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A propriedade urbana e o direito de construir

A propriedade urbana está um passo à frente da propriedade privada, lida simplesmente com base nas prescrições do CC. O processo histórico e a complexidade das atuais cidades não permite mais uma visão puramente individualista da propriedade nele inserido, como aquela identificada na ordem liberal.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Atualizado em 28 de abril de 2020 12:11

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Introdução

O presente trabalho intenta observar o instituto jurídico do direito de propriedade, em especial da propriedade imobiliária urbana, em seu momento atual, vinculado à CF/88, sobretudo na interface com o espaço da cidade, que atualmente recepciona a maior parte das relações humanas.

A integração dos mecanismos de convivência e relacionamento humano, passam a exigir a compreensão de funcionalidade dos bens imobiliários, através da compreensão do instituto da propriedade e de sua função social.

Há aqui uma pretensão, ainda que superficial, de expor o problema da concepção meramente civilista da propriedade imobiliária, no espaço urbano. E a necessidade, diante disso, de compreender que a propriedade urbana está inserida na atuação de outros regimes jurídicos, que não apenas o civil, sobretudo diante da supremacia da Constituição.

Esses regimes jurídicos, por sua vez, atuam sobre a propriedade e impactam sua existência, em seus elementos, aparentemente, mais intrínsecos, como é o caso do direito de construir. Este, da mesma forma, impactado, se altera e se reposiciona, deixando pra trás muitos elementos do regime jurídico privado, para abraçar novas condições de existência e se submeter a regramentos administrativos e urbanísticos.

 A propriedade privada e Constituição Federal

No art. 1.228 do CC brasileiro, ao proprietário é assegurado "... a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha." (BRASIL, 2002).

A partir destes elementos, que vem se repetindo desde o Código Napoleônico, a doutrina brasileira vem realizando estudos e procurando compreender a dinâmica e a essência deste instituto jurídico. Se iniciarmos por Clóvis Beviláqua, reconhecido como o autor do Código Civil de 1916, o autor ensina que

O direito de propriedade tem sido definido por diversos modos. Os romanistas adotaram um, que, realmente, parece traduzir, com fidelidade, o conceito genuinamente romano dessa relação jurídica: - dominum est jus utendi, fruendi et abutendi re sua, quatenus juris ratio patitur. Os romanos, segundo demonstrou JHERING, e recorda GÉNY (Interpretation et sources, p.165), não emprestavam à propriedade um caráter absoluto. O seu individualismo era subordinado às necessidades sociais. (BRASIL, 1976, p.1004)

Esse predicado romano como sustentáculo do direito de propriedade prevaleceu durante todo o século XX. Já no seu término, o ilustre autor e civilista Orlando Gomes ensinava que

O direito real de propriedade é o mais amplo dos direitos reais, - "plena in re potesta".

Sua conceituação pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir, dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei. (GOMES, 1999, p.97)

Já na ótica do novo CC e da CF de 1988, incluindo a compreensão bem definida da função social da propriedade, os doutrinadores Farias e Rosenvald (2018, p.299), ensinam que o CC "... traz uma definição acanhada do conceito de propriedade, pois não a qualifica como relação jurídica." Para os autores, a escolha do Código foi referenciar as faculdades do domínio. Nesse sentido, os autores manifestam que essa escolha diz respeito à disposição do legislador em valoriza o elementos internos ou econômicos do direito de propriedade, que fazem como que seu titular possa auferir vantagens pecuniárias com o seu exercício.

As faculdades que formam as características do domínio "...são sempre positivas e implicam um fazer por parte de seu titular: usar, gozar, dispor, material e juridicamente da coisa, compõem o conteúdo afirmativo do domínio." (FARIAS e ROSENVALD, 2018, p.300) Estas faculdades do domínio possuem características que as tornam passíveis de serem observadas em suas individualidades, mesmo porque essas faculdades podem ser alienadas da propriedade, que assim, mesmo sem uma destas, continuará existido.

No entanto, diante da realidade que incorporou o direito de propriedade já na Constituição da República, art. 5º, XXII, art. 170, II, e diante do domínio da supremacia da Constituição (MARTINS, 2017, p.5) sobre todo o ordenamento jurídico, a propriedade privada passou a estar condicionada a realidade constitucional, na qualidade de direitos fundamental, em patamar de igualdade a todo os demais direitos.

