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Por que não uma regulação tributária?

É inoportuna a insistência em um modelo desenhado predominantemente para a solução a posteriori e apenas individual de controvérsias, gerando insegurança, distorções e iniquidades.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Atualizado às 13:59

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1. Introdução

Nos EUA, a adoção do modelo de agências independentes decorreu da necessidade de se buscar alguma intervenção estatal na economia. Com a Grande Depressão, iniciada em 1929, evidenciava-se a incapacidade do mercado em se erguer por si mesmo. Outro fator era inerente ao sistema common law, a insatisfação com a hegemonia de os tribunais (judicial supremacy) exercerem controle jurisdicional amplo sobre todos os atos do Executivo; portanto, sem a dupla jurisdição nos moldes franceses1. Assim, era importante a busca de um modelo de atuação especializada para confrontar a supremacia do Judiciário. Nesse cenário, Franklin D. Roosevelt implementou os programas estatais de caráter intervencionista (New Deal). A partir de então as agências ganharam importância e se expandiram nos Estados Unidos2.

Sob inspiração no modelo norte-americano de agências independentes, países de tradição romano-germânica também criação suas agências reguladoras. Formou-se o consenso de que seria imprescindível a qualquer sistema jurídico uma atividade regulatória desempenhada por meio de instituições especializadas e com elevado grau de autonomia.

No Brasil, a ascensão da atividade regulatória coincide com o processo de desestatização, a redução do papel intervencionista do Estado. O início dos anos 90 representaria, então, a reformulação do papel do Estado na economia com o acolhimento da liberdade econômica praticada pelas principais potências mundiais. A maior confiança na iniciativa privada fez com que o Estado reduzisse drasticamente a sua participação no mercado na condição de agente direto na produção de bens e serviços. Esse distanciamento estratégico corresponde ao surgimento de um novo paradigma - uma administração pública reguladora.

Aparentemente, as razões que motivaram a ascensão das agências nos Estados Unidos e no Brasil seriam opostas, mas não é isso. É que o grau de intervenção na economia brasileira era tão elevado que o distanciamento para assumir um papel simplesmente regulador representaria uma libertação. Em seus níveis diferentes de atuação do Estado na economia, o que seria intervenção para os americanos, para o Brasil seria libertação3.

2. A necessidade de regulação

Embora a reprodução no Brasil do modelo de agência norte-americana não tenha sido tão fiel, notadamente os graus distintos de autonomia decisória nas duas atividades, regulação (rulemaking) e julgamento (adjudication)4, existem características comuns - uma delas é a participação dos interessados nos processos decisórios (administrative decision makings). De fato, é inconcebível sob os aspectos epistêmico e da legitimidade democrática que a regulação seja realizada em insulamento burocrático5. Os conselhos consultivos, as audiências e consultas públicas são instrumentos que viabilizam a incorporação aos processos decisórios de informações, conhecimentos, experiências e perspectivas desconhecidas pelos agentes internos da instituição.

Outra característica diz respeito às questões submetidas à regulação. A necessidade será tanto maior quanto seja a complexidade das atividades. As questões mais complexas e predominantemente técnicas exigem elevado grau de expertise, são inviáveis de serem solucionadas por tribunais generalistas (essa sempre foi uma discussão no sistema common law e também se tornou atual no sistema romano-germânico)6.

E em nossa sociedade contemporânea, a dinâmica naturalmente mutável das relações econômicas cria cenários de incerteza a demandar cada vez mais a atuação das agências reguladoras e dos órgãos-agência (órgãos especializados com elevada autonomia técnica que exercem atividades próprias das agências reguladoras, embora formalmente não sejam: regulação ou julgamento). Esse protagonismo crescente da atividade regulatória exalta a importância de deferência conforme a capacidade institucional para se normatizar e julgar7.

3. A regulação tributária

Feita essas considerações iniciais, ocupamo-nos de responder à pergunta: Por que não uma regulação tributária? Como se sabe, a regulação se ocupa das atividades econômicas e serviços públicos. A regulação é, portanto, de um setor produtivo e não de determinado ramo do direito. Para a melhor compreensão de normas jurídicas cujo sentido não goze de suficiente clareza existe a regulamentação. Muitas vezes, a depender do que se necessita regulamentar, a diferença pode ser tênue, confundindo-se regulamentação com regulação.

Isso é comum em ramos do direito que disciplinam relações jurídicas de elevada complexidade e estabelecida em torno de matéria de natureza mais técnica. As questões a serem solucionadas não decorrem apenas da insuficiente clareza da lei a ser regulamentada, de sua generalidade, mas, antes disso, porque a matéria era tão complexa que somente o órgão-agência teria capacidade institucional para compreendê-la e criar normas no sistema jurídico que possam ser cumpridas com segurança jurídica e previsibilidade.

As questões tributárias estão inseridas nesse contexto. Possuem elevado grau de complexidade técnica para um sistema de direito material repleto de ambiguidades, omissões e contradições internas. Assim, existe um risco elevado de que, muitas vezes, o conceito empregado pelo órgão-agência pode, especialmente quando ausentes os valores necessários à atividade regulatória, ao invés de facilitar e uniformizar o cumprimento da legislação tributária, ser uma fonte de controvérsias, elevando-se o grau de litigiosidade no sistema processual administrativo.

