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Correção monetária de débitos trabalhistas: análise da recente decisão monocrática do STF - ARE 1.247.402

Como tudo no Direito, essa respeitável decisão é passível de crítica científica.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Atualizado às 15:00

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Qual índice de correção monetária deve ser aplicado a débitos trabalhistas? Recentemente, um novo capítulo dessa interminável discussão veio à cena. Trata-se da decisão exarada pelo ministro Gilmar Mendes em 20/2/20 (DJE de 26/2/20) no bojo do recurso extraordinário 1.247.402. O trecho central do decisum segue transcrito nas linhas seguintes:

[...] Assim, diante da constatação de que a conclusão do Tribunal de origem [TST] a respeito da utilização do IPCA-E ou da TR sobre débitos trabalhistas se fundou em errônea aplicação da jurisprudência desta Corte, cujos julgados no Tema 810 e ADIn 4.357 não abarcam o caso concreto para lhe garantir uma solução definitiva, é de rigor oportunizar àquela Corte eventual juízo de retratação no caso. Ante o exposto, dou provimento ao recurso extraordinário, com base nos artigos 21, § 2º, do RISTF e 932, VIII, do NCPC e, assim, ao cassar o acórdão recorrido, determinar que outro seja proferido.

Em sua fundamentação, o ilustre ministro relata que o Tribunal de origem decidiu que o IPCA deveria ser o índice de correção monetária a ser aplicado a débitos trabalhistas, com esteio no entendimento do STF lavrado nas ADIns 4357, 4372, 4400 e 4425 e ação cautelar 3764 MC/DF. Entretanto, ainda de acordo com o ministro Gilmar Mendes, os julgados invocados, em verdade, versam sobre a atualização monetária de condenações impostas à Fazenda Pública, quanto ao período entre a inscrição do crédito em precatório e o seu efetivo pagamento. Destacou ainda que, da mesma forma, o Tema 810 da Repercussão geral diz respeito a créditos contra a Fazenda Pública, só que anteriores à expedição do precatório.

Diz o Relator, em suma, que haveria distinção entre a moldura fática dos julgados do STF invocados (créditos judiciais contra a Fazenda Pública) e a moldura fática do julgado do TST (créditos judiciais contra empregador), o que inviabilizaria sua invocação como fundamento para se alcançar o mesmo resultado jurídico. No entanto, em nenhum momento, explana o porquê da diferença de contexto fático a obstar o TST, dentro de sua independência funcional e atribuição infra e constitucionalmente competencial, de reconhecer, em sessão plenária, a inconstitucionalidade de dispositivo normativo análogo ao debatido nos precedentes paradigma.

Naturalmente, como tudo no direito, essa respeitável decisão é passível de crítica científica. Abaixo, realizaremos algum esforço intelectivo nesse sentido, sempre imbuídos do exclusivo propósito acadêmico de tentar contribuir com o aprimoramento da técnica precedencial no âmbito do intrincado sistema processual brasileiro.

Dito isso, especificamente em relação às decisões exaradas pela sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento das ADIns 4357, 4372, 4400 e 4425 e ação cautelar 3764 MC/DF, prima facie, mister imiscuir na análise dos elementos materiais relevantes que conduziram à declaração de inconstitucionalidade da utilização do índice aplicado à caderneta de poupança (TR). A primeira indagação que vem à mente seria: a origem do crédito foi concebida como fato materialmente relevante para a definição da ratio decidendi

Note-se, em um primeiro momento, que toda a argumentação da Corte levou em conta que a TR, como índice de atualização, por descumprir seu escopo nuclear de recompor a inflação, viola o direito fundamental de propriedade do credor, contemplado no artigo 5º, XXII, a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI), a isonomia (artigo 5º, caput), o princípio da separação dos Poderes (artigo 2º) e o postulado da proporcionalidade, além da eficácia e efetividade do título judicial, provocando ainda o enriquecimento ilícito do devedor[1]. Essa premissa, em si, já é bastante para a pronúncia de inconstitucionalidade da utilização do índice aplicado à caderneta de poupança (TR).

