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As medidas trabalhistas de combate à epidemia de covid-19 e o trabalho offshore: as MPs 927 e 936 e a lei 5.811/72

A lei 5.811/72 não é um estatuto de profissão diferenciada, nem aparta os empregados que trabalham sob a sua égide da CLT.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Atualizado às 07:58

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A ausência de mecanismos legais adequados para lidar com a atual situação de paralisação generalizada, em escala planetária, das atividades econômicas e da vida social para combater uma ameaça biológica forçou o Poder Público a editar diplomas normativos de ocasião para buscar combater ou atenuar os efeitos dessa conjuntura.

Foi o caso do decreto legislativo 6/20 que reconhece o estado de calamidade pública em decorrência da epidemia, destacando-se ainda a lei 13.979/2020, que trata das medidas de enfrentamento à epidemia, e ainda o Decreto 10.282/2020 que a regulamenta.

No âmbito especificamente trabalhista, foram editadas as Medidas Provisórias 927 e 936, que, no seu conjunto, oferecem um cardápio amplo de soluções possíveis para os empregadores e empregados.

A questão, portanto, é: essas medidas previstas nas MPs 927 e 936 são aplicáveis ao trabalho realizado no âmbito da lei 5.811/72? Caso positivo, em que medida1?

As referidas MPs são aplicáveis em geral a todos os contratos de trabalho, e, especificamente, por força do art 32 da MP 927, também aos rurícolas (lei 5.889/73), aos trabalhadores temporários e terceirizados (lei 6.019/73), e aos empregados domésticos "no que couber" (Lei Complementar 150).

Essas menções feitas pelo art 32 da MP 927, contudo, não afastam a aplicação das suas disposições a outras modalidades de contratos de trabalho, naquilo que for possível, ainda que não tenham sido expressamente indicadas, seja em razão do caráter genérico do seu art 1º, seja ainda em razão da sua própria finalidade, que é a de enfrentar a situação de calamidade pública, preservando o emprego e a renda por meio das opções que ela mesma oferece.

Portanto, e até por força do art 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, dado o contexto social atual na qual a lei está inserida, e dados os seus relevantes objetivos, as MPs 927 e 936 devem ser interpretadas no sentido de aplica-las sempre que compatível com o trabalho.

A lei 5.811/72 não é um estatuto de profissão diferenciada, nem aparta os empregados que trabalham sob a sua égide da CLT. A lei 5.811/72 somente prevê alguns parâmetros específicos para o trabalho na indústria da extração e transporte de óleo e gás, em razão da natureza própria dessas atividades, especialmente em razão da natureza confinada em locais distantes de centros urbanos ou de terra firme, como é o caso da plataformas, FPSOs (Floating Production Storage and Offloading) etc.

Por outro lado, as atividades que são o escopo da lei 5.811/72 foram expressamente incluídas no rol das atividades essenciais, nos termos do art 3º, XXVII, do Decreto 10.282/2020. Daí decorre uma dupla consequência: a primeira é que é ainda mais relevante a busca por soluções que permitam a continuidade operacional, o que sublinha a aplicabilidade das MPs; e a segunda consequência é que as soluções previstas na MP devem ser aplicadas, sempre, tendo em vista essa continuidade operacional, como aliás está expresso no próprio art 13 da MP 936.

Portanto, o fato de o art 32 da MP 927 não mencionar especificamente a lei 5.811/72 não impede sua aplicação em tese para os empregados que trabalham na indústria do petróleo, assim como, por exemplo, a ausência de menção, pela MP, à lei 4.950-A/66, não impede sua aplicação também a empregados engenheiros, químicos, arquitetos, agrônomos e veterinários.

Dessa forma, não havendo óbice à aplicação abstrata das MPs 927 e 936 aos contratos de trabalho que se desenvolvem no âmbito da lei 5.811/72, resta verificar se há compatibilidade, in concreto, entre os diplomas legais.

Nesse sentido, convém analisar, cada uma, as medidas previstas nas MPs.

Inicialmente, e sem necessidade de maiores digressões, é claramente aplicável ao trabalho offshore as medidas previstas na MP 927 de: a) antecipação de férias individuais (arts 6º a 10), b) antecipação de férias coletivas (arts 11 e 12). Não há, aqui, nenhuma incompatibilidade com a lei 5.811/72. A única observação que deve ser feita é quanto à necessidade de buscar manter a operação funcionando, ainda que num volume inferior, ou menor.

Entendo, ainda, plenamente aplicável a hipótese do art 2º da MP 927, quanto à possibilidade de celebração de acordos individuais que possam eventualmente se sobrepor à lei e às normas coletivas. Porém, além do limite da Constituição, redundantemente expressamente na lei, porque desnecessária, considero necessário observar os limites (a) da saúde e segurança do trabalho, e (b) da necessidade objetiva e justificável daquilo que eventualmente se acordar em contrariedade à lei e às normas coletivas.

Portanto, considero possível estipular, por exemplo, um período de embarque superior ao limite de 15 dias previsto na lei 5.811/72, sem que essa extrapolação gere dê direito ao pagamento de dobras, considero possível alterar o valor do adicional previsto no art 6º, II, da lei 5.811/72, considero possível prever uma quarentena prévia ao embarque em isolamento sem o pagamento de qualquer valor adicional, mas não considero possível em nenhuma hipótese aplicar uma jornada maior de 12 horas, exatamente porque haveria o risco evidente de exaustão, aumentando a probabilidade de acidentes.

