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Tributação e bem comum: o que é pago e como deve ser aplicado: o que propõe o art. 53 da Constituição italiana

Há, nestes últimos tempos, vozes que clamam, sobretudo, contra a má aplicação das verbas públicas.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Atualizado às 12:39

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In memoriam de Ezio Vanoni1

"O homem é essencialmente contraditório.
Seu fim natural é o sobrenatural: tornar-se como
Deus, o Outro! Somente assim é ele mesmo"
(Silvano Fausti)
2

1. Contrapondo a reflexão rousseauniana do bem de uma pessoa que "faz necessariamente o mal de outro"3. Camus, ao abordar o bem comum, como o bem geral ou bem público, o definiu, com a usual maestria: "o bem público é o fato de ser a felicidade de cada um"4.

2. Pois é, a septuagenária Constituição italiana (em vigor desde 1/1/1948), com auto regulamentação no propósito temporal e bilimitado para sua revisão (limites explícitos e direitos implícitos) e em respaldo na Corte Constitucional já precisou, com extrema clareza, que ela contém alguns princípios constitucionais superiores que não podem ser alterados nos seus conteúdos essenciais, mas por leis que tratem expressamente de revisões constitucionais ou leis constitucionais: em suma, são limites absolutos ao poder de revisão constitucional" (Sentença 1146/88).

3. No título IV, que cuida das Relações Políticas (vínculos, liames, contatos) (artigos 48/54), um deles, o art. 53, merece, neste escrito, uma particular atenção, face à face o seu texto: "Todos (cidadãos) são convocados a contribuir com os gastos públicos em virtude da própria capacidade contributiva".

O sistema tributário é modelado com critérios de progressividade5.

4. Diante de uma específica norma constitucional, cravada na Parte I, que abrange os Direitos e os Deveres dos Cidadãos, partindo das Civis (art. 13/28), das Éticas-Sociais (art. 29/34), das Econômicas (art. 35/47) e, finalmente, das Políticas (art. 48/54), sobre a última categoria, muitas dúvidas têm surgido ao longo das décadas e, perfilando com elas, mais discussões políticas, capitaneadas por fortíssimos movimentos populares, elevando as tensões por partidarismos de extremas direita, esquerda e outras matizes! Tudo isso na Itália!

Chamou-me a atenção, e insisti em levar em conta que o substantivo cidadão, no plural, foi utilizado em todos os artigos do Título IV, porém, estranhamente, omitido no art. 53, que está sob nosso foco, pela peculiaridade com que trata o seu conteúdo! E evitei dar interpretação fora da norma, segundo o antigo modelo francês.

Seria um trabalho heroico revisitar os momentos históricos que levaram o Parlamento italiano a construir a Constituição pós-fascismo! E, agora, pretendendo contribuir com a exegese lato-sensu do art. 53, alvitro que o legislador omitiu o substantivo cidadãos (no plural), porque, em isso fazendo, levou a considerar todos os residentes a serem contribuintes. Com tal decisão, não desobriga serem contribuintes, ainda mais com todas obrigações sociais, as empresas localizadas em território italiano. Tem mais. Dez anos após a promulgação, inaugurando o Mercado Comum e a institucionalização da Comunidade Europeia com a prevalência excepcional do direito comunitário e a relativa abrangência do direito nacional, o universo jurídico, político e social foi convulsionado. Aos poucos, está sendo consolidado, mas, com o Brexit e os movimentos nacionalistas, quaisquer previsões poderão ser ofuscadas pelo que vier a ocorrer!

5. Diante desse panorama, restrinjo-me a versar sobre o cidadão (assomado ao residente) ao dever de pagar os impostos e, tendo em conta, que a Constituição inseriu esta obrigação no Título das Relações Políticas, assim o penso e o trato: o dever de exigir que os políticos deem uma boa, adequada e justa destinação (administração) dos recursos pagos pelos cidadãos, pois eles vieram do seu trabalho6.

5.1. No pano de fundo da exposição e no mirante do bem comum, a inegável influência da Doutrina Social da Igreja, desde sempre, considerou insuficiente a teoria liberal do direito, como derivante de soberania do Estado, porém, considera que o tributo expressa o vínculo do cidadão ao Estado, não só na identidade dos interesses do contribuinte e do Estado como na perseguição ao bem comum7.

5.2. Que se possa pensar, ainda mais, sobre o que exige o cumprimento do Estado para o bem comum quando ele, Estado, cobra e impõe suas regras para compelir o cidadão a cumprir este dever? Hoje, na democracia liberal, com a tripartição dos poderes, ocorrendo uma escandalosa miscigenação de competências na criação de tributos, sem a contrapartida na sua aplicação?

