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Covid-19 e a relativização de direitos não impede a implementação de videoconferência para garantia da conversa entre o preso e o advogado

Antonio Baptista Gonçalves

2020 será um ano que a humanidade lembrará em seus livros de história.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Atualizado às 15:18

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2020 será um ano que a humanidade lembrará em seus livros de história. Seja pelos efeitos econômicos globais, pela crise na saúde mundial, ou pelas incontáveis mortes que fizeram um estado de emergência globalizado, no qual, a relativização de direitos e a luta pelo bem maior vida se tornou o cerne da sociedade.

Com isso, novos acontecimentos acometeram a realidade das pessoas como: o afastamento presencial de seu trabalho, o isolamento social, a impossibilidade de convívio físico com os demais e a chegada de sentimentos como: distanciamento, depressão, infelicidade, dentre outros.

Já para a realidade penal brasileira também houve reflexos da pandemia da covid-19. Afinal, por conta do estado de emergência e da correta e maciça campanha dos Governos estaduais, para que as pessoas fiquem em casa, as saídas temporárias dos presos, bem como as visitas nos presídios foram suspensas. Afinal, o ambiente prisional, cujas condições sanitárias estão longe do ideal devido às superlotações, ao desrespeito da dignidade da pessoa humana e ao flagelo da vida, a possibilidade de contágio é enorme. Inclusive havia, até 31 de março de 2020, 74 casos suspeitos de contágio1 (34 em Minas Gerais, 26 no Rio Grande do Sul e 14 em São Paulo). O que não fornece nenhuma surpresa, porque a suspensão das visitas não impede o contato dos presos com contaminados em potencial, visto que os agentes penitenciários e os demais funcionários dos presídios podem ter contato ou estarem infectados e serem transmissores do vírus.

Aliás, ainda sobre o isolamento nos presídios será que este impedimento foi criado para proteger os presos ou para não desvelar as incapacidades dos administradores em lidar com a questão da superlotação e da relativização inevitável das condições sanitárias? Em um espaço diminuto e superlotado o real medo das autoridades é que a ausência óbvia de isolamento social por falta de espaço provoque um contágio maciço dos presos de maneira continuada.

E, em tempos de home office, os governos estaduais consideram que os presídios possuem menos pessoas de maneira presencial no setor administrativo, razão pela qual o volume de pessoas de fora do ambiente prisional circulando é menor, portanto, com risco minorado. O que não se considera é que há risco, porque não existe confinamento integral de todos os membros que convivem diuturnamente com os presos, logo, o risco, ainda que menor existe e as possibilidades de danos exponenciais pelas condições sanitárias duvidosas permanecem.

A fim de reduzir ainda mais o impacto para a população prisional decidiu-se pelo afastamento das visitas dos advogados e dos familiares dos presos, ou seja, há um isolamento obrigatório nos presídios, com risco adstrito ao contato com os agentes penitenciários e os profissionais de limpeza.

Pode parecer suficiente, porém, em um universo de mais de 800 mil presos com taxas de superlotação beirando 200%, com muitas prisões, para não dizer a notada maioria, com infraestrutura alguma para os efeitos de um contágio em massa, o que se nota é que algo deve ser feito ante à pandemia.

Em 27 de março de 2020 o ministro do STJ, Sebastião Reis Júnior, concedeu liminar para determinar a soltura de todos os presos do Espírito Santo cuja liberdade provisória tenha sido condicionada ao pagamento de fiança e que ainda se encontrem na prisão. O resultado é que mesmo não tendo pago a fiança estes presos serão colocados em liberdade. A justificativa é a proteção dos envolvidos em decorrência da covid-19. Será que a medida não pode e deve ser extensiva aos demais estados brasileiros?

E mais: por que não soltar os idosos, gestantes, lactantes, portares de moléstias que podem ser agravadas pela covid-19 para os crimes sem violência ou grave ameaça? O número pode ser baixo se comparado com o universo prisional, porém, protegerá sobremaneira os demais em termos de possibilidade de contágio.

Ademais, em tempos de pandemia, não seria o caso do STF analisar medidas similares relativas ao elevado número dos presos provisórios que cumprem pena enquanto esperam seu julgamento? Afinal o número de pouco mais de 40% do total assusta e levanta o questionamento se não é hora de criar critérios excepcionais para minorar especificamente esta parcela da população prisional, sem que isso represente um salvo conduto indevido para a maioria deles.