Além do mais, a Constituição também estabeleceu a necessidade da propriedade possuir e desenvolver uma função social (art. 5º, XXIII, art. 170, III, e art. 182 e 186 da CF). Esse elemento se torna determinante ao conteúdo da propriedade em si, ao ponto de não poder ser denominada propriedade aquela que não exercer função social. A ascensão ao âmbito constitucional faz da função social identidade positiva do direito de propriedade, devendo aqueles que o exercem realizarem prestações positivas e não apenas negativas em relação ao restante da sociedade (GRAU, 2002, p.275).

José Afonso da Silva, ilustre constitucionalista brasileiro, também ensina que o conteúdo da função social é intrínseco da propriedade e é elemento historicamente constituído.

A funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social. Quem mostrou isso expressamente foi Karl Renner, segundo o qual a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorreu houve transformação na estrutura interna do conceito de 'propriedade', surgindo nova concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que 'a propriedade atenderá a sua função social', mas especialmente quando o reputou princípio da ordem econômica (art. 170, II e III), a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, mas adotando um princípio de transformação da propriedade capitalista, sem socializa-la; um princípio que condiciona a propriedade como um todo, não apenas o seu exercício, possibilitando ao legislador entender com os modos de aquisição em geral ou com certos tipos de propriedade, com seu uso, gozo e disposição. A função social - assinala Pedro Escribano Collado - 'introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que não pode coincidir com o do proprietário e que, em todo caso, é estranho ao mesmo', constitui um princípio ordenador da propriedade privada e fundamento da atribuição desse direito, de seu reconhecimento e da garantia mesma, incidindo sobre o seu próprio conteúdo. (SILVA, 2006, p.76)

Nesse sentido, tanto no que se refere ao patamar de igualdade do direito de propriedade aos demais direitos fundamentais (SARTLET, 2005, p.42), quanto à sua função social, já decidiu o Egrégio STF:

O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. (BRASIL. STF, ADI-MC nº2.213-0, do Distrito Federal, Rel. Min. Celso de Mello, DJ.23.04.2004)

Assim, não há de se falar mais em propriedade sem função social, nem tão pouco em propriedade absoluta, a qual seu proprietário possua direitos ilimitados.

A propriedade urbana

Além destas normas identificadas na CF/88 e relacionadas diretamente a propriedade e a sua função social, relatadas acima, também impactam no conteúdo da propriedade imobiliária urbana a prescrição constitucional do art. 182, §2º e do art. 30, incisos I e VIII, todos da CF. Estas normas garantem que o conteúdo da propriedade imobiliária urbana, deixe a exclusividade de identificação civil e receba também o conteúdo e a compreensão urbanística.

Na legislação infraconstitucional, o marco elementar que alinha estas referências e permite a compreensão e identificação da propriedade e de todas as suas relações com a cidade é a lei Federal 10.257/01, o chamado Estatuto da Cidade.

Isso nos faz recordar que há anos a fonte fundamental de densidade conceitual da propriedade tem sido a terra ou tudo aquilo que com ela e sobre ela é possível se conceber na qualidade de propriedade, ou seja, na qualidade de propriedade imobiliária.

Na perspectiva urbanística, este é o grande elemento balizador dos usos, no entanto com uma característica não estática, como era a da terra. A referência da propriedade urbana é a propriedade do espaço, como condição dinâmica de existência da própria cidade. Essa referência produz diversas outras regulações sociais e jurídicas, como é o caso das relações que envolvem a mobilidade, os serviços, o consumo, o lazer, o trabalho, etc.

Desta forma, é importante perceber que além do incremento normativo da função social da propriedade, o Constituinte originário de 1988 dividiu a compreensão da propriedade de acordo com seu reconhecimento espacial, ou seja, dividiu a propriedade em duas categorias organizacionais, a propriedade urbana e a propriedade rural. O que determina a identidade de ambas é justamente o fator externo, que as incorpora na forma da organização humana do espaço, ou seja, como espaço urbano ou como espaço rural.

Estes elementos (urbano e rural), que valorizam e distinguem em grau e em envergadura constitucional a caracterização sócio-jurídica da propriedade, diante do espaço e das atividades humanas nela desempenhadas, consolida a compreensão e importância desta nova dinâmica, ou seja, da interação da propriedade com o meio e com o ambiente em que está inserida e com quem e como se relaciona.

