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O poder de polícia administrativa (coronavírus)

Estados e Municípios não podem, a pretexto de regular a polícia administrativa, impedir o livre trânsito de cargas e de pessoas que venham de outros Municípios, ou Estados; ou advenham da União, de aeroportos ou de vias públicas federais.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Atualizado às 13:58

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Em tempos de calamidade pública, por decorrência do coronavírus (covid-19), os governos federal, estaduais e municipais têm tomado medidas restritivas aos direitos fundamentais das pessoas: liberdades públicas (art.5º, "caput", CF), como locomoção (art.5º, XV), reunião (art.5º, XVI) e exercício de atividade profissional (art.5º, XIII); e até mesmo o direito de propriedade (art.5º, "caput" e XXII e XXIII), entraram 'na mira' de leis e atos administrativos. Trata-se, na verdade, de lastimável, porém, real, estado de necessidade coletivo.

Destaca-se, neste trabalho, a recente lei Federal 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, com vigência temporária [enquanto perdurar o estão de emergência internacional, art.8º], a qual 'dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019', como consta na respectiva ementa.

Referida legislação fora regulamentada pela portaria 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde; por cuidar-se de questão exclusivamente técnica e de área específica, possível a regulamentação por essa via, prescindindo de decreto do chefe do Executivo, exigência constitucional (art.84, IV, CF).

Antes dela, a portaria interministerial 5 [Estado da Justiça e Segurança Pública e Saúde] de 17 de março de 2020, dispôs sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública, previstas na lei 13.979.

Em seguida, a portaria 454, de 20 de março de 2020, do Ministério da Saúde, declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus, ao estipular regramentos específicos à medida restritiva de isolamento

Já, o decreto Federal 10.282, de 20 de março de 2020, finalmente, regulamentou referida lei; dentre outros pontos, tratou de resguardar o exercício de atividades essenciais, públicas [serviços públicos] e privadas (art.3º).1

Embora a ementa da lei 13.979 não o diga, a matéria trazida no bojo dela advém da competência legislativa concorrente entre as entidades federativas, ante o fato de que o artigo 24, XII, da Constituição, estabelece competir à União, Estados e Municípios2 legislar concorrentemente sobre a defesa da saúde.

Dessa forma, a lei Federal 13.979 traz, em princípio, normas gerais a respeito do assunto, as quais, por isso mesmo, devem ser seguidas por Estados e Municípios, cabendo a estes, no entanto, estabelecer normas suplementares (art.24, §2º e 30, II, CF).

Em suma: Estados e Municípios devem seguir as regras básicas da lei federal [se forem gerais]. Já, Estados podem, observando-as, suplementá-las, para atender às peculiaridades regionais. Municípios, por seu turno, visando às peculiaridades locais, podem suplementar referidas normas federais e estaduais, respeitando-as.3

Nessa linha, o artigo 23, II, da Constituição Federal, determina à União, Estados e Municípios, a competência comum [chamada também paralela] para 'cuidar da saúde e assistência pública'. Enquanto o citado artigo 24 cuida da competência legislativa [elaboração de leis], o artigo 23 refere à competência material, administrativa, ou de execução, conforme ensinam os doutos: respeitados os limites constitucionais e as leis, as entidades políticas devem editar atos administrativos e providências concretas em prol da saúde pública. Isso é uma   exigência constitucional, pois a competência [pública], irrenunciável, é exercida em benefício do cidadão, cuidando-se, pois, mais do que um poder, um verdadeiro dever jurídico: dever de atuar, agir, concretamente, em benefício da sociedade

Delineada a competência constitucional, em pequenas linhas, agora, tentar-se-á determinar a extensão dos ditames da lei 13.979, de aplicação nacional, conforme visto.

