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Guarda compartilhada em tempo de coronavírus

Carla Louzada Marques Carmo e Juliana Reis da Silva

A situação experimentada é nova e demanda adaptação, sem prejuízo de novos arranjos, ainda que temporários, o bom senso mais do que nunca deve existir deixando de lado quaisquer desavenças, por um bem maior que é a vida.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Atualizado às 06:43

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Como conciliar os direitos e obrigações dos genitores com relação à guarda compartilhada ou às visitas estabelecidas aos filhos menores no caso de guarda unilateral durante a pandemia do Coronavírus, ou Covid-19?

De início, é imperioso destacar que não se vislumbra discutir neste artigo as hipóteses em que haja confirmação da doença ou, ainda, casos que impõe o dever de quarentena. Nestes casos mostra-se imprescindível a proteção do menor, e, consequente afastamento do seu genitor até que não ofereça mais risco de contaminação ao filho, como no caso de médicos e enfermeiros, por exemplo.

Modalidades de Guarda

O Direito brasileiro possui 02 (duas) modalidades de guarda, quais sejam, a guarda unilateral e a guarda compartilhada.

A guarda Unilateral - elencada no parágrafo 1º do art. 1583 do Código Civil, com a redação dada pela Lei 11.698, de 13 de junho de 2008 - é conferida a apenas um dos genitores, ou seja, o pai ou a mãe terá a guarda da criança, sendo estabelecido um regime de visitas ao outro genitor. Será concedida a guarda àquele que possuir as melhores condições de exercê-la.

Contudo, melhores condições não significa que apenas o genitor que possua a melhor condição financeira conseguirá obter a guarda, mas àquele que tiver condições de prestar assistência material, moral e educacional ao menor, o que vai muito além da questão financeira pura e simples.

Neste caso, quem não estiver com a guarda deverá contribuir para o sustento do filho, mediante o pagamento de pensão alimentícia. Esta modalidade de guarda ocorre apenas em caráter excepcional, se devidamente comprovada a sua necessidade.

Isso porque desde a promulgação da Lei 13.058 de 22 de dezembro de 2014 o regime de guarda compartilhada tornou-se regra, com o fito de que todas as decisões sobre a rotina da criança devem ser tomadas em conjunto pelos pais, ainda que a criança viva a maior parte do tempo com apenas um deles.

Diferente da convivência alternada , em que os pais dividem apenas o tempo da criança, neste caso os filhos do casal moram, alternadamente, durante determinado período de tempo com o pai e outro com a mãe, já na guarda compartilhada, os genitores dividem também as responsabilidades. Sob esse regime, o menor tem domicílio fixo e as visitas do outro genitor devem ser acordadas entre o casal ou definida por um juiz.

A guarda compartilhada garante aos pais uma maior convivência com os filhos, que estarão em situação de igualdade, possuindo os mesmos direitos e os mesmos deveres para com seus filhos.

Neste caso, mantém-se a necessidade de fixação de pensão alimentícia a ser paga pelo genitor que não mora com o filho.

Assim, quando não houver acordo entre os genitores, e encontrando-se ambos aptos a exercer o poder familiar a guarda a ser aplicada será a compartilhada, salvo se um dos genitores declarar que não tem interesse na guarda do menor.

Pois bem, na teoria a guarda compartilhada além de ser regra, é o regime ideal. Contudo, cabe ao juiz atender para o bem-estar da criança, o que funciona para uma família pode não funcionar para outra, devendo analisar casualmente a fim de certificar qual o cenário é mais favorável ao menor envolvido.

Direito de Visita - Influência da Pandemia

O direito de visitas é regulamentado pelo Artigo 1.598 do Código Civil Brasileiro, no qual evidencia-se que "O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação."

Extrai-se do dispositivo supra, que a visitação é direito dos pais, que nos casos onde não seja acordado, será fixado pelo juiz. A finalidade do direito de visita é manter os laços de afetividade existentes no seio familiar, além de garantir ao menor seu pleno desenvolvimento físico e psíquico.