5.3. Há flagrante desvio de finalidades na democracia liberal, quando, como Pilatos, se esquiva de cumprir com seu dever ontológico de atender à suas finalidades, "porque o bem comum exige que os tributos e a organização financeira do Estado tendem o mesmo escopo e a mesma legitimação política da dimensão cooperativa e mutualística da sociedade" (lembrando Salutati). E, mais, este autor, sustenta com E. Vanoni, que: "O estado, a economia pública e o tributo representam os instrumentos principais desta visão cooperativa - mutualística - da sociedade e, por conseguinte, do próprio Estado. O tributo e a despesa pública devem ser repensados e medidos para avaliar a utilidade social que lhe é correspondente e a ação pública (a atividade do Estado) não deve jamais andar contra este objetivo".8

5.4. Para concluir, a interpretação que Salutati propõe sobre o art. 54 da Constituição italiana: "O preceito em questão deve ser melhor entendido, tudo na devida contra as peculiaridades que caracterizam o específico ordenamento republicano italiano no qual ele se alinha. A primeira é representada no fato de que a Constituição avizinha aos direitos de uma mesma série os direitos civis, políticos, estranhas à tradição do constitucionalismo liberal... isto preferivelmente à colaboração ativa e solidária, no intento de integrar entre eles, na forma original, os direitos, os poderes e os deveres... em maneiras diferentes com respeito à tradição liberal, de sorte a resultarem coerentes com o assunto fundamental da soberania popular e da igual dignidade e liberdade dos cidadãos (G. Sirianni), uma liberdade e dignidade que e disciplina e honra tutelares também por meio de imposição fiscal".

6. Imagina-se que isso ocorre na Itália?

Não, nada disso lá se passa, como tenho experimentado e vivenciado na Península desde 1964. São tantas as causas e as concausas que poderiam caber em centenas de páginas. E não escondo que há uma generosa biblioteca que cuida com proficiência destes desvios!

Mas, há, nestes últimos tempos, vozes que clamam, sobretudo, contra a má aplicação das verbas públicas, salários indevidos e benefício ridículos.

Quanta falta faz... Vanoni!

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1 Ezio Vanoni foi um economista italiano, acadêmico e político. Foi Ministro das Finanças (1948-1954) e Orçamento (1954-1956), vindo a falecer ainda em cumprimento do cargo, depois de fazer um discurso no Senado. Em 1956, ele foi premiado com a medalha de ouro por valor civil e recebeu também o nome da Escola Superior de Economia e Finanças, órgão técnico do Ministério da Economia e Finanças que tem a tarefa institucional de cuidar do treinamento e atualização dos funcionários da Administração Financeira e da Biblioteca Cívica Ezio Vanoni do município de Morbegno.
Disponível em: Clique aqui. Acessado em 21 de fevereiro de 2020.

2 FAUSTI, S. La fine del tempo: Prima lettera ai Tessalonicesi Commentario spirituale. Milão: Edizioni Piemme Spa, 1998, p. 77.

3 ROUSSEAU, J-J. Emile II, in: Le Robert. Dictionnaire culturel en langue française, vol. I, 2005, p. 908.

4 CAMUS, A. La Peste. Apud Margaret Anne Doody, Les 1001 livres qu'il faut avoir lus dans sa vie. Paris: Flammarion, 2007, p. 444.
Como em uma profética versão ao que ocorre na China, o gênio de Camus, oferece uma visão estoica do sofrimento humano, quando compartilhada com a dor na solidariedade (e o mote é a peste bubônica).

5 Texto original do art. 53: "Tutti sono tenuti a concorrere alle spese pubbliche in ragione della loro capacità contributiva. Il sistema tributario è informato a criteri di progressività". A tradução foi literal, tomando em conta a especificidade da redação que usou verbos de múltiplas acepções, a saber, "tenersi", "concorrere" e "informare", que exigem aprofundamento do mens legis ou da proposta finalística do legislador constitucional para emprega-las ao texto original ou a própria hermenêutica da norma. Afinal, as consequências sociais, econômicas e políticas da hermética redação tem tido polêmicas (até ideológicas)!

6 No art. 1 da Constituição italiana está escrito: "Art. 1 - A Itália é uma República democrática, fundada no trabalho". Acrescento que a redação de textos legais, máximas constitucionais, é trabalho de grande dificuldade, sobretudo por gerar consequências quando lhes falta uniformidade! (HAGGARD, T. R. Legal Drafting. Minnesota: West Publishing Co., 1996, p. 228).

7 Leonardo Salutati, detentor de vasta experiência profissional em bancas de exames. É Pároco da Basílica de São Marcos, localizada em Firenze e assistente eclesiástico da Confcooperative Firenze-Prato, da UCID Firenze e da Fondazione Centesimus Annus. Professor de teologia moral social da Faculdade de Teologia da Itália Central e professor de Teologia moral da Pontifícia Universidade Urbana de Roma. (Disponível em: Clique aqui. Acessado em 21 de fevereiro de 2020.Dou realce e reconhecimento a este autor que escreveu o texto (Disponível em: Clique aqui. Acessado em 21 de fevereiro de 2020) que me inspirou a tentar adaptá-lo às exigências hermenêuticas que me pareceram adequadas.

8 A LDO de 2020 é a exemplar tentativa de obrigar que o administrador público seja diligente, pois a adoção do orçamento impositivo não impede o contingenciamento (bloqueio de recursos) pelo governo federal (Valor, A6, 28 de fevereiro de 2020).

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t*Jayme Vita Roso é advogado.

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