De acordo com a lei 13.979, poderão ser adotadas [pela União, Estados e Municípios], dentre outras [rol não-taxativo], as seguintes medidasa) isolamento [de pessoas, doentes ou contaminadas; bagagens, meios de transporte, mercadoras, ou encomendas postais]; b) quarentena [restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação; bagagens; contêineres; animais; meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação]; c) determinação compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação; e tratamentos específicos; d) estudo ou investigação epidemiológicae) exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáverf) requisição de bens e serviços de pessoas naturais ou jurídicas, com indenização posterior;g) restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica da Anvisa, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do país; e locomoção interestadual e intermunicipal (redação da MP 926, de 20 de março de 2020).5

As medidas administrativas, referidas na lei 13.979, constituem providências cautelares, ou seja, visam acautelar a situação de extremo perigo à coletividade; não são penalidades, ou sanções, administrativas,6 mas providências provisórias, pelo tempo necessário para curar o interesse público. A própria lei estabelece, no §1º, ao determinar limite de tempo e espaço das medidas, o 'mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.'

Portanto, a lei 13.979 trata de medidas, ou providências; não de sanções, tanto que o artigo 3º, §4º, estabelece: "As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei."

Todavia, essas medidas administrativas, além de temporárias e excepcionais, devem ser razoáveis, proporcionais, não podem extrapolar o necessário para atender ao interesse público demandado no caso concreto. Pois, o ato, a princípio constitucional e legal, pode tornar-se arbitrário e, assim, ser objeto de invalidação, pela própria administração [autotutela], ou pelo judiciário, por meio da ação judicial competente.

Dessa forma, a lei 13.979 trata de medidas, ou providências; não de sanções, tanto que o artigo 3º, §4º, estabelece: "As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei."7

Essas medidas não são taxativas; União, Estados e Municípios podem estabelecer outras, de acordo com o respectivo interesse público nacional, regional ou local.

Como a competência é concorrente, será preciso algum critério para resolver a atuação das diversas entidades políticas (União, Estados e Municípios), cada qual na sua esfera jurídico-constitucional.  

O primeiro critério, mais importante, para o exercício da polícia administrativa é o seguinte: a entidade política que detém competência para legislar será competente para exercer polícia administrativa. No caso da proteção à saúde, como a competência legislativa é concorrente entre União, Estados e Municípios, todos podem exercer polícia administrativa, nos termos da Constituição e das leis.

Outro critério, diria, prático, para colmatar situações concretas, é a predominância do interesse, de acordo com a qual as entidades políticas atuam, à medida de seus respectivos interesses, respeitadas a Constituição e as leis. Assim, a União não pode editar normas e interferir em atos de Estados e Municípios; e estes não podem extrapolar seus respectivos interesses, regionais e municipais.

Uma questão pode ser colocada: a Administração Pública poderá adotar medidas administrativas que não tenham sido contempladas nas leis? O Poder Público tem competência para estabelecer e determinar medidas administrativas, por atos administrativos e providências concretas, além daquelas estabelecidas em leis?

 A meu ver, essa situação pode ocorrer, no caso da proteção à saúde pública (art.23, II, CF); por cuidar-se de competência material comum, as entidades políticas devem agir, ainda na falta de leis, quando houver extremo perigo à sociedade (algumas situações concretas devido ao coronavírus), para tomar as providências acautelatórias que o interesse público exigir, observadas a proporcionalidade, razoabilidade e territorialidade, norteadores da ação do Poder Público. Sempre respeitado o Texto Constitucional!!

Por esses motivos, se houver omissão de um ente federativo, o outro deverá atuar? Aparentemente sim, pelas razões acima mesmo indicadas. Contudo, a situação esbarra em preceitos constitucionais, como no caso de aeroportos, os quais são de competência do Governo Federal, conforme o artigo 21, XII, "c", do Texto Constitucional, bem assim no transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; portos marítimos, fluviais e lacustres (art.21, XII, "e" e "f").

Dessa forma, somente em casos concretos, excepcionais, devidamente motivados e demonstrados, outra entidade federativa poderá imiscuir-se na polícia administrativa de outra; a meu ver, não pode Estado ou Município interditar aeroportos de 'atribuição da União', a pretexto de segurança à saúde, exceto em hipóteses muito bem evidenciadas, diante de eventual omissão do órgão Federal.

O mesmo se pode dizer no caso de a União interditar estradas estaduais, ou vias públicas municipais, ou outros bens dessas entidades; a intervenção aqui é excepcional, e deve ser exercida de forma cautelosa e fundamentada, diante da omissão da entidade política competente para atuar.

