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Como a medida provisória do coronavírus prejudica os profissionais da sáude

E como costumeiro o primeiro combate a situação criada pela Medida Provisória só poderá ser dado pelos próprios Profissionais da Saúde com a atenção redobrada em sua proteção, pois foram colocados ao relento pelo Estado.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Atualizado às 09:38

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Como notório a União emitiu a MP 927/20, declarando o Estado de Calamidade decorrente da epidemia do coronavírus. Como é tradicional no ramo jurídico nem toda medida é de pronto reconhecida como ilegal e sendo precisamente esse o caso, cabe aos operadores do Direito atentar para a enorme insegurança jurídica e prejuízo que essa irá trazer aos profissionais da saúde.

Em primeiro plano o prejuízo mais grave e direto da MP aos profissionais da saúde (Medicina, Enfermagem, Nutrição, Higienização, etc.) ficou estabelecido no seu artigo 29: Os casos de contaminação pelo coronavírus  (covid-19)  não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. E, como dito no adágio latino asinus asinum fricat, logo após a publicação da MP com esse dispositivo nasceu um coro louvando-a e ainda alegando para a isenção de responsabilidade dos empregadores a primeira parte da alínea "d" do § 1° do art. 21 da lei Federal 8.213/19911.

Para garantir transparência ao texto comunico que o autor é representante processual de profissionais da saúde e que esse estudo tem viés proteção desses profissionais. E, o motivo dele é de um lado mitigar os efeitos desse dispositivo e de outro dar combate enxurrada de publicações tendenciosas geradas na esteira da MP.

Explico. O texto do dispositivo fabricou uma exceção a atual legislação previdenciária e de infortunística. Criando a presunção legal de que eventuais profissionais da saúde contaminados pelo coronavírus não são portadores de doença ocupacional e que, portanto não foram vítimas de acidente de trabalho2.  Em seguimento o texto da MP ainda os encarregou a constituir a prova de que a sua contaminação se deu por força de seu trabalho.

Como consequência disso o profissional da saúde eventualmente contaminado em decorrência de seu trabalho pelo coronavirus não será de plano titular de Direito a estabilidade ânua, auxílio-doença e aposentadoria acidentária ambos em caso de sequelas, pensão para seus dependentes em caso de morte e/ou de direito a eventuais indenizações.               

Antes de tudo cabe precisar que a caracterização da contaminação pelo covid-19, como acidente de trabalho requer algum trabalho, pois fica necessária sua delimitação junto a legislações cível, previdenciária e de infortunística. Assim a natureza jurídica da contaminação ocupacional pelo covid-19 dever ser composta pela operação mental de que essa é do gênero doença ocupacional e da espécie doença do trabalho equiparada a acidente do trabalho atípico. Para isso apelando-se as disposições da lei 6.367/763, lei 8.213/914 e para busca de eventuais Indenizações pelas disposições do § único do art. 9275 e conforme o caso o art. 9506, todos do Código Civil em combinação com o art. 2º da CLT7.

Com as devidas adaptações o modelo acima também é aplicável a qualquer outro trabalhador em especial os dedicados a serviços essenciais que venha a se contaminar pela covid-19. A exceção em todos os casos dos trabalhadores de qualquer ramo que estejam em regime exclusivo de teletrabalho ou sob quarentena.               

Aparentemente a caracterização é simples e a jurisprudência e doutrina são férteis em declarações relativas às condições para o reconhecimento de contaminações biológicas como doenças do trabalho, sua caracterização como acidente de trabalho e a respectivas fixações de responsabilidade estatais e privadas em geral.               

No entanto a MP de largada deu uma presunção legal negativa e carregou aos profissionais da saúde o encargo de fazer sua prova para o reconhecimento do acidente de trabalho, sujeita as mais variadas dificuldades, por exemplo, a resistência dos empregadores em espontaneamente gerar CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho). Tendo os empregados de socorrerem-se junto a sindicatos, testemunhas etc. Enquanto os tmpregadores de forma confortável só precisaram alegar contaminação comunitária. Bem como, o cumprimento das medidas sanitárias e de segurança do trabalho gerais da área e específicas na defesa ao vírus. Deixando ao trabalhador a produção da prova reversa disso que é das mais dificultosas.

Até mesmo sob as luzes do novo precedente do STF constante do RE 828.0408 relativo à responsabilidade objetiva do empregador há prejuízo, posto que, a ressalva os "casos especificados em lei" integrante desse julgado foi devidamente explorado na MP.  Ora quando a MP especificou que a contaminação por coronavírus não será considerada doença ocupacional deslocou a análise desses casos para a via tormentosa da responsabilidade subjetiva. Como resultado a redação foi engendrada para gerar insegurança jurídica e provocará que eventuais atingidos levem anos para efetivarem seus direitos, condicionados ao êxito na prova da contaminação em local de trabalho.