Será que o governo Federal e os membros da mais alta Corte do Brasil manterão a mesma postura se houver um contágio desenfreado com consequencias fatais para os presos no Brasil? Por que esperar a catástrofe ocorrer para, então, oferecer soluções? O Brasil tem condições de criar uma política criminal adequada a fim de melhor equacionar a quase metade da população prisional para aqueles que ainda não foram julgados?

Então vejamos o panorama corrente: presos se avolumam em locais que não comportam a quantidade de pessoas existentes, as condições sanitárias são precárias, o isolamento social e o respeito ao espaço alheio são severamente relativizados, as questões de serviço médico também não estão presentes no volume necessário, com clara insuficiência de médicos e enfermeiras. E o bem mais caro em tempos de pandemia é praticamente ausente: UTIs em hospitais prisionais. Também é silente os governos estaduais para a questão dos enfermos, afinal, somente com tuberculose, segundo dados de 2019 do INFOPEN, já temos mais de dez mil presos e se trata de doença infecciosa transmitida pelas vias aéreas.

E a solução para evitar que a maior pandemia que a humanidade presenciou no século XXI é impedir o contato com familiares e seus advogados? Nos parece que as medidas tomadas são muito inferiores ao real necessário para proteger a vida e garantir relativa imunidade dos presos contra a covid-19.

Na ordem do dia em relação ao covid-19, o que se vê é o isolamento, por conseguinte, o contato dos presos com seus entes queridos e com seus advogados cessaram temporariamente. Se a medida é correta do ponto de vista da saúde, o mesmo não se processa sob a ótica das garantias e direitos fundamentais do preso. Afinal, em um país em que 40% dos presos ainda aguardam julgamento, a comunicação com seu defensor é essencial na salvaguarda de seus direitos, na mitigação das desigualdades e para que o contraditório e a ampla defesa sejam respeitados.

E mais do que isso, a comunicação dos presos com seus advogados também representa o contato ainda que indireto com seus familiares e com as notícias de seus entes queridos, enquanto o isolamento perdurar. Assim, se a salvaguarda deve existir a fim de tentar proteger minimamente os presos, os limites constitucionais devem ser respeitados e os direitos e garantias fundamentais do preso continuam a existir mesmo com a presença da covid-19, o que precisa ser feito é implementar rotas alternativas para garantir essa comunicação.

Mesmo diante de uma pandemia séria e com efeitos complexos, a conversa entre o preso e o advogado deve ser respeitada e garantida. A Constituição Federal do Brasil é clara em seu artigo 133: O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. A lei de execução penal (lei 7.210/84), prevê em seu art. 41, IX ser direito do preso: IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado. Na mesma esteira, a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica - preceitua em seu artigo 8°, 6° inciso, ao situar entre as "garantias judiciais" o "direito ao acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor". Por fim, a lei 8.906/94, o Estatuto do advogado que prevê em seu art. 7°, III: São direitos do advogado: III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.

O Brasil e seus empresários criaram celeremente canais de comunicação não apenas para seus empregados, como para a comunicação com a sociedade, por isso, se popularizou rapidamente canais pouco conhecidos como o zoom, Microsoft team, o webnar, dentre outros para a realização de contato via videoconferência, portanto, temos canais seguros de transmissão de imagens que podem ser adaptados à realidade prisional. O que não podemos é esperar a boa vontade dos governantes a fim de verificar a possibilidade e necessidade da comunicação dos presos com seus representantes legais.

Ora, mas como realizar tal comunicação se o contato e as visitas estão suspensas nos presídios? Será que os presídios possuem aparatos tecnológicos para garantir essa comunicação? Eis a missão da tecnologia: o uso da videoconferência e a adaptação para os canais já mencionados. Se os servidores públicos, os membros dos Tribunais Superiores, inclusive os onze ministros do STF se adaptaram ao sistema de home office com largo uso de videoconferência para o proferimento de decisões, então, deverá ser implementada a mesma medida a fim de garantir o direito constitucional da conversa do advogado com seu cliente preso, portanto, cabe a OAB em atuação conjunta com a secretaria de Administração Penitenciária assegurar que os governos estaduais forneçam o aparato tecnológico para garantir a comunicação entre o preso e seu advogado. Que se respeite o isolamento social sem se vilipendiar direitos e garantias fundamentais para a boa administração da justiça.

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1 - PRESÍDIOS BRASILEIROS TÊM 74 CASOS SUSPEITOS DE CONTÁGIO POR CORONAVÍRUS. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/31/coronavirus-casos-suspeitos-em-presidios-do-brasil.htm. Acesso em 31 de março de 2020.

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*Antonio Baptista Gonçalves é presidente da comissão de criminologia e vitimologia da OAB/SP - Subseção do Butanta.

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