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Pandemia do coronavírus pode levar a suspensão compulsória da convivência dos pais com os filhos

Recentemente foi divulgada uma decisão judicial que afastou o convívio de um pai com a sua filha de dois anos de idade até que ele cumpra a quarentena por ter retornado de um país onde o contágio está disseminado

segunda-feira, 23 de março de 2020

Atualizado às 11:43

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Com agravamento dos riscos resultantes da Covid-19 passaram a surgir alguns conflitos que questionam o convívio familiar dos pais com os seus próprios filhos, em especial nas situações nas quais algum deles pais esteja no chamado período de quarentena e se recuse a evitar o contato com a criança nesses dias que deveria estar isolado.

Recentemente foi divulgada uma decisão judicial que afastou o convívio de um pai com a sua filha de dois anos de idade até que ele cumpra a quarentena por ter retornado de um país onde o contágio está disseminado1. A mãe recorreu ao Poder Judiciário e obteve decisão que determina que o pai só retome o convívio com a sua filha após terminar o período de quarentena (ele se recusou a fazer isso espontaneamente).

As questões que envolvem conflitos de convivência familiar devem sempre procurar observar o "princípio do melhor interesse das crianças e dos adolescentes", conforme prevê a nossa Constituição Federal (art. 227, caput).

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente traz uma importante diretriz já no seu artigo 1º: a chamada de doutrina "proteção integral", orientando no sentido de que esta deve ser a preocupação central quando se cuidam dos interesses de pessoas de tenra idade.

A partir disso, resta possível perceber que o conflito acima citado deve ser apreciado e resolvido a partir destes dois vetores (melhor interesse e proteção integral da filha comum, que - no caso - em apenas dois anos de idade).

A Organização Mundial de Saúde declarou estado de pandemia em decorrência da disseminação mundial do coronavírus. A gravidade e os riscos decorrentes do chamado Covid-19 foram percebidos pelo governo e poderes públicos brasileiros, tanto é que foi editada uma lei específica para a sua prevenção e repressão (lei 13.979/20).

Estes aspectos já indicam que mesmo a questão do convívio de um pai com um filho, que também é um direito garantido constitucionalmente, pode vir a sofrer restrições em situações que envolvam o risco de contágio pelo coronavírus. Ou seja, o convívio paterno-filial pode vir a sofrer algumas modulações se assim indicarem o melhor interesse e a proteção integral do próprio filho. Isto está previsto pelo Código Civil até mesmo para os casos de guarda compartilhada, no seu artigo 1584, "§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos (...)"

Como se vê, também a nossa legislação civil prevê que devem ser levadas em conta as CONDIÇÕES FÁTICAS e observado o INTERESSE DOS FILHOS. O Código Civil também prevê a intervenção do juiz em casos graves excepcionais, regulando isso no seu art. 1586: "Art. 1.586. Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais." Há uma orientação uníssona na prioridade da criança, que perpassa a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil.

Pelas informações divulgadas, o referido pai chegou do exterior vindo de um país que estava com o coronavírus já em circulação, em vista do que a mãe sugeriu que ele aguardasse 14 dias para ter contato com a filha (prazo de quarentena indicado pelas próprias autoridades públicas para quem retorna de viagens para áreas ditas de risco). Entretanto, este pai se recusou a evitar contato pessoal com sua filha neste período de quarentena, 14 dias, gerando um impasse entre o pai e a mãe quanto a forma como se reestabeleceria esse convívio paterno-familiar após o seu retorno.

Nestas hipóteses de ausência de consenso entre os pais sobre questões relevantes do filho, a instância adequada para equacionar essa divergência entre pai e mãe é mesmo o Poder Judiciário, com a participação do Ministério Público. Nesta situação em análise se aplica claramente o art. 1586 do Código Civil, que prevê intervenção do Juiz em casos graves.

No respectivo caso concreto, a pedido da mãe, determinou-se judicialmente que este pai aguardasse o período da quarentena para voltar a ter contato com a filha, o que parece acertado e de acordo com os princípios do melhor interesse e da proteção integral. A decisão parece ter bem aplicado o art. 1584 do Código Civil, que também orienta no sentido de que seja priorizado o interesse dos filhos, ainda mais pelo fato de que a filha comum ter uma doença respiratória (bronquite), o que a torna ainda mais vulnerável para a moléstia da atual pandemia.

Outros fatores que podem influenciar decisões do estilo são os critérios de razoabilidade e da proporcionalidade, que também parece que foram bem observados pela referida decisão, face o contexto notório envolvendo as atuais preocupações com o coronavírus.

Nestas situações o ideal é sempre um acordo direto entre os próprios familiares, que devem procurar sozinhos e com uma dose de bom senso encontrar o que é o melhor para o filho comum. Entretanto, se os pais não chegarem a bom termo, caberá ao Poder Judiciário com a participação do Ministério Público deliberar sobre a solução do impasse.

Em regra, essas questões de dissenso entre os pais quanto a forma do convívio com os filhos são deliberadas pelas Varas de Família. Conforme o caso também pode ser apresentada alguma situação específica de risco diretamente para as Varas da Infância e do Adolescente.

Cumpre anotar que não é necessária que esta previsão de restrição excepcional de convivência paterno-filial esteja prevista na composição originária que os pais tenham eventualmente celebrado em momento anterior (como um acordo de guarda e visitas). Esta pandemia é algo extraordinário, imprevisível, em vista do que ela poderá ser levada ao Poder Judiciário mesmo que o regramento inicial da convivência familiar nada preveja a respeito. Recomenda-se a todos os familiares que ajam com serenidade, equilíbrio e bom senso neste grave período de crise epidemiológica, procurando sempre encontrar uma solução harmoniosa que priorize e respeite o melhor interesse dos seus próprios filhos, sem que seja necessário recorrer à justiça para resolver eventual litígio decorrente dos riscos do Covid-19.

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*Ricardo Calderón é coordenador da pós-graduação de Direito das Famílias e Sucessões da ABDCONST - Academia Brasileira de Direito Constitucional. Doutorando e mestre em Direito pela UFPR

 

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