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A despatrimonialização do Direito Civil e a garantia do mínimo existencial sobre a (im)penhorabilidade do bem de família de alto valor

O princípio da execução menos gravosa para o devedor aliado a impenhorabilidade do bem de família impõe que outros bens respondam, independentemente do valor do bem de família. A questão sensível recai quando não há outro bem imóvel que responda pela dívida e o bem de família é de alto valor econômico.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Atualizado às 11:41

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Diante da grave crise econômica e, consequentemente, social que vem acometendo o Brasil nos últimos anos, o descumprimento das obrigações de cunho pecuniário vem se tornando cada vez mais frequente, inclusive considerada uma consequência inevitável. Segundo Boletim Econômico Serasa Experian1, a taxa de desemprego em janeiro/19 atingiu 11,2% e constatou também, que a inadimplência continua elevada no ano de 2020, representando 63,8 milhões de brasileiros e 6,2 milhões de empresas. Tais números poderão sofrer importante alteração nos próximos meses, em virtude dos reflexos da pandemia pela Covid-19 no setor da economia.

Apesar desse assunto estar em evidência, tal temática não é nova, tanto que existe previsão legal para os credores reaverem seus créditos, seja tanto pela via judicial quanto pela via extrajudicial, através de instrumentos de confissão de dívida, negociação e protesto do título, por exemplo. O ordenamento jurídico objetiva proteger o crédito, em virtude de esse ser tão relevante para manter a circulação, estabilidade e a criação de riquezas dentro da ordem econômica nacional.

Ocorre que, concomitantemente ao direito do credor, existe proteção jurídica sobre os bens do devedor objetivando resguardar o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Neste sentido, o legislador instituiu norma regulamentando o bem de família através da lei 8.009/90, promulgada em momento histórico de crise econômica no país e o objetivo era conferir maior amparo à família2 e o direito à moradia.  Essa lei traz de forma taxativa quais são os bens impenhoráveis do devedor3 e, portanto, que não podem fazer frente ao cumprimento dos compromissos de cunho pecuniários. Trata da constitucionalização do Direito Civil em sintonia com o Estado Social e a centralização da pessoa humana e a sua dignidade ao invés da preponderância do direito individual da propriedade, anteriormente considerado como absoluto4.

Um análise mais geral, há que se dizer, desde logo, que o resguardo dado pelo legislador ao bem de família fundamenta-se principalmente no direito social fundamental à moradia previsto no caput do art. 6° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como ao princípio da dignidade da pessoa humana, considerando a moradia como indispensável ao desenvolvimento social e individual da pessoa humana.

É notório, dessa forma, que o legislador ordinário buscou, com o comando da impenhorabilidade do bem de família, a proteção e a promoção do direito social fundamental à moradia.

Contudo, em razão de não subsistir direito fundamental absoluto, há situações em que o direito será mitigado em prol de outras circunstâncias. A lei 8.009/90 traz exceções nos quais mesmo sendo bem considerado de família, responderá pela dívida, ou seja, será penhorado o imóvel. Portanto, o legislador relativiza o próprio bem jurídico que pretende resguardar em prol de outro bem, por exemplo com o fito de resguardar direito do credor de pensão alimentícia, ou ter sido o bem adquirido com produto de crime ou garantir o adimplemento de impostos que recaiam sobre o imóvel, todas hipóteses elencadas nos incisos do artigo 3° da referida lei.  

Concomitantemente, a proteção jurídica conferida ao devedor sobre o direito à moradia, o credor também é protegido por garantias constitucionais, afinal, também é sujeito de direito.

O credor com o fito de satisfazer o seu crédito procura bens móveis e imóveis do devedor, por vezes, essa execução restará frustrada por ausência de patrimônio. Em algumas circunstâncias, constata-se que o único patrimônio que poderia satisfazer o crédito seria o único bem imóvel residencial do devedor, porém este de alto valor econômico, hipótese que obsta a sua execução por ser bem de família, portanto, impenhorável. 

Isto posto, verifica-se que embora as disposições legais acerca dos bens impenhoráveis encontrem-se devidamente bem estabelecidas na lei 8.009/90, objetiva-se com o presente artigo analisar o julgamento do REsp 1.351.571/SP e o entendimento firmado pela 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo através do voto 29.772 proferido no agravo de instrumento 2221458-94.2019.8.26.0000 a respeito da relativização da impenhorabilidade do bem de família denominado como de alto valor econômico, além de outros julgados sobre o tema proferido pelos Tribunais de Justiça.

Ocorre que, quando a norma traz o conceito de bem de família não o adjetivou, ao contrário conferiu interpretação literal e restritiva. Porém, o ministro Luís Felipe Salomão proferiu no voto no julgamento do REsp 1.351.571/SP objetivando relativizar a impenhorabilidade do bem de família através de interpretação mais atualizada do instituto e com fulcro na garantia do mínimo existencial e padrão médio de vida.

A ratio do voto traz como pilar o patrimônio mínimo como assegurador da dignidade à pessoa humana e consequentemente, o atendimento ao interesse do credor em satisfazer seu crédito e o direito à moradia digna do devedor, visto que poderia viver com a sua família em imóvel digno, porém não vultuoso. Apesar de ser solução razoável objetivando atender aos interesses do Credor sem deixar o devedor em situação que afronte à garantia constitucional, esbarra na natureza de impenhorabilidade absoluta do bem de família, visto que a lei não traz a relativização sobre o valor econômico do imóvel.

A impenhorabilidade do bem de família de alto valor econômico, por outro lado, afrontaria a efetividade da prestação jurisdicional e a razoabilidade, principalmente por "não guardar a proporcionalidade entre o bem jurídico salvaguardado (o direito a um patrimônio vasto, excedendo o limite do necessário a um padrão médio de vida digna) e o bem jurídico sacrificado (a pretensão do credor)5."

