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A supremacia do acordo coletivo sobre a convenção coletiva e seu possível efeito colateral na livre concorrência

O acordo coletivo de trabalho ganha uma relevância para além das relações sindicais e trabalhistas por ele abrangidas, passando mesmo a ser uma ferramenta que, se bem utilizada, pode oportunizar melhor posicionamento do agente econômico no mercado, funcionando como um diferencial competitivo.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Atualizado em 11 de abril de 2020 10:21

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1- Introdução

O direito do trabalho é composto de normas heterônomas, impostas às partes, comumente derivadas da atividade legislativa do Estado - ramo jurídico propício à intervenção e regulação estatal - e também de normas autônomas, criadas pelos seus próprios destinatários - no caso, empregados e empregadores - em regra, por meio de suas entidades de classe.

No Brasil, as normas autônomas, reconhecidas constitucionalmente1 (artigo 7º, inciso XXVI da CR/88), são obtidas pela autocomposição, fruto dos processos de negociação coletiva que se estabelecem entre os sindicatos representativos das categorias econômica e profissional correspondentes - convenção coletiva de trabalho (CCT) - ou dos empregadores diretamente com a entidade laboral - acordo coletivo de trabalho (ACT).

E além das expressas referências constitucionais, também no plano internacional, os compromissos assumidos pelo país2, mais precisamente pela ratificação da Convenção 1543 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre o incentivo à negociação coletiva, sinalizam claramente a relevância dada - e esperada - à atuação dos sujeitos coletivos na construção e regulação de direitos, num espaço de diálogo e participação democrática, a fim de que as próprias partes resolvam suas controvérsias.

Inclusive, para efeito da Convenção 154 da OIT, segundo diretriz contida em seu artigo 2, a "expressão negociação coletiva compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com o fim de: a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez."

Desta forma, a busca e o estímulo à negociação coletiva livre e voluntária entre os atores sociais e econômicos, representantes do trabalho e do capital, decorrem não apenas da legitimidade que este processo naturalmente confere às normas e pactuações dele resultantes, na medida em que as próprias partes pacificam seus impasses, mas também do modo concebido na CR/88 e declarado pela OIT na construção e evolução do direito do trabalho, notadamente no aspecto coletivo.

E no caso do Brasil, dado o reconhecimento de convenções e acordos coletivos de trabalho e o status de fonte formal de direito que lhes são atribuídos4, não raro depara-se com a vigência simultânea de instrumentos sindicais, aplicáveis para um mesmo grupo de trabalhadores, com determinações divergentes entre si, emergindo daí um conflito de normas, que reclama uma resposta adequada e segura por parte do direito. 

2- O choque normativo: CCT x ACT

O princípio da norma mais favorável é, certamente, um norte a ser seguido para solucionar qualquer discussão acerca da aplicação de preceitos na seara laboral, porquanto recomenda, verificada a coexistência de normas conflitantes, que se opte por aquela que for mais favorável ao trabalhador, "pouco importando sua hierarquia formal", como leciona Vólia Bomfim Cassar.5 Nesta mesma direção, apontava a dicção do antigo texto do artigo 620 da CLT.6

Com inspiração na base principiológica do direito do trabalho, cuja proteção ao hipossuficiente constitui alicerce ao edifício normativo trabalhista, a doutrina especializada também oferece respostas para este confronto de normas, enunciando as teorias da acumulação, do conglobamento e do conglobamento mitigado, revelando, todas elas, cada uma à sua maneira, a prevalência da melhor norma ao trabalhador.

Contudo, na prática, não obstante os precisos conceitos e formulações de cada uma das referidas teorias, a insegurança jurídica é - ou era, até o advento da Reforma Trabalhista e alteração na redação do artigo 620 da CLT  - uma chaga a ser enfrentada e superada pelos envolvidos, porquanto o resultado a ser empregado nas situações de conflito normativo entre uma CCT e um ACT, para o mesmo grupo de trabalhadores, fica(va) ao sabor e compreensão do intérprete, a depender da corrente doutrinária que se filia(va).

