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O bloqueio judicial de contas bancárias e a pandemia da covid-19

Pode o julgador indeferir o pedido de bloqueio de contas bancárias por meio do sistema BACENJUD com base na pandemia do coronavírus?

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Atualizado às 11:11

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Mesmo durante a atual guerra contra a pandemia da covid-19 ("coronavírus"), o Poder Judiciário não paralisou suas atividades e, na realidade, como amplamente noticiado pela mídia, teve significante aumento em sua produtividade1. Ontem, inclusive, o TJ/SP divulgou que foram produzidas quase dois milhões de decisões apenas durante o período da crise2.

Muitas dessas decisões trataram sobre a própria pandemia3, que, inevitavelmente, gerou (e continua gerando) diversos efeitos e consequências severas na vida da sociedade. Como resultado da mudança abrupta do comportamento dos indivíduos com a paralisação das atividades comerciais e do isolamento social, também é possível observar alguns efeitos imediatos no regular trâmite de ações judiciais.

Além dos diversos pedidos de suspensão de pagamentos e de cobranças, também é possível notar o teor excepcional de determinadas decisões proferidas judicialmente com fundamento na pandemia. Como exemplo, trago uma decisão curiosa, proferida nos autos de um cumprimento definitivo de sentença sob meu patrocínio, que servirá meramente para a reflexão proposta no presente texto, a qual segue transcrita abaixo:

"Defiro a pesquisa de bens em nome da parte executada via INFOJUD e RENAJUD. Tendo em vista a pandemia que assola o mundo neste momento, entendo como necessário e de acordo com os princípios humanitários o indeferimento, por ora, do bloqueio de ativos financeiros via BACENJUD. Aguarde-se momento oportuno para reiteração deste pedido. (grifou-se)".

Mesmo patrocinando a parte executada, não escondi a surpresa inicial ao notar o indeferimento do pedido de bloqueio de ativos financeiros via sistema BACENJUD4 com base na pandemia, sem qualquer intimação da parte para manifestação, após anos da tramitação da execução. Durante pesquisa jurisprudencial, também foram encontradas outras poucas decisões no mesmo sentido5.

Nesse contexto, sabendo que a execução de sentença se trata de importante fase processual, momento em que finalmente o credor terá a satisfação do seu crédito através de diminuição patrimonial do devedor, restou a dúvida: pode o julgador indeferir o pedido de bloqueio de contas bancárias por meio do sistema BACENJUD com base na pandemia do coronavírus?

É certo que a imprecisão de informações e as tantas incertezas que envolvem o momento atual e os próximos capítulos da pandemia nos trazem ao atual cenário de instabilidade e insegurança. Não é possível ter certeza quanto ao período final da crise, não se sabe efetivamente se existirá a "segunda onda" de contágios e, ainda, as próprias autoridades discordam quanto à previsão do final da quarentena e do isolamento social com o retorno à vida cotidiana (se é que ainda existe a possibilidade de seguirmos a vida como antigamente).

Mas, apesar das diversas dúvidas e das muitas incertezas que assombram o momento, sabe-se que, efetivamente, a pandemia terá seu final. Essa certeza é suficiente para a garantia e a proteção dos direitos e das garantias fundamentais dos cidadãos e, já nesse breve contexto apresentado, sabendo que efetivamente o estado de calamidade pública que enfrentamos é temporário, se mostra plausível que o próprio Julgador determine que o momento atual seja, provisoriamente, inoportuno para efetivação de bloqueio de conta bancária e indefira o pedido da parte exequente.

O próprio §1º do artigo 835 do CPC6, após determinar a prioridade da penhora em dinheiro (o que nos leva, consequentemente, ao bloqueio de valores em contas por meio do sistema BACENJUD), expressamente possibilita ao julgador a opção de alterar a ordem preferencial de penhora prevista na legislação de acordo com as circunstâncias e as especificidades do caso concreto. E, convenhamos, a calamidade pública decretada em face da pandemia, além de fato notório para fins processuais, trata-se de característica extremamente incomum e fora da normalidade.

O indeferimento de pedido de bloqueio de contas bancárias momentaneamente significa apenas a alteração da ordem de preferência pelo julgador, o que é permitido expressamente pela legislação processual. Justamente por esse motivo a medida não caracteriza violação ao princípio da inafastabilidade do poder judiciário, já que outras medidas alternativas poderão ser determinadas para satisfação da dívida executada (como, por exemplo, efetivamente ocorreu na decisão transcrita acima, que deferiu pedidos de bloqueios de automóveis via sistema RENAJUD e de pesquisa das últimas declarações de imposto de renda da parte executada via sistema INFOJUD).

O CPC, ainda, no §1º do artigo 8547, em respeito ao devido processo legal, garante ao devedor a possibilidade de apresentação de impugnação tratando sobre eventual impenhorabilidade ou eventual excesso de execução. Porém, sabendo que, mesmo em condições normais de temperatura e pressão, o desbloqueio de valores indevidamente bloqueados em contas bancárias é efetivado após um lapso temporal considerável, na situação atual de isolamento social com os servidores da justiça trabalhando de forma remota, o desbloqueio pode ser efetivado em prazos ainda maiores.

Apesar do efetivo aumento de produtividade do sistema elencado no primeiro parágrafo, em atenção à resolução 313/20 do CNJ8, os prazos processuais foram suspensos por período superior ao de 30 dias e, por esse motivo, não é possível saber quando as partes vão, efetivamente, providenciar o necessário para protocolo de eventuais manifestações ou impugnações, o que, mesmo que por pouco tempo, poderia comprometer a subsistência da parte que teve seu patrimônio indevidamente bloqueado.