Em obra específica, já tivemos a oportunidade de estudar o assunto, concluindo que

A propriedade urbana é aquela propriedade que, em razão de sua função so­cial, fica sujeita às normas de direito urbanísticas, que regulam o funcionamento das cidades. Do ponto de vista normativo, a propriedade urbana não se limita ao seu conteúdo civilista, ampliando-se para outras esferas do conhecimento jurídi­co, como o Direito Administrativo, Tributário, Urbanístico e Econômico, a par­tir, sobretudo, dos elementos contidos nos artigos 5º, 170 e 182 da Constituição da República Federativa do Brasil. (GUERREIRO FILHO, 2018, p.59)

Com muito mais autoridade e excelência, o ilustre professor José Afonso da Silva, ensina que

A Constituição [...] acolheu a doutrina de que a propriedade urbana é um típico conceito do direito urbanístico, na medida em que a este cabe qualificar os bens urbanísticos e definir seu regime jurídico. A qualifi­cação do solo como urbano, porque destinado ao exercício das funções urbanísticas, dá a conotação essencial da propriedade urbana. Esta, dife­rentemente da propriedade agrícola, é resultado já da projeção da ativi­dade humana. Está, portanto, impregnada de valor cultural, no sentido de algo construído pela projeção do espírito do Homem. Pois, pelo visto, ela só passa a existir e a definir-se pela atuação das normas urbanísticas. (SILVA, 2006, p.78)

Neste diapasão, a propriedade urbana assimila e respeita sua função social quando segue e se adequa aos regramentos urbanísticos previstos no âmbito local (art. 30, I, e art. 182, §2º, da CF), ou seja, quando incorpora a relação direta que possui com o espaço físico, geográfico e humano a qual está inserida.

Desta forma, o conteúdo da propriedade imobiliária urbana, diagnosticado nos referenciais civis como tipo de uso, forma de fruição e possibilidade de disposição, saem do eixo exclusivamente civil, para adentrar também no âmbito urbanístico, alçando inclusive perspectivas diferenciadas dentro de uma mesma cidade.

Essa compreensão que identifica uma diversificação de utilidades para a propriedade urbana está enquadrada na Constituição Federal, em seu art. 182, §§1º e 2º, e no Estatuto da Cidade (BRASIL, lei 10.257/01), sobretudo em seu art. 41, que prescreve a necessidade dos Municípios terem seus Planos Diretores.

O Plano Diretor é uma lei municipal, aprovada pela Câmara de Vereadores, após amplo processo de participação popular, prescrevendo a forma de usar e ocupar o solo, o exercício de atividades econômicas dentro da cidade, os quantitativos de potencial construtivo permitidos e/ou adicionais, as regras que organizam e determinam o planejamento de atividades vinculadas a direitos básicos, como o de morar, o de se locomover, o de trabalhar, o de empreender, o de ter lazer, dentre outras tantas questões.

Quando isso ocorre e a função social da propriedade urbana é prescrita através de regras de âmbito local (art.182, §2º, da CF), percebe-se que a determinação do conteúdo da propriedade foge a esfera puramente civilista e se integra nas leis da cidade, de cunho eminentemente urbanístico.

A partir disto, a hegemonia civilista e liberal do direito de propriedade, que lançava a determinação das relações entre o imóvel e o proprietário na esfera exclusivamente privada, se relativiza e o referido conceito jurídico do "direito de propriedade" começa a receber, em razão do reconhecimento de sua função social, um novo arcabouço sensível de conteúdo, permeado por diversas outras relações sócio-jurídico-ambientais, impregnadas de uma funcionalidade condizente com sua época (temporal) e integrando à ordem urbana (espacial).

Assim, todas as esferas analíticas (usar, fruir, dispor e reivindicar) da propriedade passam a ser lidas sob uma transversalidade constitucional, que amplia os regimes jurídicos que possuem influência sobre o direito de propriedade. O conteúdo deste direito passa, assim, a obter suas premissas não mais apenas em um ordenamento jurídico de ordem eminentemente liberal, como é ou era o caso do Código Civil.

O que ocorre é o contrário. O Código Civil, submetido a supremacia da Constituição, permite que a característica relacional da propriedade ganhe envergadura, perca o absoluto e se condicione no interior do ordenamento, possibilitando que o referido direito de propriedade passe a drenar conteúdo para si de diversas fontes normativas, que vão da ordem constitucional, passando pelo próprio direito civil, até os regramentos infraconstitucionais presentes no âmbito local.