Ainda que tenha a inconstitucionalidade recaído sobre o art. 1º-F da lei 9.494/97, com redação dada pela lei 11.690/09, na extensão em que versa sobre o critério de cálculo da correção monetária aplicável a condenações da Fazenda Pública, esse dado é deveras irrelevante. Isso porque a norma do precedente firmado pode ser assim sumarizada: a utilização do índice aplicado à caderneta de poupança (TR) viola o texto constitucional, pois que restringe de modo desproporcional o direito fundamental à propriedade. Perceba-se bem: sua utilização é inconstitucional não propriamente porque deixa de recompor perdas inflacionárias de crédito A ou B. Sua mácula deriva da ordem constitucional vigente, na medida em que vilipendia direito fundamental. E já é o quanto basta. Logo, nada há que justifique a distinção da origem do crédito para a manutenção da TR.

Definida, pois, a norma do precedente, sempre que o mesmo grupo de fatos se fizer presente, o mesmo resultado jurídico deve ser alcançado, dada a sua autoridade vinculante. Ou seja, sempre que o caso concreto trouxer como questão (issue) a utilização do índice de correção aplicável à caderneta de poupança, a mesma ratio decidendi firmada por ocasião do julgamento da ADI 4357 e demais julgados deve ser aplicada, como corolário da máxima "like cases should be treated alike". Não sem razão, a doutrina especializada é praticamente uníssona em afirmar que a eficácia vinculante de um precedente se dá quando repetida a mesma questão jurídica dentro das mesmas balizas fáticas essenciais ("material facts", na doutrina de GOODHART), o que constituem os "fundamentos determinantes" ou ratio decidendi de um precedente2.

Contudo, um caso nunca é idêntico a outro, já denunciava o realismo jurídico. Há, por seu turno, um espectro de níveis de similaridade. Nessa ordem, faz-se necessário investigar se as dessemelhanças:

a) são irrelevantes (imaterial), mantendo-se os mesmos fatos essenciais, em ordem a impor a aplicação vinculante da mesma ratio decidendi (following);

b) são juridicamente relevantes e bastante graves a ponto de recusar a aplicação da norma do precedente (distinguishing), ou, por fim;

c) são juridicamente relevantes, mas não a ponto de impor ao novo caso solução diversa daquela do precedente - podendo o juízo posterior livremente inspirar-se no caso precedente, adotando um raciocínio analógico ao do mesmo (analogical reasoning).3  

Dentro desta perspectiva, nos autos do recurso extraordinário autuado sob o 1.247.402 e cuja decisão fora publicada em 26/2/20, o ministro Gilmar Mendes parece entender que a inconstitucionalidade da TR como índice de atualização se restringiu a condenações impostas à Fazenda Pública, a obstar sua extensão a créditos de natureza trabalhista constituídos frente a entes privados. Isso significa que, na visão do ministro Relator, a origem do crédito - segundo disse, ainda quando permeado pelo princípio protetivo - parece ser fato essencial a justificar tratamento diverso e recusar a aplicação da mesma ratio decidendi definida por ocasião da ADI 4357. Ao mesmo tempo, reconhece que o Tribunal Superior do Trabalho, em sua decisão, afastou a incidência de índice de correção monetária prevista na lei  8.177/91 por não ser apto a garantir ao trabalhador a recomposição integral de crédito reconhecido em processo trabalhista por sentença transitada em julgado, submetendo-o a perdas crescentes oriundas da variação da inflação (RR-25692-98.2014.5.24.0007, 5ª Turma, Relator ministro Breno Medeiros, DEJT 31/08/2018).

De partida, mister salientar que a sublinhada decisão toma como fato material relevante a origem do crédito. Todavia, já se reverberou em linhas transatas que a norma do precedente, com autoridade vinculante, não considerou o fato de se tratar de crédito público ou privado, mas se firmou no alicerce de que a utilização do índice aplicável à caderneta de poupança afronta, desproporcionalmente, o direito fundamental à propriedade. Logo, se o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconhece que a atualização pela TR viola o direito fundamental de propriedade do credor, além de engendrar também outras graves máculas à tessitura constitucional, afigura-se absolutamente irrelevante se esse crédito se dá contra a Fazenda Pública ou não. Aliás, antes pelo contrário, com muito mais razão se deveria afastar um índice de correção insuficiente da atualização dos créditos alimentares do trabalhador, uma vez reconhecidos definitivamente em juízo, haja vista sua notória função existencial - pão e carne na mesa do cidadão.

