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Direito de Família e Pandemia: tempo de reflexão e transformação

Diante desse novo cenário, as famílias, certamente, não serão mais as mesmas. E, do mesmo modo, as relações jurídicas que permeiam as questões familiares também não. De fato, situação tão peculiar fará com que o direito das famílias seja não só impactado, mas também profundamente transformado.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Atualizado em 15 de abril de 2020 14:15

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A incerteza tomou conta da vida humana. A hesitação sobre o futuro das relações interpessoais, todos os dias, toma de assombro a sociedade que está vivenciando a situações, até então, desconhecidas. 

Diante desse novo cenário, as famílias, certamente, não serão mais as mesmas. E, do mesmo modo, as relações jurídicas que permeiam as questões familiares também não. De fato, situação tão peculiar fará com que o direito das famílias seja não só impactado, mas também profundamente transformado.

Nunca os valores como solidariedade, empatia, respeito e compreensão foram tão necessários à relações familiares. Os conflitos de outrora (muitos banais, inclusive) não têm mais lugar num ambiente em que o bem mais primordial do ser humano - a vida - pode estar em jogo. A perspectiva, evidentemente, muda.

Todavia, os questionamentos - ainda atrelados à antiga realidade pré covid-19 - são inúmeros e, especialmente aqueles que digam respeito aos direitos das crianças e adolescentes, mais nos afligem.

Há muitas perguntas e poucas respostas. Aos poucos os problemas do dia a dia estão batendo às portas do Judiciário que, também numa velocidade ímpar, tem tido que se reinventar. O tempo - e, quiçá o procedimento - das demandas de outrora não atende mais a vida pandêmica. As aflições causadas pela insegurança e incerteza são de proporções tão colossais quanto as consequências da crise que atravessamos.

Mais do que nunca, os aplicadores do direito das famílias (aqui inseridos os Juízes,  Promotores de Justiça, Advogados e todos os outros profissionais multidisciplinares que atendem a família em litígio) deverão valer-se dos princípios norteadores do direito familiarista, especialmente o do superior interesse da criança (artigo 227, caput, CF) e da proteção integral da criança e do adolescente (artigo 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente), para solucionar as adversidades que surgirão.

Dúvidas ficam no ar, especialmente sobre convivência/cuidado parental e alimentos: como garantir que a criança em quarentena esteja segura e, ao mesmo tempo, possa avistar-se com os genitores em convivência compartilhada? Como dividir responsabilidades parentais em tempos pandêmicos? E os pagamentos de pensões devidas aos infantes (e a observância de suas necessidades, portanto) frente às adequações à nova realidade econômica?

No tocante ao primeiro tópico - direito da criança e do genitor de conviverem e cuidado parental versus quarentena - o mais importante, a nosso ver, é que, garantida a incolumidade física da criança, se mantenham intactos os laços de afeto que a unem ao genitor visitador, bem como seja mantido intacto o equilíbrio nas funções parentais.

A ideia, portanto, é que sendo possível o convívio físico com segurança, seja ele mantido. Isto, inclusive, viabiliza que os genitores cuidem da prole de maneira equilibrada. Estando ambos os genitores em isolamento social, respeitando as orientações da Organização Mundial de Saúde e sendo garantido o trânsito seguro da criança de uma residência à outra, não há razão para suspensão do convívio.

Aliás, vale pontuar que países europeus que decretaram isolamento social têm estabelecido como razão de deslocamento autorizado o trânsito entre lares dos pais separados. Na França, seguem autorizados os trajetos entre as duas residências para efetivação de guarda alternada ou compartilhada dos filhos. Na Itália1, do mesmo modo, não há limitação para pais divorciados que precisam sair para buscar ou ver os filhos, mesmo que fora do município de residência. A emergência do coronavírus, na Europa, não tem impedido o cuidado conjunto da prole.

Eventualmente, caso a caso, ajustes nos períodos de convivência podem vir a ser recomendados. Aplicar ao período de quarentena o regramento do período de férias,  a nosso ver, parece o mais adequado. Isso garante que a criança fique menos exposta a idas e vindas e, assim, esteja mais salvaguarda, garantido o convívio equilibrado e o cuidado conjunto.

Assim, excepcionalmente, em casos em que o contato físico seja arriscado, o regime de convivência presencial pode vir a ser suspenso. De fato, genitores que estejam expostos ao vírus de forma mais frequente (profissionais de saúde que estejam na linha de frente do combate à pandemia, eg,) podem ter, ao menos neste momento mais agudo da crise, restrição ao seu direito de conviver com o filho comum.

Isso não pode significar, todavia, ruptura de laços. Assim, ao menos de maneira virtual, a convivência deve ser mantida, sendo certo que aquele que com a criança estiver deva zelar para que os contatos sejam frequentes e satisfatórios.

O segundo tópico apontado diz respeito ao pagamento de alimentos diante do cenário de incerteza econômica. Neste ponto deve o julgador ser o mais cauteloso e prudente possível.

De fato, é possível - e bastante provável - que os períodos de quarentena impactem na vida financeira daquele que paga alimentos. O que não se pode admitir, todavia, é que a existência do problema inerente ao coronavírus sirva de pretexto quase que automático para bruscas reduções no importe alimentar vigente.

A perda de capacidade financeira não pode ser presumida. O simples fato de haver restrições à atividade profissional do alimentante não pode ser elemento automático para diminuição de pensões devidas, sendo de rigor a análise da questão também sob o viés das necessidades da criança que seja credora da verba alimentar.

As necessidades, aliás, muito provavelmente continuarão a existir no mesmo patamar anterior à crise pandêmica. A redução, portanto, deve observar critérios concretos, até mesmo para evitarmos eventuais abusos ao direito de rever os pensionamentos.

O que se vê, portanto, é que garantirmos a convivência, os cuidados parentais e a subsistência da criança nessa realidade pós pandemia precisaremos buscar alternativas que se adéquem à nova sociedade. E, neste cenário, para a análise de novas realidades, novos olhares também se impõem.

Esses olhares - sob pena de acentuarmos a intensa desigualdade de gênero ainda existente no Brasil - não podem deixar de considerar que, na maioria dos lares, as cuidadoras diretas da prole ainda são as mulheres e também são elas que recebem (as vezes para si, as vezes para os filhos) os alimentos.

Deste modo, aos defensores do pensamento igualitário resta torcer e continuar a lutar para que todas as alterações (necessárias, não se olvide) jamais se afastem da realidade de gênero, da família constitucionalmente tutelada, de seus princípios norteadores e das peculiaridades que, desde sempre e para sempre, estão lado a lado do mais dinâmico (e afetivo) de todos os campos do Direito: o Direito das Famílias.

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*Silvia Felipe Marzagão é advogada do escritório Silvia Felipe e Eleonora Mattos Advogadas. É diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família; membro da Comissão de Direito de Família do Instituto dos Advogados de São Paulo e Co-fundadora do WeFam - Women in Family Law.

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