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O estado de calamidade pública e o exercício da fé no país

A sociedade, através das ferramentas legais que o direito disponibiliza, encontra as formas de se organizar, inclusive, em situação emergenciais, para sua auto-preservação.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Atualizado às 10:35

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"Ubi societas ibi jus", este é um dos brocardos latinos mais conhecidos pelos operadores do direito, que quer dizer, "Onde está a sociedade aí está o direito".

É partindo desta asseveração latina que necessitamos entender que a sociedade, através das ferramentas legais que o direito disponibiliza, encontra as formas de se organizar, inclusive, em situação emergenciais, para sua auto-preservação, e, ainda, que a sociedade carece de uma atuação decisiva das autoridades públicas, para neste momento baseado no Ordenamento Jurídico Nacional, disciplinar, às vezes contra a vontade de alguns, ou até mesmo da maioria, sempre com base nos estatutos legais, que respeitados os processos legislativos, podem ser alterados, à luz Constituição Federal; inclusive cerceando (proibindo) a circulação de pessoas, e, limitando (não proibindo) a liberdade de manifestação de crença religiosa individual ou coletiva, pública ou privada, pelos fiéis.

Nosso país faz parte da comunidade mundial e algumas normas internacionais, advindas de órgãos competentes, tais como a ONU, OMS, OMC, OIT etc, que, após referendadas pelo Congresso Nacional brasileiro, passam a integrar o Ordenamento Jurídico Nacional, tendo força normativa, daí ser relevantíssimo registrar o que consta do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, que tem vigência, como decreto federal 592/1992 no Ordenamento Jurídico brasileiro, o qual estabelece as limitações (não proibições), e sim restrições, como inseridas no artigo 18,"(.) A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou moral públicas ou a direitos e liberdades das demais pessoas. (.)", grifos nossos, que, mesmo sendo documento internacional está submetido à Carta Magna Nacional, tendo força normativa, e, sujeita ao crivo judicial do Supremo Tribunal Federal.

São estas pessoas, algumas das quais eleitas diretamente pelo povo, destacadamente, as que integram o Poder Executivo e o Poder Legislativo, que são chamadas a exercer a liderança responsável, sobretudo, em tempos de crise, especialmente as denominadas crises humanitárias, como é esta provocada pela pandemia do coronavírus, inclusive porque prestarão contas de suas ações aos cidadãos que são seus eleitores, daí ser indispensável ter a devida consciência de seu vital papel social, e que as decisões tomadas podem evitar uma maior contaminação, preservar a saúde e poupar vidas, por isso, precisam estar assessorados por pessoas especializadas, cientistas, médicos, enfermeiros etc, que ajudem fundamentar estas difíceis decisões que objetivam preservar vidas.

A decretação do estado de calamidade pública no Brasil, pelo Congresso Nacional, até dia 31 de dezembro de 2020, atendendo a pedido do presidente da República, que, por sua vez, promulgou a lei 13.979/2020, indica o nível de compreensão das autoridades públicas, do perigo social da crise humanitária na área de saúde que envolve o território nacional, e é neste sentido que as demais normas legais: Federais, Estaduais e Municipais, tem sido emanadas, visando a preservação da saúde e da vida das pessoas, que se contaminadas, segundo os especialistas, irão sobrecarregar o já fragilizado Sistema de Saúde Nacional, causando um colapso no atendimento médico, e consequentemente, em alguns casos, provocando adoecimento e mortes de brasileiros, a exemplo de outros países.

É neste contexto que os religiosos, sejam anciãos, babalorixás, médiuns, padres, pastores, rabinos, sacerdotisas, sheiks, entre outros, de todos os matizes de crença, cidadãos da sociedade brasileira, especialmente, necessitam administrar o exercício da fé no estado de calamidade pública no país, (decreto legislativo  6 de 2020, exarado em função da pandemia mundial do coronavírus, como reconhecido pela Organização Mundial de Saúde), que continua sendo direito fundamental assegurado na Constituição Federal, mas que, segundo o Supremo Tribunal Federal, não é um direito absoluto, eis que, no Ordenamento Jurídico Nacional não existem direitos absolutos, podendo estes direitos, em situações excepcionais, serem mitigados, em função do interesse coletivo da sociedade, o que não implica em cerceamento, mais sim proteção aos seguidores aos adeptos das religiões, quaisquer sejam elas, pois estes espaços de fé também atuam como pronto-socorro espiritual, e, mesmo comunidade terapêutica, que as pessoas, fiéis ou não, procuram, em diversificados horários para receber orientação religiosa para a vida.

