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Covid-19 e postergação da LGPD: o (des)necessário retrocesso da tutela dos dados pessoais no Brasil

Caso a MP seja aprovada, iniciar-se-á caminhada em direção ao passado, no qual não eram reconhecidos os direitos individuais e que são, efetivamente, fundamentais.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Atualizado às 11:30

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Diante do desenvolvimento da Covid-19, o medo tomou conta dos cidadãos. Todos na mesma tempestade, mas não no mesmo barco. A pandemia traz consigo a ânsia pela saúde e conduz à insegurança sobre um futuro ameaçador: a incerteza sobre a manutenção do poder econômico e dos empregos. Em meio a esse cenário caótico, uma tensão se instalou na política brasileira. Entre disputas de interesses e ideologias, existem indivíduos que pedem a volta do AI-5 - em um ato no qual o presidente participou e discursou. Esses são os tempos.

Em paralelo, a trajetória que traçava a legislação brasileira em relação à proteção de dados movimentava-se em direção ao progresso. A aprovação, em 2018, da LGPD, que passaria a vigorar em agosto de 2020, foi um avanço no âmbito da tutela dos dados pessoais, merecendo todo o destaque que vinha recebendo no campo jurídico. Todavia, diante da crise em decorrência da pandemia, a referida lei, há muito aguardada, pode ter sua vigência adiada, tendo em vista a aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Lei 1.179/2020.

Mudanças na legislação e na jurisprudência, por vezes, ocorrem de maneira veloz. No último dia 17, tivemos mais uma novidade: a MP 954, que trata do compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de serviço telefônico fixo e móvel com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O seu fundamento? Para que se possa proceder à produção estatística oficial, com a realização de entrevistas não presenciais, para as pesquisas domiciliares.

Apresentada a síntese dos últimos acontecimentos, é possível admitir que, em relação à tutela dos dados pessoais, o Brasil está na iminência de retroceder sob dois aspectos: i) a postergação da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados; e ii)  a conversão em lei de uma medida provisória que permite o compartilhamento de um número expressivo de dados pessoais pelas empresas telefônicas com o IBGE. É sobre o primeiro aspecto que, a partir de agora, passe-se a examinar.

I - Possibilidade de adiamento da Lei Geral de Proteção de Dados

É incontroverso que a economia brasileira está doente, afinal, o vírus atingiu a todos, incluindo as empresas - que também são "organismos vivos". A partir da constatação dessa triste realidade, iniciaram-se as ponderações sobre as medidas a serem adotadas a fim de minimizar o grau das sequelas que serão deixadas pela pandemia. De alterações no âmbito trabalhista, como redução de jornada de trabalho e salário, até incentivos fiscais e flexibilização da legislação consumerista, diversas providências têm sido tomadas com o intuito de permitir a sobrevivência do maior número de empresas e empregos. É nesse pano de fundo que o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 1.179/2020, que trata do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado.

O referido projeto de lei, que aguarda apreciação pela Câmara dos Deputados, posterga a data da entrada em vigor da lei para janeiro de 2021 - a exceção às multas e demais penalidades administrativas, que apenas poderiam ser aplicadas a partir de agosto do mesmo ano. Argumenta-se, portanto, sobre a viabilidade das empresas em arcarem com os custos gerados pela implementação de sistema que esteja dentro das diretrizes da LGPD.

Em contrapartida, temos uma nova realidade. Em razão da pandemia - mesmo

fato a fundamentar o adiamento - nunca se fez tanto uso da inteligência artificial, dados e algoritmos; a tecnologia tornou-se uma ferramenta de suma importância no combate ao novo coronavírus e essencial para dar continuidade a uma série de atividades fomentadoras da economia, como o comércio, que está sendo feito, em grande medida, on-line.

É bem verdade que os avanços tecnológicos proporcionaram maravilhas para a sociedade; por meio deles, soluções antes inimagináveis tornaram-se palpáveis e acessíveis. Relativamente à saúde, o cenário atual nos traz comprovações da importância de se investir em pesquisas, no desenvolvimento das ciências e da tecnologia.

Na China, país no qual iniciou-se a disseminação da doença e que muito sofreu com ela, a tecnologia auxiliou na luta contra o vírus. Entre as principais medidas, foi desenvolvido um aplicativo apto a verificar se uma pessoa estaria autorizada a entrar em espaços públicos ou a ficar de quarentena, relacionando-as às cores verde, amarelo e vermelho, e, especificamente em Xangai, Pequim e Shenzhen, as estações de metrô, escolas e centros comunitários foram equipados ainda com softwares capazes de detectar a temperatura sem a necessidade de contato humano.1 Contudo, não deve ser olvidada a imensa quantidade de dados pessoais que foram coletados para tanto.

Com o distanciamento social, a modalidade de trabalho home office mudou de posto, ou seja, passou de exceção à regra. Para desenvolverem-se atividades laborativas à distância, é necessário o emprego de tecnologias como o uso de e-mails, videoconferência, sistemas integrados que permitem o compartilhamento e acesso a documentos, entre outras inúmeras ferramentas. Em recente estudo apresentado pela National Bureau of Economics Research, revelou-se que 37% dos trabalhos realizados nos Estados Unidos da América podem ser desempenhados de casa e que esse percentual representa 46% de todos os salários. Empresas já noticiam que o número de empregados que exercem suas atividades de casa, poderá dobrar2. Aqui, no Brasil, não deverá ser diferente; de onde se extrai a necessidade de legislação efetiva a tutelar a captação e o troca de informações.