Como exemplo recente, até que fossem afastadas pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.221.170, as instruções normativas da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (SRF nºs 247/2002 e 404/2004) adotaram um conceito de "insumo" para fins de apuração de créditos no regime de não-cumulatividade da contribuição ao PIS e da COFINS que gerou ao longo de quase duas décadas milhares de processos administrativos em busca de uma solução. Em outra conceituação pela administração tributária, adotou-se que plataforma de petróleo não se equipararia a embarcação por não dispor de propulsão própria. A divergência conceitual resultou numa autuação de R$ 3 bilhões8.

Nesses exemplos, não havia uma solução pronta no sistema jurídico. Os conceitos foram estabelecidos pelo órgão-agência. Não se tratou de uma simples regulamentação para esclarecer o que já estava presente na lei tributária, meramente complementar. Na verdade, muito mais que isso, foram produzidos os efeitos próprios de uma regulação tributária, uma norma jurídica de natureza criativa.

E não se diga que o conceito poderia não estar presente na lei tributária, mas que já existiria no ordenamento jurídico. Ocorre que os conceitos, quando empregados pela norma, ainda carecem de integração com os fins a que se propõem. Em nosso segundo exemplo, não bastaria pesquisar o conceito de embarcação na legislação marítima, ainda persistiria a dúvida se a questão da propulsão própria seria relevante para fins de estender o benefício fiscal, conferido aos navios e outras embarcações, também às plataformas de petróleo, que se deslocam por meio de navios rebocadores.

O direito tributário tem essa característica especial, a capacidade de se imiscuir em quase todos os setores e atividades da sociedade. Basta que tenha alguma repercussão econômica que de certa forma ele estará presente. Naturalmente que a normatização tributária exercerá importante influência sobre nossos planejamentos da vida privada e forma como nos organizamos.

Portanto, tanto na regulação (rulemaking) quanto na atividade contenciosa de julgamento (adjudication) é inevitável que a administração tributária avança muito mais do que realizar meras regulamentações. Esse é um fenômeno decorrente, sobretudo, das características de nosso sistema tributário. A elevada complexidade, consequentemente acompanhada de ambiguidades e incoerências, acaba por transferir aos reguladores e julgadores administrativos o papel institucional de torná-lo compreensível para que seja cumprido pelo contribuinte. Melhor se nosso sistema fosse simplificado ao menos a um nível suficiente para que, por si só, fosse razoavelmente compreensível.

4. O que a regulação tributária pode fazer para o macroprocesso

Tivéssemos já promovido essa necessária simplificação do sistema não haveria tantas questões controvertidas para serem solucionadas no macroprocesso do crédito tributário9. Em recente levantamento realizado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, apurou-se um acervo em torno de 118 mil processos, totalizando aproximadamente R$ 688 bilhões em valores de créditos constituídos e pendentes de revisão10. Isso sem considerar os processos tramitando nas instâncias anteriores. É premente que se invista na regulação, que seja repensado seu desenho institucional e que se promova seu reposicionamento na administração tributária.

É inoportuna a insistência em um modelo desenhado predominantemente para a solução a posteriori e apenas individual de controvérsias, gerando insegurança, distorções e iniquidades. É a regulação tributária que promoverá o tratamento tributário igualitário ao mercado competitivo, reduzindo os riscos de interferências distorcidas nos setores econômicos. Internamente, também soluciona os desentendimentos nas relações interinstitucionais dos órgãos que compõem o macroprocesso.

O reposicionamento central da regulação tributária, com a adoção do desenho institucional adequado, representaria a linguagem padrão que falta na comunicação entre as atividades administrativas de constituição do crédito tributário e as instâncias revisionais (primeira, segunda e instância especial). Como resultado, ganha-se em previsibilidade, coerência, redução de controvérsias e do grau de "litigiosidade".

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1 TÁCITO, Caio. Presença norte-americana no direito administrativo brasileiro. In: Temas de Direito Público, 1º volume. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.15.

2 SUNSTEIN, Cass. O constitucionalismo após o New Deal. In: MATTOS, Paulo (Coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 143.

3 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 226 p. 227- p. 228.

4 VERMEULE, Adrian. The Constitution of Risk. New York, NY: Cambridge University Press, 2014. p. 109.

5 Trata-se de um processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de organizações intermediárias. NUNES, Edson. A Gramática Política do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; Brasília: ENAP, 2003. p. 33-34.

6 SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. John M. Olin Program in Law and Economics Working Paper no. 156. Chicago: University of Chicago Law School, 2002. p. 47.

7 VERMEULE, Adrian. Law's abnegation: from law's empire to the administrative state. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2016. p. 89.

8 IGNÁCIO, Laura. Carf mantém multa contra Petrobras. Jornal Valor Econômico. São Paulo, 06/05/2014. Disponível em: https://www.valor.com.br: "A derrota da Petrobras é apenas mais uma relativa a afretamento. Em 2011, a Câmara Superior do Carf condenou a petroleira a pagar R$ 4,6 bilhões por não recolhimento de 15% de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre remessas ao exterior para pagamento de afretamento de "embarcações", realizado entre 1999 e 2002. No caso, discute-se o conceito de embarcação".

9 BRASIL. Ministério da Fazenda. Portaria MF nº 116, de 25/02/2009. Institui, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Comitê Executivo de Gestão do Macroprocesso do Crédito Tributário - CMCT, e dá outras providências. Diário Oficial da União - DOU, Brasília, DF, 27 fev. 2009.

10 BRASIL, Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - Ministério da Fazenda. Disponível em, clique aqui.

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t*Julio Cesar Vieira Gomes, é Doutor e Mestre em Direito Tributário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil, ex-conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais e presidente de câmara no CARF.

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