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Quero trabalhar?!

Paulo Eduardo Teixeira

A advocacia não é profissão de elite; e, aproximadamente, 50 milhões de brasileiros não tem acesso à internet. Importante salientar que muitos advogados estão inseridos nesse índice.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Atualizado às 09:17

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Em razão de toda polêmica causada por circunstância da resolução 313/20, do CNJ, que suspendeu os prazos processuais e seus efeitos na advocacia, após algumas reflexões e indagações, aceitei escrever sobre o tema.

Faço esta análise com base em alguns princípios elencados na Carta Magna, em específico ao artigo 5º, caput e nos incisos IV, LIV e LV.

Primeiro, mediante a ótica do artigo 5º, ali está expressamente identificado o princípio da isonomia, em que se anuncia que todos são iguais perante a lei. Este princípio está no rol dos direitos fundamentais, sendo reconhecido como cláusula pétrea.

Pois bem! Como editar uma norma diante da triste realidade das desigualdades? A igualdade também é indispensável para que se atinja o objetivo de erradicar a pobreza, e, dentro desse contexto, duas realidades se apresentam: a advocacia não é profissão de elite; e, aproximadamente, 50 milhões de brasileiros não tem acesso à internet. Importante salientar que muitos advogados estão inseridos nesse índice.

Como já destacado, a CF garante que todos são iguais perante a lei. Essa igualdade pode ser classificada de duas formas: igualdade formal e material. Especificadamente, em relação a igualdade material, esta ocorre quando os mais fracos recebem um tratamento diferenciado para se aproximar dos mais fortes, ou seja, torná-los iguais diante das desigualdades. Para ser mais específico, todos terão tratamento diferenciado na medida das suas diferenças.

Feitas essas considerações, fixemos o seguinte exemplo para o caso específico: imaginemos a quantidade de advogados que não tem acesso à internet diante da volta dos prazos em época de pandemia ao mesmo tempo em que há restrição aos acessos públicos. Esse é o cenário que deverá ser observado para alcançarmos as respostas à indagação formulada neste artigo.

Processualmente, aplicar o princípio da igualdade significa que o Estado-Juiz deverá dar tratamento idêntico às partes, ou seja, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Assim, diante das observações, avancemos na aplicação de mais dois princípios fundamentais: o devido processo legal (inciso LIV) e a garantia do contraditório e da ampla defesa (inciso LV), ambos previstos no art. 5º da CF/88.

Cândido Rangel Dinamarco ao falar sobre devido processo legal afirma que esse conceito tem por objetivo garantir a segurança de um processo justo. Desta forma, o devido processo legal serve de estrutura para os demais princípios constitucionais, tais como o contraditório, a ampla defesa, isonomia, publicidade dos atos processuais, entre outros.

Rodrigo Lautria Tucci e Rogério Cruz e Tucci destacam que o devido processo legal reitera a garantia dos direitos fundamentais. O devido processo legal, distante de quaisquer dúvidas, é o instrumento mais utilizado por advogados em defesa de liberdades básicas de seus clientes.

Oportuno consignar que a CF foi o embrião de todo esse processo e aqueles que a elaboraram idealizaram que o devido processo legal teria a relevância em todos os tempos, inclusive em épocas como a atual.

O devido processo legal abriga todos os direitos outorgados pela Carta Magna, como o julgamento justo e imparcial, fundamentação das decisões, a ampla defesa e o contraditório. Logo, como assegurar um julgamento justo se as partes não estão em igualdade de condições?

O devido processo legal não é só uma garantia assegurada pela CF/88, também está destacado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XI, nº 01, garantido que:

"Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa".

Ressalte-se, GARANTIAS NECESSÁRIAS À SUA DEFESA.

Em uma análise da situação em uma leitura da obra literária "O Processo", de Franz Kafka, que serve de referência para nós advogados que lutamos pelo direito amplo de defesa, o réu é julgado sem ter a mínima noção do porquê está sendo processado. Do clássico livro, observa-se que Joseph K. ficou impossibilitado de se defender perante a "justiça", tendo sido ouvido em apenas uma audiência e nunca teve acesso aos autos do processo. É isso que queremos?

Em época de dificuldades de acesso à informação, produção de provas etc, devemos defender o retorno do processo de Kafka? Penso que não.

Consigno que este texto é apenas um ensaio, uma manifestação humilde que ofereço para o debate. Defendo a posição expressada neste texto e respeito as diferenças, pois entendo ser livre o direito à manifestação de pensamento, princípio que se encontra inserido no inciso IV, artigo 5º, da CF/88. É triste a memória recente do Brasil e de outros países que viveram os horrores da ditadura no tocante à censura e às proibições tocantes à liberdade de manifestação e pensamento. Continuarei com a minha liberdade de pensar e escrever.

Como certa vez escreveu Sobral Pinto, a advocacia é profissão para os fortes. Rui Barbosa, por sua vez, ensinou:

"A força do direito deve superar o direito da força. De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto."

Não quero nem pretendo ser omisso diante da discussão, razão pela qual expresso a minha opinião. Drummond eternizou o seu pensamento através da frase "e cada instante é diferente, e cada homem é diferente, e somos todos iguais". No campo das citações, trago ao conhecimento as palavras de Platão "a democracia é uma constituição agradável, anárquica e variada, distribuidora de igualdade indiferentemente a iguais e a desiguais".

Ressalto, mais uma vez, dizendo que devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. E deveras impossível, no momento, diante de toda a problemática, impor à advocacia e aos jurisdicionados o retorno dos prazos de forma tão abrangente, sem fixação de limites e critérios, ou seja, voltar a qualquer preço. E, pelo que se ver mundo a fora, este preço, consequentemente, devera ser pago com vidas humanas. Assim, qualquer retorno não deve se dar com o distanciamento da ciência.

Registro, mais uma vez, que todas as atividades do Judiciário têm como objetivo proporcionar tratamento igual para todos, advogados e jurisdicionados. É hora de fazer a travessia? Penso que essa travessia deverá ocorrer quando o mar não estiver mais revolto, pois devemos procurar a calmaria para podermos navegar em mares seguros.

O apóstolo Paulo de Tarso, em sua sagrada e eterna inteligência, nos ensinou "ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine".

A finalidade do Estado, no caso o aparelho judicial, é proporcionar a luta contínua pela aplicação dos princípios constitucionais e preservar o acesso à justiça em sua plenitude. Existem opiniões contrárias à minha e é salutar, pois o debate só se constrói com a divergência, desde que respeitosa, evidentemente.

Quando escolhi a profissão da advocacia foi porque sempre tive a real ideia de que sempre haverá dois lados, porém esses lados precisam ter como norte o direito em sua plenitude. Portanto, se o desejo é o retorno, posição que não defendo para o momento, esse, caso ocorra, deverá ser feito com total observância aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. E que a cegueira não tome conta da civilização.

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*Paulo Eduardo Teixeira é sócio-fundador do escritório Paulo Eduardo Teixeira Advogados e Associados, ex-presidente da OAB/RN, ex-conselheiro Federal e ex-conselheiro do CNJ.

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