Em atenção ao devido processo legal e à vedação da decisão surpresa, as partes devem obrigatoriamente se manifestar sobre o próprio bloqueio judicial e sobre eventual impugnação apresentada. Com o aumento das dificuldades dos trabalhos advocatícios durante o isolamento social, não se torna razoável que, em meio à pandemia, a parte executada que teve valores indevidamente bloqueados de sua conta bancária tenha que possivelmente aguardar o retorno dos prazos processuais, a manifestação da parte adversa e a própria decisão judiciária (que poderá, ainda, ser submetida ao segundo grau de jurisdição).

Como se não fosse suficiente, o §2º do artigo 854 determina a intimação pessoal da parte executada caso não exista patrono constituído nos autos para apresentação de defesa. Ocorre que, com o isolamento social, a intimação pessoal, caso efetivada por oficial de justiça, resta prejudicada. A situação se torna mais crítica ao se notar que os prazos processuais podem ser suspensos por prazo superior ao já determinado pelo CNJ e, possivelmente, só retornará com o final da pandemia.

De qualquer forma, mesmo que a suspensão de prazos processuais e o lapso temporal entre atividades jurisdicionais fossem desconsiderados, ignorando totalmente as dificuldades na apresentação de eventual defesa pela parte adversa, o ponto principal da questão é que uma das severas consequências da própria pandemia se trata justamente da instabilidade da economia com prejuízos financeiros para os indivíduos da sociedade.

O isolamento social, com a paralização do comércio, gerou o aumento do número de demissões, a diminuição de salários e a queda drástica de faturamento de profissionais autônomos. Assim, de maneira objetiva, em tempos de crise, qualquer quantia financeira disponível em conta bancária pode ser necessária para garantir subsistência de uma família ou o regular funcionamento de uma empresa.

Observando, ainda, as garantias fundamentais e os princípios constitucionais e, até mesmo, o princípio da menor onerosidade ao devedor devidamente expressa pelo artigo 805 do CPC9, todos objetivando principalmente a preservação da dignidade humana, o que é basilar, deve-se observar que no atual momento não se mostra razoável o bloqueio judicial de contas bancárias.

Porém, deve-se levar em consideração que, se o objetivo da medida é justamente a preservação da dignidade da pessoa humana em tempos de crise pandêmica, para o tiro simplesmente não sair pela culatra, o julgador deve ter cautela e observar também a natureza da dívida executada.

Não parece razoável o enfoque total nessa possível proteção do devedor com o total desamparo da parte credora, sem a devida preocupação com débitos de natureza alimentícia (como pensões ou honorários advocatícios, por exemplo). O caráter alimentar do débito executado deve ser sempre observado e respeitado pelo julgador, tratando-se de hipótese em que o deferimento do pedido de bloqueio de contas bancárias não só é possível, como estritamente necessário, ainda mais durante a pandemia e tratando-se de valores incontroversos.

Assim, tendo em vista os pontos expostos acima, conclui-se que, entre tantas inseguranças dispostas pela pandemia, sabendo que as dificuldades são momentâneas e que existem meios alternativos disponibilizados pela própria legislação processual civil para satisfação de créditos, a impossibilidade momentânea de bloqueio de contas bancárias se torna medida razoável e acertada, desde que respeitado o caráter excepcional da medida e a natureza da dívida com o respeito das particularidades do caso concreto.

__________

1 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/juizes-e-defensores-conseguem-aumento-de-produtividade-durante-pandemia.shtml

2 Acesse aqui

3 https://www.oconsumerista.com.br/2020/04/mencoes-covid-primeira-instancia-tjsp/

4 Sistema que interliga a Justiça ao Banco Central e às instituições bancárias, para agilizar a solicitação de informações e o envio de ordens judiciais ao Sistema Financeiro Nacional, via internet

5 (...) em razão da pandemia por Covid-19, com medidas restritivas severas de deslocamento impostas pelas autoridades públicas competentes, ficam por ora suspensos os bloqueios de ativo financeiro pelo BACENJUD, podendo ser retomada após a superação da crise. (Processo nº 0007083-92.2017.8.26.0286 em trâmite perante a 2ª Vara de Itu/TJ-SP, Data da Disponibilização: 14/04/2020)

"Por ora, INDEFIRO a realização do procedimento de penhora on line, ante a pandemia do coronavírus reconhecida pela OMS e a possibilidade de decretação de estado de emergência e crise econômica em nosso país". Acrescenta-se, ainda, a evidente dificuldade na defesa da parte adversa ante as condições de trabalho estabelecidas pelos governantes. (Processo nº 0261352-40.2018.8.19.0001 em trâmite perante a 38ª Vara Cível do Foro do Rio de Janeiro/TJ-RJ )

6 Art. 835, § 1º É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

7 Art. 854. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução. (...) § 2º Tornados indisponíveis os ativos financeiros do executado, este será intimado na pessoa de seu advogado ou, não o tendo, pessoalmente. § 3º Incumbe ao executado, no prazo de 5 (cinco) dias, comprovar que: I - as quantias tornadas indisponíveis são impenhoráveis; II - ainda remanesce indisponibilidade excessiva de ativos financeiros.

8 Art. 5º Ficam suspensos os prazos processuais a contar da publicação desta Resolução, até o dia 30 de abril de 2020.

9 Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.

 

__________

 

*André Furegate de Carvalho é advogado formado pela PUC/SP. Pós-Graduando em Direito Processual Civil na FGV/SP. Sócio de Cortez Furegate Sociedade de Advogados.

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