Pois, o princípio federativo requer, regra básica, o respeito às competências das entidades políticas da Federação, sob pena de inconstitucionalidade (art.1º, CF). As entidades políticas são independentes, na sua área de atuação, por conta das peculiaridades [federal, estaduais, municipais] que lhes compete resguardar.

Para reforçar a solução proposta, pode-se trazer, por analogia, a LC 140, de 08 de dezembro de 2011, que trata da proteção ao ambiente, em face do artigo 23, parágrafo único da Constituição,8 com redação da EC 53, de 2006. Assim dispõe o artigo 17, § 2º:

'Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis.'

Logo, tendo havido omissão de órgão da entidade política que deveria atuar, as outras entidades políticas deverão agir, desde que imprescindível à saúde pública, e tendo em vista perigo de extrema gravidade, demonstrada por análise inequívoca de autoridade competente, respeitados os termos da Constituição Federal!!

De outro lado, firmada a competência jurídico-constitucional da polícia administrativa, tendo esta sido exercida pela entidade política competente, não podem as demais obstaculizar a atividade daquela, sob pena de inconstitucionalidade (invasão de competência constitucional). Apesar disso, estas podem 'regular a atividade' daquela, à medida de seus interesses, contudo, repita-se, sem impedir o livre exercício da competência daquela. A criação de obstáculos, inviabilizando a atuação da entidade política competente para agir é inconstitucional.

Logo, Estados e Municípios não podem, a pretexto de regular a polícia administrativa, impedir o livre trânsito de cargas e de pessoas que venham de outros Municípios, ou Estados; ou advenham da União, de aeroportos ou de vias públicas federais. Municípios não podem impedir o livre funcionamento de postos de combustíveis e restaurantes em estradas que não estejam sob seu domínio e, assim, sucessivamente.

Podem, sim, regular a atividade policial, à medida de seus interesses (federal, locais, ou regionais), conforme mencionado. Desde que não inviabilizem a atividade policial da entidade política que detém competência constitucional.

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1 Essas atividades essenciais, arroladas no ato administrativo, são exemplificativas, conforme se verifica no texto do decreto.  Devido às intempéries causadas pelo vírus, sucessivas legislações foram elaboradas. No momento, trazemos a lume aquelas que pareceram relevantes.

2 A omissão ao Distrito Federal é proposital, porque cumula as funções de Estados e Municípios (art.32, §1º, CF)

3 Estados e Municípios podem, para salvaguardar suas peculiaridades, considerar outras atividades essenciais à coletividade, além daquelas mencionadas no decreto 10.282, que regulamentou a lei 13.979.

4 A requisição de bens e serviços, na verdade, é um dos casos pelo qual a Administração interfere no patrimônio do particular, motivo pelo qual poderá resultar em indenização ulterior, ou seja, se houver dano, como consta no artigo 5º,  XXV, do Texto Constitucional.

5 Em princípio, locomoção intermunicipal, a rigor, é da competência do Estado-membro; não pode a União restringir a locomoção de pessoas ou mercadorias nessas áreas regionais.

6 Ao contrário das medidas administrativas, as quais podem prescindir do processo administrativo, e do contraditório, dependendo do caso; as sanções administrativas, para serem impostas, carecem do devido processo legal, ou seja, de um processo administrativo, com contraditório: não pode haver imposição de penalidades administrativas sem o processo administrativo, com ampla defesa.

7 Com analogia ao trânsito,  guinchar um veículo em via pública, por autoridade pública, por conta de pneus em péssimo estado; ou ausência de documentação legal, constituem medidas administrativas. Já, as multas de trânsito são penas ou sanções administrativas. A interdição temporária e episódica de um estabelecimento comercial é medida administrativa; a cassação da licença de funcionamento, ou da autorização do Governo, é penalidade administrativa, por descumprimento das normas legais.

8 'Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.'

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*Heraldo Garcia Vitta é advogado, juiz Federal aposentado, ex-promotor de justiça, Mestre e Doutor em Direito do Estado (PUC-SP), professor de Direito, autor dos livros A Sanção no Direito Administrativo (2003), e Poder de Polícia [administrativa], (2009), Malheiros Editores. 

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