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Interseccionalidade, feminismo e Direitos Humanos

As medidas impostas para que se atinja a igualdade contraditoriamente não funcionam com igualdade para todas. É, de fato, grande avanço a existência de leis como a Maria da Penha e a do feminicídio.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Atualizado às 10:11

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Interseccionalidade foi um termo cunhado por Kimberlé Crenshaw, em 19891. Segundo ela, a interseccionalidade nos permite enxergar a colisão das estruturas. Em termos simples, significa que as pessoas se encontram em situações de desvantagem perante a sociedade por sofrerem as mais diversas formas de opressão em razão de suas marcas de identidade. Raça, classe, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, religião, nacionalidade, dentre outras, são algumas das marcas que colocam as pessoas em situações desprivilegiadas pelo simples fato de serem quem são. E os preconceitos se sobrepõem uns aos outros.

Para ilustrar, imagine vários círculos secantes. Em cada um deles, há uma forma de opressão. Se você é apenas mulher, sofre apenas um tipo de opressão. Mas se é mulher e negra, a opressão é duplicada. Mulher, negra e lésbica, triplicada. E assim por diante. Quanto maior a quantidade de círculos em que você se encontra concomitantemente, maior a opressão, o preconceito, a violência.

Como exemplo, enquanto um homem branco ganha um dólar, um homem negro recebe $ 0,74 e uma mulher branca $ 0,78. Já a mulher negra, $ 0,642. O Mapa da Violência de Gênero indica que as mulheres negras são mais vítimas de feminicídio do que as mulheres brancas. E são as mais encarceradas por tráfico de drogas, ainda que com menor quantidade de droga.

É necessário, portanto, que sejam feitos recortes para estudo das causas e soluções perante o problema. O tema já é discutido há tempos no feminismo negro, que surgiu a partir da 2ª onda do feminismo, com a criação do National Black Feminist, nos Estados Unidos, em 1973. De fato, o feminismo não englobava as necessidades das mulheres negras e o movimento negro era extremamente machista. 

Nas palavras de Djamila Ribeiro, enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, as mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas3. Nesse sentido, há décadas Audre Lorde e Achille Mbembe pontuavam que enquanto as mulheres brancas têm medo de que seus filhos possam crescer e serem cooptados pelo patriarcado, as mulheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas necropolíticas4.

A história é diferente e, consequentemente, as necessidades atuais também. Como destacou Angela Davis, a mulher escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário, e apenas ocasionalmente esposa, mãe e dona de casa5.

E impossível seria ousar dizer que a história ficou no passado e em nada reflete nos presentes dias. É só parar pra pensar: qual o perfil do trabalho doméstico no Brasil? Majoritariamente, pobres, negras e com histórico de migração de cidades do interior para os grandes centros6.

A escravidão deixou seu triste legado e isso é inegável. Nas favelas, nos trabalhos marginalizados, nas prisões. Então, se faz sim imperioso que a implementação de leis e projetos se dê a partir de uma perspectiva de gênero. Mas não só. Há uma dominação ainda maior em face daquelas que estão nas camadas mais baixas de nossa sociedade, das negras, daquelas que não cumprem os padrões de heteronormatividade culturalmente impostos.

Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional para as questões femininas, em artigo de setembro de 2009, proferiu as seguintes palavras:

"Para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam"7.

A partir dessa afirmação, indago: será que o Estado e a sociedade enxergam as inúmeras mulheres contidas nesse ser mulher? As migrantes, as indígenas, as negras, as miseráveis, as mães aos 15 anos, as lésbicas, as transexuais, as que menstruam e as que não menstruam?

Na história dos direitos humanos, a identificação e reconhecimento dos direitos da mulher se deu a passos infinitamente pequenos. Olympe de Gouges escreveu em 1791 a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. Isto porque o homem referido no título se referia única e exclusivamente ao homem do sexo masculino, e não ao ser humano. Olympe foi profundamente atacada pelo texto e acabou sentenciada a pena de morte.

A brasileira Bertha Lutz foi uma das mulheres que esteve na Conferência de São Francisco e lutou pela inclusão do tema da igualdade de gênero na Carta da ONU, em 1945. Bertha se graduou em Ciências Naturais na Universidade Sorbonne, em Paris e posteriormente em Direito, pela Faculdade do Rio de Janeiro (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). Bertha era, portanto, uma exceção na realidade das mulheres da época. E a Carta da ONU acabou por mencionar genericamente a igualdade entre homens e mulheres, sem qualquer especificidade de contextos, deficiências e abismos entre classes.

Passadas diversas décadas e com a implementação de sistemas regionais de proteção de direitos humanos, que se fizeram fundamentais em decorrência das diferentes especificidades de cada território, chegamos a algumas evoluções. Especialmente no Sistema Interamericano, que já engloba questões latinas, alguns casos merecem destaque.