Portanto, a melhor interpretação da questão é que os precedentes acima mencionados se aplicam, sim, de forma direta e vinculante (following), também à situação de créditos judiciais contra devedores privados (incluindo, nesse patamar, os créditos de natureza trabalhista), porquanto, na espécie, a específica origem do crédito constitui-se em fato material irrelevante para a definição da ratio decidendi - tanto que o próprio STF, no particular, em suas decisões, que fique claro, nada referiu a respeito.

De todo modo, apenas ad argumentandum tantum, sucessivamente, trabalhando com a hipótese consignada na decisão monocrática ora estudada de que a atualização de créditos trabalhistas em geral não está contida no âmbito de aplicabilidade da ratio decidendi da ADI 4357 e Tema 810 da repercussão geral, ainda assim o TST estaria claramente livre para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 39 da lei 8.177/91, inspirado (ainda que persuasivamente, sem vinculação obrigatória) pelas rationes mencionadas. Tratar-se-ia de raciocínio analógico ("analogical reasoning").

Bastará ao TST, desse modo, reconhecer que, ainda que haja divergência de suportes fáticos entre os julgados do STF e a decisão recorrida - conforme base jurídica fixada pelo ilustre ministro Gilmar Mendes em decisão monocrática -, manuseando livremente a técnica do controle difuso de constitucionalidade e mantendo-se coerente com a ratio daqueles julgados do STF, afastar, mais uma vez, o uso da TR também para o crédito trabalhista vindicado frente a empregadores e demais tomadores de serviço.

Afinal, mesmo que não se aceite a tese central aqui esposada - no sentido de que os precedentes acima mencionados se aplicam de forma direta e obrigatória ao caso enfrentado pelo TST -, o fato é que não há nenhum decisum, de força vinculante ou não, vedando esse encaminhamento.

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1 Conforme síntese da ratio decidendi do STF no voto vencedor da ADI 4357, mencionada no acórdão TST-ArgInc-479-60.2011.5.04.0231, p. 21.

2 Ver GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, nº 2, 1930, p. 162 e ss.; SCHAUER, Frederick. Precedent, Standford Law Review, v. 39, n. 3, 1987, p. 571 e ss; assim como a quase totalidade da doutrina nacional, por exemplo, MARINONI, Luiz Guilherme. Uma nova realidade diante do Projeto de CPC: a ratio decidendi ou os fundamentos determinantes da decisão. Interesse Público-IP, Belo Horizonte, ano, v. 15, 2013, e Precedentes Obrigatórios. 4ª ed. revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 163 e ss. No direito positivado pátrio, a expressão "fundamentos determinantes" está consagrada nos arts. 489, §1º, V, e 979, §2º, todos do CPC 2015, dizendo respeito a todo o microssistema de precedentes.

3 Para um exame mais aprofundado sobre as três situações, vide: PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho: atualizado conforme o CPC de 2015 e Reforma Trabalhista. Editora LTr. 2018. RESENHA por KLOSS, Larissa Renata. In Revista Eletrônica do TRT da 9ª Região, V.7, Nº 70, Julho de 2018, pp. 466-475. Disponível aqui.

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*Cesar Zucatti Pritsch é Juris Doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), Juiz do Trabalho pelo TRT da 4ª Região. Conselheiro da Escola Judicial e Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região. 

*Fernanda Antunes Marques Junqueira é doutoranda em Direito e Processo do Trabalho Contemporâneo pela Universidade de São Paulo. Visitor Scholar pela American University Washington College of Law; Intern for the U.S. District Court of Maryland. Mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais. Juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.

*Ney Maranhão é doutor em Direito do Trabalho pela USP, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA). Juiz do Trabalho pelo TRT da 8ª Região (PA/AP). Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (Cadeira nº 30).

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