É fundamental, portanto, que qualquer acerto que se sobreponha à lei e às normas coletivas, ainda que excepcional diante das circunstâncias, deve também resguardar a saúde e a segurança do trabalho, deve ser justificável, e reduzido a termo por meio de acordo individual.

A antecipação de feriados, prevista no art 13 da MP 927 é, a rigor, inaplicável, porque inútil, dentro do entendimento majoritário da jurisprudência de que as folgas previstas nos arts 3º V, 4º II e 6º, I, da lei 5.811/72 implicam também a quitação quanto aos feriados.

O teletrabalho, previsto nos arts 4º e 5º da MP 927, não parece fazer sentido para o caso de empregados offshore, assim como não faz para motoristas, aeronautas, etc., de modo que não deve ser uma providência especialmente útil para empresas e empregados. Porém, casos seja possível, não há qualquer incompatibilidade jurídica que proíba essa modificação emergencial, deixando o empregado de trabalhar embarcado e passando a trabalhar de sua residência.

A aplicação da opção do banco de horas, prevista no art 14 da MP 927 é complexa. A rigor, não seria possível pelo simples fato que os regimes de compensação de jornada e banco de horas não se aplicam aos trabalhadores que trabalham no âmbito da lei 5.811/72. O art 14 §1º da MP 927 é expresso no sentido de limitar a compensação máxima a 10 horas de trabalho por dia, sendo que o art 4º e 5º §2º da lei 5.811/72 autoriza a jornada de até 12 horas. Portanto, o empregado offshore usualmente já trabalha uma jornada maior do que o limite máximo permitido de compensação.

Por outro lado, num contexto de normalidade, após o final do estado de calamidade pública, tampouco seria possível aumentar o período de embarque previsto no art 8º ou reduzir as folgas previstas nos arts 3º V, 4º II e 6º, I, todos da lei 5.811/72.

A rigor, o banco de horas somente poderia ser possível, em tese, no caso do offshore, nas hipótese de empregado que trabalha em turno de 8 horas, e mesmo assim conjugando bem com o art 2º da MP 927.

Certamente, é possível o diferimento do recolhimento do FGTS, nos termos dos arts 19 a 21 da MP 927.

A suspensão das exigências de segurança do trabalho, prevista nos arts 15 a 17 da MP 927 também é aplicável. Isso, porém, significa que somente a obrigação administrativa é suspensa, mas não a responsabilidade geral da empresa por manter o ambiente de trabalho seguro. Assim, a empresa não pode ser autuada no caso de não ter feito determinado curso que a MP declara suspenso, mas a empresa continua sendo responsável no caso de acidente, sujeitando-se ao pagamento das indenizações porventura cabíveis (art 7º XXVIII da Constituição e arts 186, 927 do Código Civil).

Por outro lado, é duvidosa a aplicação da redução proporcional de jornada e salário ao empregado offshore. Com efeito, conquanto em tese nada impeça que se reduza o horário de trabalho do empregado offshore, na forma do art 7º da MP 936, a situação especial de confinamento faz com que se frustre um dos objetivos sociais dessa redução, porque, trabalhando mais ou menos, ele continuará confinado. Enquanto o empregado onshore com jornada reduzida volta mais cedo para casa para cuidar de sua família e de sua própria saúde, o empregado offshore com jornada reduzida permanece na plataforma.

Portanto, não parece haver uma boa adequação entre a MP 936 e a Lei 5.811/72 nesse particular.

Teoricamente, porém, para tentar alcançar a finalidade da MP, seria talvez possível conjugar a redução da jornada com a redução do período de embarque, invocando também o art 2º da MP 927. Ou seja, talvez seja possível uma redução de duração de trabalho geral (e não somente da jornada).

Porém, como se trataria de uma variação do programa proposto pelo Governo na MP 936, não é certo que o Governo a aceitasse para efeito do pagamento do Benefício Emergencial previsto no art 5º da MP 936 - dependerá de como o Ministério da Economia virá a prever a comunicação que a empresa deve fazer.

Já a suspensão do contrato de trabalho, tal qual prevista no art 8º da MP 936, é compatível com o trabalho realizado sob a lei 5.811/72, e pode ser aplicada, porém tendo em vista, sempre, o alerta do art 13 da mesma MP 936, no sentido de que tanto a suspensão quanto a redução da jornada deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e das atividades essenciais.

Por fim, a lei 5.811/72 prevê no art 9º o pagamento de uma indenização sempre que "for alterado" o regime de trabalho, com supressão dos benefícios que ela impõe. A meu ver, as mudanças emergenciais propostas pelas MPs 927 e 936 não implicam uma alteração do regime de modo a ensejar o pagamento da referida indenização. O que define a existência da alteração de regime é a intenção da mudança definitiva do regime de empregado, de offshore para onshore.

Na situação tratada, o empregado continuará offshore, porém excepcionalmente e temporariamente, afastado dessas funções, no caso da suspensão do contrato de trabalho. Nada obstante, no eventual termo aditivo que for feito, na forma do art 2º da MP 927, seria interessante fazer menção à inaplicabilidade da indenização.

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1 Partimos do pressuposto de que as MPs em questão são constitucionais em todos os seus aspectos, porque a questão da constitucionalidade das medidas nelas previstas não é objeto do presente estudo.

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*Nicolau Olivieri é advogado do escritório Leal Cotrim Jansen Advogados.

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