Temos vários decretos municipais proibindo a abertura de templos religiosos, e, cecisões judiciais em primeira instância conflitantes, e mesmo de segunda instância divergentes, com relação ao direito de manter as igrejas abertas, o que, independente da MP 10.292, 25.3.2020, que considerou, entre outras, como essencial para efeitos das proibições efetuadas pelo coronavírus, as "(..) atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde (.)", o que, em nosso modesto entendimento não é competência do Estado brasileiro, em todos os níveis e esferas, eis que, é neutro religiosamente, se não ele também poderá adiante querer intentar, seja através do Poder Executivo, o Poder Legislativo ou o Poder Judiciário, definir sobre a não essencialidade do exercício da fé do cidadão, haja visto estes serem mais que essenciais, e sim indispensáveis na construção do tecido social, sendo expressa a vedação constitucional de regulação da religião pelo governo, eis que, este além de direito natural é um direito fundamental, assegurado pela Carta Magna Nacional.

Organizações de Juristas Cristãos já tem se manifestado, e expressado sólidos fundamentos legais, doutrinários e jurisprudenciais, pelo que, escuso-me desta relevante tarefa, acerca da questão que envolve as igrejas e as medidas legais governamentais alusivas a pandemia do coronavírus, especialmente, com posicionamentos nem sempre coincidentes, demonstrando que o direito é multifacetado, possibilitando diversificados pontos de vistas legais, e necessariamente não está um correto e outro errado, são tão somente perspectiva diferenciadas, todas com lastro na lei e na doutrina, e emanadas de pesquisadores do direito, respeitados por todos no mundo jurídico, fincando-se, que este é um direito fundamental atinente a dignidade da pessoa humana, que possui diversificadas dimensões, sendo certamente uma delas a transcendental ligada ao exercício da fé, lastrada em valores pessoais da vida.

Singelamente, com todas as vênias a entendimentos diversificados, sustentamos que o direito fundamental a liberdade religiosa assegurado na Constituição Federal, artigo 5º, inciso: VI, Cláusula Pétrea, não pode ser proibido nem por emenda constitucional, lei, MP ou decreto, seja Federal, Estadual ou Municipal, ou seja, a Carta Magna, lastrada na separação igreja-Estado, artigo 19, inciso: I, que norteia a Laicidade do Estado brasileiro, que fundamenta a Neutralidade do Estado Religiosamente; sendo está a base para que os Centros Espíritas, Espaços Orientais, Igrejas Evangélicas, Mesquitas Muçulmanas, Sinagogas Judaicas, Templos Católicos, Terreiros Afro-brasileiros, entre outros, funcionem, mantendo suas atividades religiosas, ainda que de forma limitada, (no que tange ao atendimento a uma quantidade controladíssima de pessoas), inclusive contribuindo para fortalecer as imunidades psicológicas, que as auxiliam a superar as batalhas da vida, através de afeto, amor, amizade, caridade, solidariedade, fraternidade, companheirismo etc, vivenciado entre os fiéis, inclusive provendo, em casos de crises pessoais e humanitárias, suporte emocional, aconselhamento e conforto espiritual, para as famílias que estão enfrentando os reflexos das consequências do isolamento social, a doença, e óbitos de seus parentes.