Além disso, é sabido que empresas fazem uso de algoritmos, dados e inteligência artificial, para obterem vantagens em relação aos seus concorrentes no mercado e auxiliar na redução dos custos.  E não há que impugnar-se tais condutas, pois sobrevive aqueles que se adaptam; entretanto, as empresas farão ainda mais uso dessas tecnologias a fim de reestabelecerem-se economicamente durante e após a pandemia. Se existe alguém que nunca foi assediado com reiteradas publicidades em sua caixa de e-mail e ligações de telemarketing de empresas das quais nunca efetuou cadastro, logo será.

À luz dessas considerações, indaga-se: deverá ser a vigência da LGPD adiada? Ainda é cedo para afirmar. O fato de que o adiamento da data para que a lei entre em vigor consiste em um retrocesso, tendo em vista que a referida legislação visa tutelar vários direitos dos cidadãos - com ênfase à privacidade -, parece incontestável, especialmente no cenário atual. O mercado fará uso de tecnologia e, consequentemente, de dados para reerguer-se; justo seria que esses dados estivessem devidamente protegidos. Tal qual alerta Danilo Doneda, "a ideia de um legado de vigilância e hipertrofia do uso de dados pessoais para outras finalidades, cessada a emergência, há de ser combatida com vigor"3.

Faz-se necessário, porém, examinar se as empresas estarão tão descapitalizadas ao ponto de que o custo à implementação das diretrizes de uma nova lei resulte no sacrifício de empregos. Em caso positivo, o adiamento torna-se medida razoável. Essas avaliações permitirão determinar, efetivamente, se as exigências da lei estarão compatíveis com a capacidade financeira das empresas. Se existe um abismo entre a exigência legislativa e a possibilidade concreta de adequação à norma, uma lei que vem com a promessa de proteção dos dados pessoais, trará como consequências, prejuízos sociais e financeiros (talvez irreversíveis) para as pessoas jurídicas, bem como para os trabalhadores - e todos os seus dependentes.

II - A Medida Provisória nº 954

No contexto da proteção dos dados pessoais, o recuo não se deu apenas com a possibilidade de adiamento da LGPD. O Executivo, que, no início de abril, informou que faria uso de dados de geolocalização dos indivíduos, compartilhados pelas empresas de telecomunicações, a fim de identificar aglomerações, logo após se retratou. Todavia, pouco depois, editou a medida provisória nº 954. De acordo com o texto da citada medida, o compartilhamento dos dados através das empresas de telecomunicações com o IBGE, de pessoas físicas e jurídicas, abrangeria os seus respectivos: i) nome; ii) número de telefone; e iii) endereço. Ainda conforme a determinação da MP, as informações compartilhadas estariam sob sigilo e somente poderiam ser utilizadas para os fins aos quais se destina.

Por se tratar de medida excepcional, o artigo 62 da Constituição Federal determina que, para a adoção de medida provisória, que terá força de lei, é necessário preencher o binômio relevância e urgência. Em primeiro lugar, cumpre-se observar a definição da finalidade para implementação da referida medida, que é a produção estatística oficial para as pesquisas domiciliares. A justificativa apresentada carece de exatidão em relação à utilização dos dados e, também, quanto às pesquisas que serão realizadas (qual o prazo estabelecido e objetivo delineado). Demanda esclarecimentos extras sobre a necessidade desses dados, bem como das próprias pesquisas, pois não se demonstrou qual seria "a importância superlativa de se realizar a pesquisa estatística ou de que forma tal pesquisa possui fundamental importância".4

Passando para o segundo ponto, que diz respeito ao caráter de urgência, não se vislumbra, na letra da medida provisória, nenhum fator que caracterize iminência a fundamentar a adoção de tal medida, que viola direitos fundamentais, como o direito à dignidade da pessoa humana; à privacidade; ao sigilo dos dados e à autodeterminação informativa. Não à toa, foram ajuizadas quatro ações diretas de inconstitucionalidade - ADI de números 6.387, 6.388, 6.389 e 6.390 - no Supremo Tribunal Federal, pleiteando-se a declaração de inconstitucionalidade da providência editada pelo Poder Executivo.

Caso a MP seja aprovada, iniciar-se-á caminhada em direção ao passado, no qual não eram reconhecidos os direitos individuais e que são, efetivamente, fundamentais. Uma das finalidades da lei é, justamente, proteger o cidadão contra os abusos de poder do Estado (e do poder econômico) e, da forma como a medida fora imposta, não há qualquer fundamento a justificar a supressão de direitos individuais tão importantes, ainda mais agora, na era da ciência dos dados.

Em 1975, Foucault já relacionava a tecnologia às práticas supressoras da privacidade dos indivíduos ao afirmar que, "ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos (...), houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos"5. Nos dias de hoje, em que o acesso a um aparelho de celular é suficiente para descortinar tudo o que constitui o universo de um ser humano - de como ele consome através do cartão de crédito, quais os sites visita e até a probabilidade de ter contraído um vírus -, a máxima cautela demonstra-se não apenas recomendável, mas indispensável.

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1 JAKHA, Pratik. Coronavirus: China's tech fights back. Disponível: clique aqui. Acesso em 22/04/2020.

2 HANSEN, Sarah. Home office não vai terminar após controle da pandemia, dizem especialistas norte-americanos. Disponível: clique aqui. Acesso em: 22/04/2020.

3 DONEDA, Danilo. A proteção de dados em tempos de coronavírus. Disponível: clique aqui. Acesso em: 21/04/2020.

4 Petição inicial da Ordem dos Advogados do Brasil na ADI nº 6.387.

5 Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. 288p. Do original em francês: Surveiller et punir. Disponível: clique aqui. Acesso em: 22/04/2020.

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*Thaís Dias David é advogada, pós-graduada em Ciências Criminais pela UCAM. Coordenadora jurídica na Antunes Mascarenhas Advogados, no Rio de Janeiro.

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