O caso do Presídio Miguel Castro Castro, no Peru, foi o primeiro precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre violência de gênero contra a mulher. A condenação ocorreu porque o Estado Peruano, entre os dias 6 e 9 de maio de 1992, executou uma operação chamada "Remoção 1", cuja presumida finalidade era o traslado de aproximadamente 90 mulheres presas no estabelecimento penal "Miguel Castro Castro" para centros penitenciários femininos. O ataque foi feito com bombas, explosivos e agressões aos sobreviventes, que deixou mortos e feridos sem qualquer assistência médica. Três das mulheres que faleceram estavam grávidas.

A importância histórica do caso se deve ao fato de ter sido a primeira vez em que a CorteIDH aplicou a Convenção de Belém do Pará e também a primeira vez em que ocorreu uma abordagem sobre violência de gênero contra a mulher, tendo o juiz Cançado Trindade inclusive destacado que foi violado o projeto e a vivência da maternidade.

Já no caso "Campo Algodoeiro", foi reconhecida situação de violência estrutural de gênero contra a mulher. Em Ciudad Juarez, no México, muitas mulheres foram assassinadas em razão de uma cultura de discriminação contra a mulher. Após terem sido encontrados os corpos das vítimas, que também haviam sofrido violência sexual, o Estado não investigou nem puniu os responsáveis.

Mas aqui ainda cabe questionar: quem eram as mulheres no Presídio Miguel Castro Castro e em Ciudad Juarez? Em qual contexto tais crimes ocorreram?

É interessante notar que pouco se diz sobre os nomes das pessoas que se encontravam no presídio no Peru. A própria decisão da Corte se limita a informar que a finalidade seria o traslado de aproximadamente 90 mulheres. Mas o que se sabe é que tais violações se deram quando o ditador Alberto Fujimori tomou o poder no país e passou a perseguir membros contrários à sua instituição.  Muitas das internas eram, portanto, presas políticas. E o ataque se deu sob o pressuposto de que haveria o planejamento de um motim, o qual nunca foi confirmado.

Há um recorte a ser feito nesse ponto também. Mulheres que colocaram sua voz no mundo, que contestaram padrões, que se posicionaram contra a violação de direitos, ativistas. Acabaram mortas. Assim como Olympe de Gouges. Assim como Marielle Franco.

Em outra conjuntura, a Ciudad Juarez no México é local de pobreza extrema no país. As mulheres assassinadas (dentre tantas outras cujos casos jamais foram denunciados) foram Laura Berenice Ramos, estudante de 17 anos de idade, Claudia Ivette Gonzáles, trabalhadora de 20 anos de idade e Esmeralda Herrera Monreal, empregada doméstica de 15 anos de idade. Repito, empregada doméstica de 15 anos de idade. Isso já diz muito sobre a realidade socioeconômica do país. E sobre a falta de oportunidades e vulnerabilidade social. Sobre o olhar opressor que que existe em face dessa mulher.  

É, por isso, urgente que se analise as vidas dessas mulheres individualmente, para que se entenda o que pode ser efetivo ou não. As medidas impostas para que se atinja a igualdade contraditoriamente não funcionam com igualdade para todas. É, de fato, grande avanço a existência de leis como a Maria da Penha e a do feminicídio. Mas é também verdade que grande parte da população não possui conhecimento sobre elas. E que ainda que saibam, muitas mulheres não abandonam situações de violência doméstica por dependerem economicamente de seus parceiros, porque os lugares onde vivem são dominados por organizações criminosas e os policiais não chegam ou, se chegam, também hostilizam aquela mulher. Portanto, o problema nesses casos não se resolve simplesmente com a possibilidade de denúncia e prisão. É preciso ir além.

Em uma análise mais profunda, vale questionar: para quais mulheres estão sendo aplicadas as medidas de proteção previstas na Lei Maria da Penha e para quais estão sendo aplicadas as medidas de privação de liberdade previstas na Lei de Execução Penal?

Iris Marion Young, professora de Ciência Política da Universidade de Chicago, aduz que as cinco faces da opressão seriam exploração, fraqueza, imperialismo cultural, marginalização e violência8. Que a superação de tais opressões e uma visão interseccional sobre os estigmas que a sociedade impõe às mulheres nos permita aprofundar nessa luta e, consequentemente, trazer maior efetividade aos direitos humanos.

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1 CRENSHAW, Kimberle. "Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique os Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics". University of Chicago Legal Forum, n. 1, p. 139-167, 1989. Acesso em 28/3/2020

2 Disponível aqui. Acesso em 27/3/2020.

3 RIBEIRO, Djamila; Quem tem medo do feminismo negro? Companhia das Letras, 2018. Página 52.

4 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Coleção Feminismos Plurais. Pos. 117.

5 DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Boitempo, 2016. Página 17.

6 Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Trabalho doméstico remunerado. Sistema PED: Pesquisa de Emprego e Desemprego. Regiões Metropolitanas, 2015.

7 QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Editora Record, 2015. Pos. 42.

8 YOUNG, Iris Marion. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press, 2011. p. 48.

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*Jéssica Costa Estigaribia é graduada em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Damásio de Direito. Pós-graduanda em Direitos Humanos pelo Curso CEI. Advogada do escritório Josemar Estigaribia Sociedade de Advogados.

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