Asseveramos que os Locais de Culto tem o direito de permanecer abertos para socorrer espiritualmente seus fiéis, e todos aqueles que necessitarem de orientação religiosa, é claro que, neste tempo de pandemia do coronavírus, cumpridas as orientações do Ministério da Saúde, relativas a abstenção na aglomeração de pessoas, além da necessária utilização dos EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) da Saúde, inclusive para realização de atividades on-line; evidentemente que, em caso de existência de decreto Municipal, Estadual ou Federal proibindo esta faculdade constitucional de manterem suas portas abertas a comunidade, estes necessitam socorrer-se do Judiciário Pátrio, se for o caso, até o Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Carta Magna do Brasil, eis que, salvo melhor juízo, à luz do exposto, é inconstitucional norma legal ou decisão judicial que determine o fechamento de prédios das Organizações Religiosas, exceto se estes não preencherem os requisitos relativos aos Regramentos Jurídicos, tais como: Estatutos Associativos averbados no RCPJ (Registro Civil das Pessoas Jurídicas), Registro no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas) junto a Receita Federal do Brasil, Documento de Propriedade ou Autorizativo de Uso do Imóvel Utilizado, Cumprimento da Legislação para Construções de Uso Comunitário, Plano Diretor da Cidade, Alvará Municipal, (onde exigível), emitido pela Prefeitura Local, ou, o Certificado Estadual do Corpo de Bombeiros (obrigatório) autorizativo para o funcionamento do Espaço de Culto; até porque nestes ambientes, também são propagadas orientações cívico-comunitárias, e, nestas Comunidades Religiosas concentram-se percentuais expressivos de idosos, e, de pessoas com comorbidades.

Nesta perspectiva social merece elogios as iniciativas das Organizações Religiosas que estão orientando seus fiéis a atenderem as Medidas Legais das Autoridades Governamentais com relação ao combate e prevenção a pandemia do coronavírus, inclusive provendo, iniciativas de Reuniões, Missas, Cultos etc, on-line, via Internet, Redes Sociais, Facebook, WhatsApp, Instagram, Twitter etc, contribuindo, em seu vital papel social, para que os fiéis possam exercer seu direito fundamental a liberdade religiosa, mesmo tendo sua liberdade de circulação cerceada, postando vídeos nos respectivos Canais do Youtube, acessíveis a todos os religiosos, alimentando a fé e crença das pessoas, inclusive para que possam manter a esperança de que esta crise, como outras, vai passar; isso é reconhecido pelas Autoridades Nacionais, como propagado pelo Ministro da Saúde, Dr. Luiz Henrique Mandetta, "Pastores Preguem", ou seja, é neste tempo de crise que o povo necessita ser alimentado espiritualmente por seus Líderes Religiosos.

A questão, em nosso modesto entender, que está colocada é o cerceamento da liberdade de circulação dos cidadãos, quer sejam agnósticos ou ateus, espiritualistas, religiosos, sem religião etc, e aí o Estado, em todas os seus níveis e esferas, tem direito constitucional, em situações excepcionais, reconhecidas pelos órgãos legislativos competentes, como foi o caso do Congresso Nacional em relação a pandemia do coronavírus, de estabelecer proibições, sempre fundamentadas em Normas Legais, que são limites sociais, tais como, quarentena, isolamentos para todas as pessoas etc, objetivando minimizar os efeitos das consequências na saúde da população brasileira, à qual é uma das obrigações do gestor público, qualquer seja sua esfera de atuação, daí ser importante que os fiéis obedeçam as orientações e determinações legais quanto a evitar a aglomeração de pessoas, seja em locais fechados ou abertos; pois, no caso dos Cristãos, existem dois formatos bíblicos de comunhão com Deus, sendo um deles, o individual registrado no Evangelho de Mateus 6: 5-8, e, o outro, coletivo, como contido no Evangelho de Mateus 18:20, ambos os exercícios de fé com amparo Constitucional em nosso país, para o Cidadão Religioso.

