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Respeito à ordem para crescer

Luiz André Oliveira, Leonardo Pereira e Bianca Mareque

Já dizia Hugo de Brito Machado, que o direito tributário é a ferramenta para frear os ímpetos arrecadatórios do Fisco e os abusos por parte dos contribuintes.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Atualizado às 10:19

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Não é de hoje que os cenários econômicos tumultuados acabam por criar arapucas para os contribuintes. O primeiro passo é se especular formas de incrementar a arrecadação e, nesse sentido, a instituição de novos tributos e as modificações legislativas para alteração e revogação de benefícios fiscais são pauta. Além disso, é fácil perceber que a fiscalização por parte da Administração Pública, de ponta a ponta se endurece, e que as Procuradorias, em especial a da Fazenda Nacional, aumentam os esforços para viabilizar a liquidação de seus créditos. O sentimento compartilhado pelos contribuintes, portanto, é de que a Fazenda Nacional fecha o cerco e o litígio se torna inevitável. Já dizia Hugo de Brito Machado, que o direito tributário é a ferramenta para frear os ímpetos arrecadatórios do Fisco e os abusos por parte dos contribuintes.

No entanto, o que cada vez mais se verifica é que esses tais "ímpetos arrecadatórios" do Fisco, até então visíveis nas discussões acirradas de teses tributárias, na rigidez na análise de créditos compensados pelos contribuintes e nas edições de instruções normativas restritivas, está indo, ao arrepio dos princípios constitucionais mais básicos presentes em nosso valioso ordenamento jurídico, longe demais.

Em recentes decisões exaradas pela Receita Federal em processos administrativos fiscais, a Fiscalização tem pretendido rever os atos, já tornados juridicamente perfeitos pelo esgotamento das vias recursais, praticados pelo Carf - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. A inteligência é simples: esgotadas as possibilidades de defesa da Fazenda Nacional no processo, cuja última instância de julgamento é o Carf, segue a Receita Federal à reanálise da matéria julgada, em forma mesmo de defesa administrativa, e, com isso, persegue a cobrança de créditos tributários já cancelados pelo órgão do ministério da Economia. Vale destacar que este conta com o julgamento dos recursos que lá chegam por um colegiado paritário, instrumento que fortalece o Estado Democrático de Direito.

Assim é que, uma única autoridade fiscal hierarquicamente inferior, ao analisar o processo baixado do Conselho (autoridade hierarquicamente superior) - que deveria ter sua decisão simplesmente atendida e posteriormente ser arquivado -, desautoriza a decisão proferida pelo órgão superior e segue, portanto, de forma compulsória, e sem que o contribuinte tenha nova chance de defesa, com a cobrança de um crédito que esta autoridade - e só ela - entende devido. Ou seja, cria a fiscalização, com isso, sem nenhum respaldo legal e de forma totalmente inconstitucional, competência de exceção a si mesma para desconsiderar ato jurídico perfeito praticado pelo Carf.

Em um desses excessos de insurreição hierárquica ocorridos na Receita Federal, em auto de infração lavrado exclusivamente para prevenção de decadência com incidência de juros, estes tributos foram cancelados por decisão do Conselho, com a manutenção apenas da cobrança do valor principal até que a discussão do tributo na esfera judicial fosse encerrada. No entanto, na baixa do processo, o contribuinte se deparou com a cobrança dos exatos juros cancelados em definitivo pelo Carf pelo entendimento de que na prevenção de decadência não se pode cobrar juros. Na oportunidade, a intimação sobre o resultado do julgamento veio acompanhado de DARF para pagamento dos juros.

Em outro caso também da Receita Federal, após o Carf cancelar a cobrança, com provimento integral do recurso voluntário interposto pela empresa nos autos do processo administrativo competente, com a determinação do conceito jurídico de provisões técnicas, seguiu a Receita com a cobrança de valores que entendeu, ela, e repita-se, só ela, devidos. Na oportunidade foi dada interpretação à decisão do Conselho como se a cobrança tivesse sido mantida, sob a justificativa de que provimento do recurso voluntário não significaria provimento integral.

O que se verifica ultimamente, portanto, é a prática reiterada da Receita Federal de usurpar a competência do Carf, diga-se, conferida pelo ministério da Economia, órgão vinculado ao Poder Executivo, para impor seu entendimento acerca das controvérsias tributárias, o que revela seu maior desrespeito não só à legislação ordinária como à própria CF.

Prejudica sobremaneira também quaisquer medidas de incentivo à economia, uma vez que perpetua um cenário de insegurança jurídica junto aos investidores. Como investir num país, em que os fiscais da Receita Federal, braço do ministério da Economia, não respeitam o entendimento consolidado do seu próprio órgão hierarquicamente superior?

Tente explicar a um executivo estrangeiro, que ingressa no Brasil pagando todos os seus impostos e cumprindo todas as suas obrigações burocráticas adequadamente que, apesar de ter seguido todas as determinações dos órgãos mais altos da Administração Pública, ainda assim um fiscal na ponta do processo de fiscalização pode rever esses entendimentos e autuar a empresa. Não há segurança jurídica, o que afasta investimentos e se torna um entrave no desenvolvimento do país.

A verdade é que nenhuma fiscalização é soberana ou existe como um fim em si mesma, e contra quaisquer abusos os contribuintes devem lutar com vigor. A necessidade arrecadatória não pode ser razão para juízo de exceção, instituto existente na norma pátria para preservação da ordem pública. Vale lembrar que sem contribuinte não há ordem pública.

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*Luiz André Oliveira, Leonardo Pereira e Bianca Mareque são, respectivamente, sócio e associados do Vieira Rezende Advogados.

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