Cumpre ressaltar que o direito à convivência familiar é resguardado pela Constituição Federal em seu artigo 2271 e no mesmo viés é o entendimento do art. 19º do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA2.

Nesse ínterim, a visitação visa assegurar, sobretudo, o direito do menor, parte mais frágil da relação. A regulamentação de visitas, independentemente da modalidade de guarda estabelecida, é direito do filho menor de idade, tal como do genitor que não tem a guarda consigo.

Pois bem, é de conhecimento de todos o estado de alarme causado pela pandemia do coronavírus (COVID - 19), que vem afetando a sociedade mundial, e exigindo adaptações sociais e econômicas de todos.

E como ficam as visitas aos menores neste caso?

Apesar das crianças não estarem no grupo de risco até agora divulgado, essa alternância entre a casa dos pais, seja pela guarda compartilhada, seja pelo direito de visitas a ser exercido, pode ser o caminho da transmissão entre uma casa e outra.

Já existem centenas de decisões judiciais suspendendo, ou modificando a convivência de filhos de pais separados. Este, certamente, é o impacto mais imediato e a curto prazo desta pandemia no Direito de Família.

Não existe previsão legal para a situação de calamidade que estamos enfrentando, devendo prevalecer mais do que nunca o bom senso. Tanto a guarda compartilhada como a unilateral devem observar o melhor interesse do menor.

O ideal é que os pais conversem entre si e cheguem a um acordo para proteger a saúde do filho.

O isolamento é uma orientação, não uma obrigação. Nada obstante, os julgados devem considerar o princípio do melhor interesse do menor, levando em consideração o risco de contágio que pode ocorrer com o leva e traz do filho de uma casa para outra.

A suspensão das "visitas" na atual conjuntura deve ser considerada medida protetiva e, resguardado todos os cuidados, deve ser concedida já que a não suspensão da "visita" pode acarretar em contaminação pelo vírus. Deve-se conseguir chegar a um acordo que resguarde os direitos e a saúde de todos, respeitando ao máximo o regime de guarda e de comunicação, evitando uma exposição desnecessária para o menor e para os adultos de seu entorno familiar, enquanto não normalize a situação.

O estado de calamidade enfrentado pelo COVID-19 enseja medidas extremas e, no caso em tela, entende-se que é melhor pecar pelo excesso do que pela falta, no caso, é melhor alterar momentaneamente o regime de visitas e assegurar a saúde do menor e daqueles que habitam no mesmo local.

Arrazoando o bom senso no que tange a saúde de todos, além da obrigação legal3, os genitores devem corroborar um com o outro e informar eventuais exposições que tenham tido, tais como viagens ao exterior, ou, ainda, informando se apresentar qualquer sintoma relacionados ao coronavírus, entre outras informações que possam ser relatadas no intuito de se evitar maiores contágios.

Recentemente, O desembargador José Rubens Queiroz Gomes, da 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proibiu um homem que viajou à Colômbia que visitasse a sua filha. Como a criança tem problemas respiratórios graves, a mãe diz ter medo que a filha seja infectada pelo novo coronavírus. 4  Ponderou-se no caso acima não somente o risco de contaminação em razão da viagem, mas também as condições de saúde da criança, a qual sofria, no caso, de doenças respiratórias. A função primordial do isolamento é evitar uma exposição desnecessária do menor por parte dos genitores. Deve-se buscar zelar, sempre, a proteção para a saúde do menor, evitando-se risco de contaminação. Em uma situação extrema, é possível que o filho tenha que ficar em uma só casa. Não se mostra plausível submeter o filho menor a um risco de contaminação tão somente para cumprir as determinações impostas pelo regime de convivência.