Assim a restrição governamental deve, como está sendo, direcionada para circulação das pessoas, no propalado isolamento social, no afã de evitar-se a propagação do vírus, o que é direito e dever do Estado, e não a proibição do funcionamento dos Templos de Qualquer Culto, que devem estar abertos para atender as necessidades transcendentais de seus fiéis e frequentadores; sendo muito perigoso o que está acontecendo pelo país, onde uma Igreja Anglicana em Poços de Caldas/MG, e, a Igreja do Ministério Nova Vida, em Fortaleza/CE, que transmitiam seus respectivos cultos on-line, quando foram invadidas por Agentes Públicos tendo sido obrigadas a interromper a transmissão em função de Decretos Municipais; e, causa espanto, ainda maior, que uma Igreja Universal do Reino de Deus, Fortaleza/CE, foi invadida durante um Culto Religioso, onde, segundo a Impressa Local, haviam cerca de 40 (quarenta) fiéis no Salão de Cultos, tendo a Policia Militar sido acionada e encerrado compulsoriamente a Reunião Espiritual; e, outro, onde um Culto Doméstico em Santa Catarina, que segundo a Mídia Digital, reunia cerca de 5 (cinco) pessoas, foi interrompido pela Polícia Militar, em cumprimento a um Decreto Estadual; casos em que se olvidou, que até quando procede-se a Citação Judicial, que é o cumprimento da Ordem de um Juiz, à luz do Código de Processo Civil, está disposto que a Cerimônia Religiosa só pode ser interrompida em caso de perecimento de direito; demonstrando-se concretamente a vedação do Estado Laico imiscuir-se na fé do cidadão, sendo vedado ao Estado Teologizar, numa aplicação prática da Separação Igreja-Estado, no Sistema Jurídico Nacional; sendo estas situações anotadas, nitidamente inconstitucionais, na ótica da não intromissão do Estado na religiosidade do povo.

Positivo é perceber que também temos práticas salutares equilibradoras destas duas percepções expostas, eis que, permanece, graças a Deus, vigente em nosso País, o Estado Democrático de Direito, com a higidez constitucional, sendo um direito do Estado cercear a circulação de pessoas, e os religiosos, enquanto cidadãos conscientes e corresponsáveis já tem dado sua valiosa contribuição ao se isolar socialmente, outra, de que é direito dos Templos de Qualquer Culto permanecerem abertos no exercício da fé em nosso país, exatamente porque o Estado é Laico, mas o Povo é Religioso; pelo que, neste tempo do Estado de Calamidade Pública no País, destacamos a decisão da Juíza Paulista que determinou que fosse limitada a visitação a Basílica de Aparecida/SP, sem qualquer restrição ao normal funcionamento no maior santuário do Brasil, e local de peregrinação de fiéis católicos, e, ainda, enfatizamos, como noticiado pela grande imprensa, que os fiéis soteropolitanos acataram a orientação da Arquidiocese Católica e da Prefeitura de Salvador/BA, numa harmonização do direito ao exercício da fé, eis que, os mesmos abstiveram-se da presença física, tanto durante a Missa realizada na Paroquia Católica, e, na Tradicional Procissão, que teve carros acompanhando a passagem da imagem do Senhor do Bonfim; que deve, no princípio igualitário, ser assegurado para todos os grupos religiosos, na perspectiva constitucional do Estado Laico Nacional.

Neste tempo da vigência no país do Estado de Calamidade Pública em função da pandemia do coronavírus é vital que os Fiéis de Todas as Denominações Religiosas mantenham-se, dentro do possível, as suas atividades pessoais e profissionais, em isolamento social e em quarentena comunitária, cumprindo as determinações legais, de proibição da circulação de pessoas, e que os Templos de Qualquer Culto, à luz da Constituição Federal, possam, através de suas Lideranças Religiosas, manter as portas abertas, sendo, evidentemente, atendidas as determinações do Ministério da Saúde, para inclusive, também em seu Tradicional Espaço de Culto, possa-se rogar as Céus pela Pátria, pelas Autoridades, por todos os Profissionais da Área de Saúde, para que Deus tenha misericórdia de nós e nos ajude a atravessar esta tempestade sanitária, e, que por graça, se possível, abrevie este tempo de Pandemia Mundial; até porque, as Igrejas tem uma atuação profética, eis que, funcionam como uma espécie de farol no meio do mar, que dá segurança ao navegante para chegar a um porto seguro, cumprindo um indispensável papel social.

"E orai pela paz da Cidade, (...), porque na sua paz, vós tereis paz.", Livro de Jeremias 29:7

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*Gilberto Garcia é mestre em Direito, e, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros.

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