas determinadas, sendo quase sempre possível identificar os famosos jabutis em diversos dos seus galhos.

Pulando em nossa análise de Maquiavel aplicada ao Direito Comercial, passemos ao Capítulo XXIII, no qual ela se refere aos aduladores e como o Príncipe deve evitá-los. Mais uma vez cabe responder ao leitor que tenha estranhado a ligação desse assunto com aquela disciplina jurídica. Expliquemos de forma muito sucinta que os aduladores do Príncipe são pessoas cuja atitude é a de elogiar os atos daquele, por mais estapafúrdios que se revelem (qualquer semelhança com a política brasileira não é mera coincidência, mas trágica realidade). Das duas uma, ou os aduladores fazem parte da corte do Príncipe (e querem se manter perpetuamente nela, em contínuo gozo dos favores que lhes são proporcionados); ou desejam nela entrar. O que dizem não é o que sentem, mas tudo aquilo que agrade ao Príncipe e que possa se reverter em seu favor. A vantagem pessoal é o seu mote.

No sentido acima Maquiavel ensina que os conselhos dos aduladores enfraquecem o Príncipe (pois ele cai danosamente em erro ou passa a mudar frequentemente de opinião em processo de progressiva desmoralização. Por isto o Príncipe deve se louvar nas diretrizes dadas por homens sábios, capazes de dizerem verdades necessárias, a partir das quais será tomada a medida adequada para determinada situação.

Ora, com a circulação primeiramente do anteprojeto de código comercial, um rol de ditos juristas aduladores o aplaudiu entusiasticamente, cada um desejando pegar uma carona na sua caminhada país afora, até sua chegada ao Congresso. E como muitos desejam ser pais (melhor, padrastos) de alguma coisa que possa render frutos, o tal anteprojeto virou, como dissemos, dois projetos de lei, cada um em uma das casas do Congresso. Como se diria em carnavais dos velhos tempos, o cordão dos aduladores cada vez aumenta mais.

Alguém poderia dizer que estamos exagerando. Não haveria adulação, mas a convicção de muitas cabeças no sentido de que os institutos propostos para um novo código comercial brasileiro representariam um grande avanço nesse campo do direito. A velhinha de Taubaté poderia acreditar, mas a crua verdade é que tudo não passa de pão requentado, tão somente vendido com nomes novos ou roupa nova, com o fim de iludir os incautos.

Outra visão dessa constelação de adeptos dos projetos de código comercial seria a sua configuração como mercenários, objeto do Capítulo XII do Príncipe. Tropas mercenárias são formadas por quem serve por dinheiro e Maquiavel adverte que são inúteis e perigosas, não dando àquele firmeza e segurança, uma vez que são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis, corajosas entre os amigos e vis entre os inimigos. O seu amor é pelo dinheiro, não sendo o caso de verdadeiramente cheguem a morrer pelo Príncipe. No caso dos projetos em questão, os mercenários jurídicos já ganharam ao fazerem o seu lançamento no mercado e esperam ganhar mais ainda se acontecer a sua aprovação.

É por tudo isso que as cabeças dos bons comercialistas não podem concordar com a grande maioria dos temas encontrados nos textos em andamento.

Há um ponto que não foi tratado diretamente por Maquiavel, consistente na necessidade de uma completude do seu reino. Mas esse aspecto pode ser entrevisto no Capítulo final, quando ele exorta o Príncipe a tomar a defesa da Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros. Dessa forma a organização alcançada seria capaz de fazer bem a todos os habitantes.

A aplicação que se deve fazer no tocante aos projetos de código comercial é que eles são a incompletude revestida falsamente de um nome que não corresponde ao seu pobre conteúdo. O título correto deveria ser "Pílulas de legislação comercial".

A dita incompletude se expressa pela ausência de tratamento nos aludidos projetos de diversas matérias que não poderiam ser incluídas ou que não seria conveniente fazê-lo do ponto de vista jurídico porque em muitos casos, como dizem os técnicos de futebol, em time que está ganhando não se mexe.

Vejamos.

Tudo o que diz respeito a ambientes jurídicos regulados não pode ser tratado por um código comercial - objeto de microssistemas especializados -, como são os casos do Sistema Financeiro Nacional, incluindo a regulação dos seguros privados; Mercado de Capitais; Direito Concorrencial; etc.

Paralelamente não convém mexer em áreas sensíveis, em relação às quais a legislação especial é fruto de discussões extensas no âmbito dos seus interessados, como o Direito do Consumidor; a Falência e a Recuperação de Empresas; as Sociedades Anônimas, entre outros. No campo das sociedades, os projetos mais uma vez investem contra a sociedade limitada, vítima frequente deste o CC/2002 de tratamentos que a descaracterizam por completo. Lembre-se ainda, que mexer na Propriedade Intelectual pode esbarrar nos limites traçados pelos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte. Assim sendo, vamos tirar o Direito Comercial das mãos desses bárbaros, que dele se apossaram indevidamente.

Como se verifica esses projetos são incompletos no seu conteúdo e mostram-se completamente desnecessários, sempre sendo oportuno repetir que quanto ao Direito Comercial, o máximo de liberdade que possa ser dada aos agentes que nesse campo operam é sempre a melhor alternativa. E quanto ao que corresponde ao seu conteúdo ou é mais do mesmo, ou são novidades dispensáveis e indesejadas, no mais das vezes.

Esperemos que o espírito de seriedade e de responsabilidade venha sobre os legisladores brasileiros e comecem a trabalhar direito com o que diz respeito ao Direito Comercial.

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1 Para o uso presente, recorro à publicação da Editora La Fonte, com texto integral traduzido por Ciro Mioranza, ed. De 2017.

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t*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados, professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

 



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