Nesse sentido foi negado pedido de busca e apreensão de criança para que passasse o final de semana com o pai. A juíza de São Paulo Capital, Paula Navarro determinou que a filha permaneça pelo prazo de 14 dias sob os cuidados da genitora. Nesse período, a criança deve permanecer em isolamento total e eventual descumprimento da ordem acarretará na inversão do regime de convivência em favor do genitor. A mãe deve, ainda, zelar para que o contato remoto entre pai e filha seja mantido em todo o período por meios digitais. "A busca e apreensão acarretaria na necessidade de saída da residência e realização de viagem para outros estados da Federação. O genitor, ao que se depreende, está pelo menos desde sexta-feira em São Paulo, expondo-se ao vírus", escreveu a juíza.5

De outro modo, cumpre ressaltar que proibir a convivência da criança, sem justificativa aceitável, pode ser considerada alienação parental, que ocorre quando o pai ou a mãe impede o contato do outro genitor com o filho, bem como pressiona a criança em desfavor do outro, ou, ainda destrói a imagem do outro para o menor. Há que se falar ainda dos pais que são profissionais da área de saúde e, face a profissão encontram-se diretamente em contato com pessoas contaminada ou com suspeita de contaminação.

Nestes casos o isolamento do menor com seu genitor é extremamente necessário, passando a guarda para o outro genitor e mantendo o contato por vias eletrônicas, sem aproximação. Uma enfermeira de uma rede particular de hospitais em São Paulo fez um relato emocionante no qual descreve que está arriscando sua vida, a vida se sua família, menciona também que não sabe se vai aguentar ficar sem ver a filha, mas entende ser necessário face ao risco de contaminar a filha.6 Ainda que seja o caso de genitores em home office a convivência física deve ser evitada, principalmente quando as partes envolvidas estejam acometidas por alguns dos sintomas desse vírus pandêmico ou, ainda, que tenham familiares idosos, com maiores riscos de contaminação. Ressalta-se que existe a orientação ao isolamento pela OMS e não a proibição de circulação, devendo-se manter ao máximo os cuidados com o menor e seus familiares.

Nesse contexto foi o entendimento da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo7 ao julgar agravo de instrumento em que o pai alegou alienação parental da mãe ao negar suas visitas a menor sob alegação de possível contágio. A decisão julgou o pedido parcialmente procedente para impedir as visitações durante o período de pandemia, as quais serão compensadas posteriormente, tudo isso em atenção a saúde da menor.

Evidencia-se, portanto, que não há uma regra específica, e direitos e obrigações devem ser ponderados levando em consideração o equilíbrio entre o exercício do direito de guarda e de comunicação dos pais com seus filhos, onde os genitores têm o dever constitucional de proteger, não cerceando sem qualquer juízo crítico a convivência e a comunicação do outro progenitor com o menor.

Outrossim, cabe esclarecer que - no caso de demandas judiciais- as decisões serão pautadas de acordo com as orientações das autoridades de saúde pública em conjunto com a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. De qualquer modo, verificado o contágio de um dos genitores, tanto a guarda compartilhada como o direito de visitar não poderá ser exercido, cabendo ao genitor não infectado resguardar o menor de eventual risco, podendo-se para isso utilizar-se da tutela jurisdicional para proibir qualquer contato. Deste modo, esta pandemia mostra que - como em qualquer relação, seja ela contratual ou familiar - o melhor caminho sempre é a sensatez sobre o bem comum.

A situação experimentada é nova e demanda adaptação, sem prejuízo de novos arranjos, ainda que temporários, o bom senso mais do que nunca deve existir deixando de lado quaisquer desavenças, por um bem maior que é a vida.

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1 "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (grifo nosso)

2 Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.

3 Clique aqui

4 Por medo do coronavírus, pai é impedido de ver filha após voltar da Colômbia.

5 https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=60673

6 Clique aqui

7 AGRAVO Nº: 2058565-25.2020.8.26.0000 - Seção III, Subseção V - Intimações de Despachos - 3ª Câmara Direito Privado - TJSP

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*Carla Louzada Marques Carmo e Juliana Reis da Silva são sócias do Petrarca Advogados.

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