Apesar ônus da prova já ser regulado notoriamente pelos artigos 818 da CLT e 373 do CPC, a atrocidade desse dispositivo reside no fato de que até em boas condições sanitárias gerais já seria complexa tal produção de prova. Pois a contaminação pelo covid-19 postas suas características (sobrevivência em superfícies, incubação, rápido progresso etc.) não pode ser tratada como uma perfuração por agulha hipodérmica. Pior, incidirá sobre profissionais que estão e estarão trabalhando em quadro de insuficiência de materiais de proteção como máscaras, luvas em jornadas de trabalho extenuantes e longe de suas famílias.

E a caracterização de eventual contaminação como doença ocupacional acabará tendo de ser buscada como é de praxe via perícia, sujeitando-se o profissional da saúde a todo tipo de risco (ex: alterações posteriores de protocolos, rotinas, disposição de mobiliários etc.). E dependente também de condutas judiciais e periciais que podem comprometer a função regulatória do Direito do Trabalho frente à lesão que feriu a incolumidade física desses profissionais. Como louvar-se unicamente em documentos unilaterais sempre benignos aos empregadores como PCMSO, PPRA e PPP.

Ainda que ciente da possibilidade de Inversão do ônus da prova em favor dos profissionais da saúde a solução favorável a eles de praxe só poderá ser obtida através de cuidadosa quesitação pericial por parte das suas representações. O outro caminho será a ponderação direta ou indireta pelo juízo de que os profissionais da saúde estavam e estarão constantemente trabalhando em locais sujeitos a contaminação pelo covid-19 durante as suas jornadas de trabalho por vários meses. A expressão dessa realidade pode ser aferida diante da contaminação sofrida pelo médico infectologista David Uip, chefe do Centro Contingenciamento do Coronavirus do Estado de São Paulo9.               

Agora quanto à alegação de isenção patronal de responsabilidade através da primeira parte da alínea "d" do § 1° do art. 20 da lei Federal 8.213/1991, essa não passa de argumento/discurso de terraplanismo jurídico. Desde já a desqualifico e o faço sem ter de apelar a abstrações, pois é de plano anticientífica como anda cada vez mais comum também no Direito nos tempos atuais. Veja-se que o covid-19 criou uma epidemia10 que não pode ser confundida com uma endemia de classificação diversa, sendo habitual e restrita geograficamente como a doença de Chagas, Malária etc. E que tais raciocínios além de obscurantistas são dissimulados, pois a segunda parte do mesmo dispositivo excetua de forma expressa a "exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho". Portanto podendo ser elidido apenas via produção de prova pelo interessado de que sua contaminação foi sim em consequência de seu Trabalho.

Para concluir, a União num momento grave de escala planetária gestou uma exceção premeditada deixando os profissionais da saúde e familiares em caso eventual óbito, destapados das garantias da lei. E como costumeiro o primeiro combate a situação criada pela MP só poderá ser dado pelos próprios profissionais da saúde com a atenção redobrada em sua proteção, pois foram colocados ao relento pelo Estado. E em havendo contaminação essa deverá ser imediatamente notificada às autoridades competentes e aos empregadores para a geração de CAT, em caso de resistência procurar a geração desse comunicado via sindicatos, armarem-se de testemunhas e de paciência para os certos e vários anos de litígio.

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1 Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.

2 Dispõe a lei Federal 8.213/1991: Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

3 Dispõe a lei Federal 6.367/1976: Art. 2º Acidente do trabalho é aquele que ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

§ 1º Equiparam-se ao acidente do trabalho, para os fins desta lei:

I - a doença profissional ou do trabalho, assim entendida a inerente ou peculiar a determinado ramo de atividade e constante de relação organizada pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS);

4 Dispõe a lei Federal 8.213/1991: Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.

5 Dispõe o Código Civil de 2002: art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

6 Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

7 Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

8 "O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

9 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,com-tosse-e-febre-david-uip-faz-teste-de-coronavirus,70003244614

10 Por definição, Endemia é uma enfermidade, geralmente infecciosa que reina constantemente em certo país ou região por influência de causa local. Enquanto Epidemia é uma enfermidade acidental, transitória, que ataca ao mesmo tempo um grande número de pessoas em um mesmo país ou região (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p.06). https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/endemias.pdf, acesso em 25/03/2020.

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*Nirio Lyma de Menezes é advogado no RS.

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