3- A nova redação dada ao artigo 620 da CLT

No campo das relações coletivas de trabalho, a Lei 13.467/17, intitulada Reforma Trabalhista, promoveu significativas alterações, que decerto atingem também - direta ou indiretamente - as relações individuais laborais, sendo que uma das mais expressivas das modificações legislativas consiste no reconhecimento da supremacia da norma negociada sobre a norma legislada e, mais especificamente, da prevalência das condições estabelecidas em acordo coletivo sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho, de acordo com a novel disposição contida no artigo 620 da CLT.

Eis a atual diretriz do artigo 620 da CLT: "As condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho".    

Com o brilhantismo que lhe é peculiar, o professor e juiz Rodrigo Dias da Fonseca comenta a mudança ocorrida na prescrição legal do dispositivo focalizado:

A aplicação da norma mais específica, o acordo coletivo, prestigia ainda o princípio da autonomia privada coletiva, de assento constitucional (art. 7º, XXVI). A Constituição Federal reconhece os acordos coletivos e as convenções coletivas e de fato é perfeitamente possível convivência harmônica entre as duas fontes formais autônomas do Direito do Trabalho, nos termos do art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. 

(...)

A simultaneidade de ambos os instrumentos, como se nota, é viável, tal como a norma geral e especial coexistem, consoante se sucedem no curso do tempo. Assim, para a generalidade dos empregados integrantes de certa categoria profissional, como regra geral, aplicar-se-ia o disposto na convenção e para aqueles vinculados a uma empresa em específico, aplicar-se ia a regra especial, o acordo coletivo.7

Assim sendo, o legislador reformista, ao alterar a redação do artigo 620 da CLT, ao mesmo tempo em que empresta segurança jurídica às hipóteses de coexistência de normas coletivas, determinando, por expressa dicção da lei - artigo 5º, inciso II da CR/88 - a prevalência do ACT sobre a CCT, também caminha em sentido lógico, pois um instrumento ou regra, de natureza específica, deve preponderar sobre um instrumento ou regra de caráter geral.  Além disso, nunca é demais lembrar que, seja qual for o diploma normativo, numa das pontas, estará sempre a entidade sindical profissional, que conhece proximamente a experiência laboral dos membros que representa e as particularidades de cada empresa com quem negocia, o que lhe confere legitimidade para autorregular os direitos dos trabalhadores, mediante deliberações e decisões tomadas nas assembleias gerais, convocadas segundo os procedimentos formais e quóruns legais e estatutários.8

Ademais, ainda segundo o escólio abalizado de Rodrigo Dias da Fonseca, num contexto em que já existe uma convenção coletiva em vigor, "pela regra anterior e na esteira do entendimento sufragado pelo TST, seria desestimulante ao empregador a celebração de acordo coletivo em tal situação, porque saberia que as disposições negociadas apenas teriam eficácia se mais vantajosas, na comparação com a convenção", sendo que, "na hipótese de ainda não existir uma CCT, ainda assim o empregador encarará com reservas a negociação tendente à celebração do acordo, pois uma convenção superveniente poderia tornar letra morta o teor do ACT".9

Pelo exposto, a mudança promovida na redação do artigo 620 da CLT cristaliza solução adequada para o conflito entre diplomas normativos (CCT x ACT) e põe fim à celeuma hermenêutica até então existente, trazendo a necessária segurança aos negócios jurídicos celebrados no âmbito trabalhista.

4- A livre concorrência entre as empresas e o direito do trabalho

Segundo o artigo 170, inciso IV da CR/88, a livre concorrência é um dos princípios da ordem econômica brasileira.

