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A lógica do ilógico: Recuperação judicial x Produtor rural

A lógica do ilógico prevalece ainda que se afaste exigência de direito positivo com argumentos frágeis e inconsistentes, sob o manto da regularidade do exercício da atividade rural antes da inscrição.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Atualizado às 11:45

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Acordão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial (REsp 1.800.032, p. de 10/2/20), discute a regularidade do exercício de atividade rural antes da decisão do produtor rural de inscrever-se no Registo Público de Empresas Mercantis (Juntas Comerciais), para o fim cristalino de ser beneficiado com a recuperação judicial. Esse instituto, em princípio é aplicável tão somente a quem tenha status de empresário devidamente inscrito e exerça a atividade há, no mínimo, dois anos antes do pedido.

Esse tema já foi objeto de alguns artigos de nossa autoria neste mesmo "Migalhas", sendo necessário a ele retornar porque se mantém teimosamente a incompreensão dos institutos jurídicos aplicados ao caso. Vamos ao acórdão.

Por três votos a dois, o argumento vencedor separa o empresário comum - sujeito a registro nas Juntas Comerciais para que o exercício da atividade seja regular - de quem exerce outro tipo de atividade econômica em e para mercados, mas não está sujeito a registro. Criam-se, assim, duas categorias de empresários: uma sujeita a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, (art. 1.150 CC/02) antes do início da atividade, registro esse constitutivo e fonte da regularidade do exercício da atividade; e outra categoria empresarial, não sujeita a qualquer tipo de inscrição/registro o que, formalmente, não tem previsão na legislação brasileira.

Observe-se que os textos dos artigos 966, 967, 968 do CC/02 não encerram a previsão da hipótese de "empresário" (leia-se comerciante) não inscrito/matriculado.

A (in)definição do conceito de empresário do CC/02, nada obstante o Livro II da Parte Especial ser "Do Direito de Empresa", explica a dificuldade? O legislador pátrio, nada obstante emulasse o codice civile esqueceu-se de reproduzir o texto do artigo 2.195 daquele diploma legal que relaciona atividades econômicas comerciais que devem ser registradas em órgão competente, segregando as demais de tal previsão.

Outro empecilho é a multiplicidade de sentidos da palavra regular, que tanto pode significar, conforme as regras, as leis, as praxes, como também indicar ser conforme a natureza. A regularidade prevista em lei como virtude do registro tem natureza constitutiva e informacional e, por isso, a falta de registro é fonte de irregularidade por não seguir as prescrições normativas.

O exercício de atividades que independem de registro permite a atuação em mercado de atividades que não requerem a formalidade registral o que, salvo para os efeitos de Direito Comercial não configura irregularidade. Tais atividades podem ser irregulares? Claro que não, o que, tampouco, significa que sejam regulares para os fins do art. 48 da lei falimentar.

O termo regularidade não tem sentido unívoco: é impositivo para o empresário mercantil que deve fazer, antes do início da atividade, inscrição em Junta Comercial, mas não se aplica a "empresários não mercantis". A título de exemplo, tome-se pessoa graduada em Direito sem inscrição na OAB. A pessoa não pode exercer a advocacia e se o fizer, agirá de forma irregular. Vale o mesmo, isto é, a inscrição em órgão fiscalizador - instituto que remonta às Corporações de Artes e Ofícios da Idade Média - a prática da medicina ou da contabilidade, por exemplo. Outras atividades como faxina, que não requerem inscrição/matrícula em qualquer órgão, são exercidas por quem se habilite a fazê-lo sem que se discuta regularidade, ou não, da atividade.

Inexistindo no CC/02 relação de atividades para as quais a inscrição em órgão especial é obrigatória, o legislador adotou como premissa de viés histórico, que o produtor rural não é empresário (art. 970 CC), mas conferiu-lhe a faculdade de optar por enquadrar-se como tal bastando, para tanto, que faça a inscrição no registro de comércio. (art. 971 CC).

Se, ab initio, o ruralista não se inscreve no Registro especial e, portanto, não é empresário, a escolha foi dele. Se, em momento futuro, decidir ser empresário (mercantil), inscrever-se-á no registro de comércio, e, partir dessa data (inscrição confirmada) é que serão contados os dois anos de exercício regular da atividade para os fins de invocação do previsto na lei 11.101/05, art. 48 e não antes.

Sabe-se, ou deveria saber-se, que havendo conflitos entre norma geral e norma especial, esta prevalece sobre aquela. No caso de atividade rural a exceção está descrita no parágrafo 2º, ao art. 48 da LRF, incluído pela lei 12.873/13, que admite a comprovação do prazo no caso de pessoa jurídica mediante a entrega tempestiva da Declaração de Informações Econômico-fiscais de Pessoa Jurídica (DIPJ). O ruralista, pessoa natural, não está enquadrado nessa exceção.

Destarte, a conclusão de que o exercício de atividade rural por pessoa natural pode ser acolhido para fins de pedido de recuperação judicial após o registro em Junta Comercial, afasta a exigência da norma especial e, possivelmente, abre espaço para que outras inovações judiciais sejam criadas, gerando incerteza e insegurança.

A lógica do ilógico prevalece ainda que se afaste exigência de direito positivo com argumentos frágeis e inconsistentes, sob o manto da regularidade do exercício da atividade rural antes da inscrição. Nesse caso a regularidade se prende ao cumprimento da lei geral que não prevalece em face da especial.

A exceção que alcança as pessoas jurídicas é explicada pelo fato de: (a) sua criação ser fruto de registro visando-se, com isso, separar patrimônios e segregar riscos e; (b) o registro ser público, portanto, havendo informação disponível.

Como disse Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados.  Professor Sênior do Departamento Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

*Rachel Sztajn é advogada em São Paulo. Professora Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

 

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