Nessa senda, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, reconheceu a penhorabilidade do bem de família de alto valor econômico:

ARRESTO - BEM DE FAMÍLIA - IMPENHORABILIDADE - LEI 8.009/90 - IMÓVEL EM BAIRRO NOBRE - INCIDÊNCIA DA CONSTRIÇÃO - RESGUARDAR AO DEVEDOR NA ARREMATAÇÃO O VALOR DE UM IMÓVEL MÉDIO - POSSIBILIDADE.

A Lei 8.009/90 de cunho eminentemente social, tem por escopo resguardar a residência do devedor e de sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia; mas não pode o devedor servir-se do instituto do bem de família como meio para frustrar legítima pretensão de seus credores, subtraindo da execução imóvel de elevado valor, situado em bairro nobre, e como tal pode e deve ser ele objeto do arresto; devendo, no entanto, extrair, quando da venda ou arrematação, um valor que proporcione ao executado a aquisição de um imóvel de porte médio, no mesmo município de sua localização, capaz de assegurar ao devedor e à sua entidade familiar condições de sobrevivência digna, mas sem suntuosidade.

(TJ/MG, Ac. 11° Câmara Cível, AgInst. 1.0024.06.986805-7/005(1) - comarca de Belo Horizonte, rel. Des. Duarte de Paula, j. 5.3.08, DJMG 19.03.08).

Aduz que no caso em concreto, o executado possuía cinco apartamentos e, portanto, o imóvel não era bem de família porque poderia ser penhorado e a família teria mais outros 04 imóveis para utilizar e o bem arrestado era o de maior valor. O acordão discorre sobre a adequação dos conceitos objetivando o ideal de justiça e razoabilidade, aliada ao conceito de moradia não vultuosa, mas uma que preservasse a dignidade do devedor e de sua família, determinando na sua parte dispositiva que após a arrematação do bem, o valor de um imóvel de porte médio fosse entregue para o devedor adquirisse um imóvel de porte médio.

Situação fática semelhante ocorreu com o caso julgado pela 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo através do voto 29.772 proferido no agravo de instrumento 2221458-94.2019.8.26.0000, porém com decisão diferente. O Exequente no caso em concreto alegou que o Executado possuía outros bens imóveis, porém aquele de maior valor econômico foi o eleito como residência familiar e restou comprovado nos autos tal circunstância. A Turma entendeu que se o legislador não excepcionou o valor pecuniário do imóvel como impenhorável, não caberia o intérprete fazê-lo, julgando, portanto, que outros imóveis poderiam responder pela dívida, mantendo a impenhorabilidade do bem de família.

Em ambos os julgados, os executados possuíam outros bens imóveis que poderiam responder pela dívida, porém o exequente objetivava penhorar o bem de alto valor econômico.

Já em relação ao voto do ministro Luis Felipe Salomão (REsp 1.351.571/SP) aduz que o único bem encontrado para satisfação do crédito foi o imóvel onde residia a Agravada com a sua família, portanto bem de família. A tese era que o imóvel estava localizado em condomínio de luxo e que a alienação do imóvel pagaria o valor do débito e ao mesmo tempo garantia a aquisição de moradia digna. Nessa situação, o voto do ministro Relator foi vencido e o acordão a lei 8.009/90 não trouxe ressalva em razão do valor econômico do bem e diante da ausência de parâmetro legal não se afigurava viável a penhora para satisfação do crédito.

Portanto, em alguns julgados é possível verificar, no caso em concreto, que existiam outros imóveis que poderiam responder pela dívida. Nesta circunstância, o princípio da execução menos gravosa para o devedor aliado a impenhorabilidade do bem de família impõe que outros bens respondam, independentemente do valor do bem de família.

A questão sensível recai quando não há outro bem imóvel que responda pela dívida e o bem de família é de alto valor econômico, situação enfrentada pelo STJ e entendeu pela impenhorabilidade nesses casos, prevalecendo o direito à moradia em detrimento do direito do credor em satisfazer o seu crédito. Nesta circunstância o bem de família de alto valor econômico não poderá ser flexibilizado pelos Tribunais, este somente através de mudança legislativa. Porém, esta alteração ainda poderá ser questionada em prol do nome que veda o retrocesso social, principalmente diante do atual cenário econômico.

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1 SERASA EXPERIAN. Boletim Econômico Serasa Experian - Março/2020. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 22.03.20.

2 HALLIWELL, Fernanda Kelly Inácio. O bem de família frente às garantias locatícias. Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. São Paulo, v.02, p.142-164, jul. 2019.

3 Lei 8.009/90 que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família conceitua no seu artigo 1° o bem de família "imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei".

4 GONC¸ALVES, E. C; ZANDONA', M. A despatrimonializac¸a~o do direito civil. Rev. Cie^nc. Juri'd. Soc. UNIPAR. Umuarama. v. 13, n. 1, p. 5-18, jan./jun. 2010.

5 FARIAS, Cristiano Chaves. A excepcional possibilidade de penhora de bem imo'vel de elevado valor a` luz da dignidade da pessoa humana (uma proposta de nova compreensa~o da mate'ria). Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 29.03.20.

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*Grasielle Amorim de Souza Flores é coordenadora da Divisão de Direito Imobiliário/Agrário da MoselloLima Advocacia. Mestranda em Direito, Governança e Políticas Públicas pela Universidade Salvador.

*Igor Bastos de Almeida Dias é advogado Tributarista da MoselloLima Advocacia. Pós-Graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

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