A respeito da liberdade concorrencial, Rocco Antônio Rangel Rosso Nelson e Walkyria de Oliveira Rocha Teixeira lecionam:

A livre concorrência versa, exatamente, sobre um espaço que propicie igualdade de condições para que os atores econômicos possam disputar/competir entre si determinado segmento lícito na busca de êxito econômico conforme as leis do mercado.10

Daí, portanto, decorre que a igualdade de condições é essencial para a manutenção da economia de mercado, de modo a evitar distorções, abusos do poder econômico e práticas anticoncorrenciais.

Inclusive, a partir desta noção, e para se ampliar a compreensão do objeto proposto, voltando o olhar novamente para a seara laboral, a prática empresária conhecida como dumping social, além de repudiada pelo direito trabalhista, por representar redução dos custos da mão de  obra em função da superexploração do trabalho humano, decorrente da franca, deliberada e reiterada transgressão ao padrão legal mínimo de proteção laboral, configurando prejuízo social, também o é pelo próprio direito concorrencial, em vista justamente dos reflexos nocivos que ocasiona à livre concorrência entre as empresas, porquanto "esta prática anticoncorrencial descamba em um capitalismo predatório, tendo por objeto cortar despesas com mão de obra por meio do desrespeito ao direito do trabalho".11

Logo, é possível afirmar que o direito do trabalho, além do seu papel tuitivo, acaba por assumir também uma função regulatória do mercado e de orientação na atuação dos agentes econômicos, preservando condições isonômicas, compatíveis e favoráveis à concorrência entre empresas, sobretudo do mesmo segmento econômico. Ou seja, a sujeição das organizações empresariais às mesmas exigências legais no campo das relações trabalhistas - leia-se, conjunto de normas que formam o direito do trabalho - é atributo salutar para a manutenção da livre concorrência, pois permite um cenário de igualdade de condições e equilíbrio entre as empresas no processo competitivo que se estabelece dentro do mercado.

Vale dizer que a contratação de trabalhadores por empresas do mesmo porte, ou de portes semelhantes, que exploram o mesmo ramo econômico implica, sob o prisma da lei, na observância das mesmas obrigações, encargos e custos de naturezas trabalhista e previdenciária, o que, ao mesmo tempo, atende a proteção juslaboral  dedicada  à pessoa humana do prestador de serviços e também assegura, neste aspecto, a livre concorrência empresarial.

E é exatamente neste ponto que reside o possível efeito colateral decorrente da atual redação dada ao artigo 620 da CLT: se o ACT, cuja aplicação abrange apenas os trabalhadores de determinada empresa, ou grupo de empresas (norma de caráter especial, específica) prevalece sobre a CCT (norma de caráter geral, genérica), ao menos em tese, é possível imaginar que empregadores subscreventes de acordos coletivos podem obter, pelo ajuste da norma, condições diferenciadas e que sejam mais adequadas ao seu negócio, em comparação às demais sociedades empresárias da mesma categoria econômica, tudo isto, logicamente, sob o manto da mais estrita e inquestionável legalidade (neste aspecto, absolutamente diferente do combatido dumping social, dada a antijuridicidade desta prática).

Basta imaginar, hipoteticamente, que uma empresa pode negociar diretamente com o sindicato laboral, via ACT, condições específicas quanto a adicionais legais,  intervalo intrajornada,  horas de sobreaviso, trocas dos dias de feriados, controle de ponto, tempo à disposição, entre tantas outras cláusulas e obrigações de natureza econômica e social, o que lhe propiciará condições diferenciadas - e provavelmente mais adequadas e aderentes ao negócio - para atuar no mercado, tendo em vista que seu custo direto com a operação e com a própria burocracia trabalhista será melhor estimado se comparado ao dos seus pares, rompendo, em princípio, com a ideia de plena igualdade de condições entre os competidores. Adaptando o enunciado do ditado popular, poder-se-ia dizer, por este motivo, que "pau que dá em Chico, não (necessariamente) dá em Francisco".

5- Conclusão

O choque normativo entre um ACT e uma CCT, muito frequente na realidade de trabalho brasileira, reclamava uma solução mais segura - e previsível - por parte do legislador, o que redundou na reformulação do artigo 620 da CLT pela Lei 13.467/17 que, objetivamente, encerra as divergências havidas sobre a temática nos campos doutrinário, sindical e  jurisprudencial.

Por outro lado, a prevalência do diploma mais específico sobre o instrumento de caráter genérico, ocasiona - ou pode ocasionar, conforme o caso concreto - distorções no terreno da livre concorrência empresarial, porquanto os agentes econômicos poderão estar sujeitos a regras trabalhistas diferentes, impactando o custo final do negócio e, em última análise, no preço do produto ou serviço oferecido ao consumidor.

Assim sendo, o acordo coletivo de trabalho ganha uma relevância para além das relações sindicais e trabalhistas por ele abrangidas, passando mesmo a ser uma ferramenta que, se bem utilizada, pode oportunizar melhor posicionamento do agente econômico no mercado, funcionando como um diferencial competitivo.

6- Bibliografia

CASSAR, Vólia Bomfim. Comentários à Reforma Trabalhista, Editora Método.

NETO, Platon Teixeira Azevedo. Reforma trabalhista comentada - Lei 13.467/2017: análise de todos os artigos. Coordenador Rodrigo Dias Fonseca. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso. TEIXEIRA, Walkyria de Oliveira Rocha. Da precarização da relação de trabalho através da prática do dumping social. Revista LTr, Ano 83, Dezembro 2019.

__________

1Além do artigo 7º, inciso XXVI, a CR/88 possui vários preceitos evidenciando o relevo da atuação sindical e o prestígio da negociação coletiva de trabalho no direito brasileiro, tais como o artigo 7º, incisos VI, XIII e XIV; artigo 8º e seus incisos; artigo 114, §§ 1º e 2º.

2Por abordarem temáticas relacionadas à organização sindical e à negociação coletiva de trabalho, além da Convenção 154 da OIT, recomenda-se a leitura da Convenção 98, relativa à aplicação dos Princípios do Direito de Organização e de Negociação Coletiva, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 49, de 27 de agosto de 1952, e também da Convenção 87, relativa à Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização, esta última ainda não ratificada pelo Brasil.

3A Convenção 154 da OIT sobre o Incentivo à Negociação Coletiva, concluída em Genebra, em 19 de junho de 1981, foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 22, de 12 de maio de 1992.

4Os artigo 611 "caput" e § 1º da CLT definem, respectivamente, os institutos da convenção coletiva e do acordo coletivo de trabalho.

5CASSAR, Vólia Bomfim. Comentários à Reforma Trabalhista, Editora Método, p. 7.

6A antiga redação do artigo 620 da CLT estabelecia o seguinte: As condições estabelecidas em Convenção quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo.

7Reforma Trabalhista comentada: Lei 13.467/2017: análise de todos os artigos. Coordenador: Rodrigo Dia da Fonseca. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 318.

8Art. 612 da CLT: Os Sindicatos só poderão celebrar Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, por deliberação de Assembleia Geral especialmente convocada para esse fim, consoante o disposto nos respectivos Estatutos, dependendo a validade da mesma do comparecimento e votação, em primeira convocação, de 2/3 (dois terços) dos associados da entidade, se se tratar de Convenção, e dos interessados, no caso de Acordo, e, em segunda, de 1/3 (um terço) dos mesmos.   

9Op. Cit., p. 318.

10Da precarização da relação de trabalho através da prática do dumping social. Rocco Antônio Rangel Rosso Nelson e Walkyria de Oliveira Rocha Teixeira. Revista LTr, Ano 83, Dezembro 2019, p. 1463.

 11Op. Cit., p. 1466.

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 *Conrado Di Mambro Oliveira é advogado do escritório Mantuano, Neves & Di Mambro Advocacia.

 

 

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