O direito de construir: a propriedade urbana submetida ao regime do direito urbanístico

Nesse momento, quando se reconhece um conteúdo renovado e renovador da propriedade, que necessita compreender sua identidade na sua própria função social, diretamente relacionada com todas as demais realidades jurídico-sociais da cidade, observa-se que não mais é a pura e simples vontade do proprietário que determinará a forma de uso de um específico imóvel urbano.

Esta é uma concepção que vem ganhando espaço, mas que nem sempre foi reconhecida. Para alguns autores, mesmo em edições após a Constituição Federal de 1988, permaneceu a compreensão de que o direito de construir é proveniente do direito de propriedade (MEIRELLES, 1994, p.26).

José Afonso da Silva, por sua vez, inverte radicalmente este prisma, identificando que a utilização do imóveis urbanos não é mais proveniente do direito de propriedade, mas sim das normas urbanísticas e dos planos diretores.

Vale dizer que a destinação urbanística dos terrenos é uma utilidade acrescida a eles pelos planos e leis de caráter urbanístico. Utilidade que se especifica em várias modalidades, conforme aproveitamento concreto definido para cada terreno. A utilização, por conseguinte, do solo urbano pelos proprietários depende da predeterminação dada pela legislação e planos urbanísticos. (SILVA, 2006, P.82-83)

Assim, diante da composição dos elementos historicamente reconhecidos no direito propriedade imobiliária, o direito de construir, observado dentro da característica do direito de fruição do bem, compondo uma transformação humana do espaço natural, ganha toda a sua esfera de integração entre a norma e a realidade concreta, dada pelas normas locais dos Municípios brasileiros, como identifica a Constituição Federal, em seu art. 30, inciso I e VIII e o art. 182, §2º.

Assim, se ao mesmo tempo que a propriedade privada não poder ficar, na grande maioria dos casos, impossibilitada do elemento fruição, isso não quer dizer que o exercício do direito de construir lhe seja inerente, já que este, em face da Constituição Federal de 1988, está atrelado, neste momento, à função social da propriedade, regrada nos Planos Diretores e legislações urbanísticas, nos termos do art. 182, §2º, da CF.

Isso, por outro lado, também confirma o fato de que o direito de construir é relativo, atributo este já identificado no próprio direito de propriedade. Essa compreensão já alcançou a Suprema Corte brasileira:

O direito de edificar é relativo, dado que condicionado a função social da propriedade: C.F., art. 5º, XXII e XXIII. Inocorrência de direito adquirido: no caso, quando foi requerido o alvará de construção, já existia a lei que impedia o tipo de imóvel no local. (BRASIL. STF, Recurso Extraordiário nº178.836-4 de São Paulo. Rel Min. Carlos Veloso, DJ.20.8.1999)

O que será construído ou feito em uma propriedade urbana, dependerá sempre de regras que estão externas ao imóvel e que poderão mudar, em decorrência do regramento urbanístico construído diante de necessidades coletivamente reconhecidas para um determinado espaço social (MEIRELLES, 1994, p.155).

Desta forma, deve-se reconhecer que há um "descolamento" entre direito de construir e direito de propriedade. Em face da função social da propriedade, o direito de construir adquire um caráter e uma função urbanística, ainda que mantenha sua função de realização do exercício do direito de propriedade.

Mesmo reconhecendo o "descolamento" entre direito de construir e o direito à propriedade, o que não é possível ao poder público é retirar a capacidade econômica desta sem uma justa indenização. A relativização do direito de construir em relação à propriedade não sustenta a possibilidade de perda da capacidade econômica de um bem imóvel, sobretudo quando esta propriedade imobiliária é privada. Esta condição é inerente a sociedades em que a ordem econômica se funda na livre iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput, da CF).

Quanto a isso, também na análise do direito de construir, já decidiu e esclareceu a situação o STF:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. INDENIZAÇÃO. I - Se a restrição ao direito de construir advinda da limitação administrativa causa aniquilamento da propriedade privada, resulta, em favor do proprietário, o direito à indenização. Todavia, o direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade. Se as restrições decorrentes da limitação administrativa preexistiam à aquisição do terreno, assim já do conhecimento dos adquirentes, não podem estes, com base em tais restrições, pedir indenização ao poder público. II. - R.E. não conhecido. (BRASIL. STF, Recurso Extraordinário nº140.436 de São Paulo. Rel. Min. Carlos Veloso, D.J. 6.8.1999)

Da mesma forma e pelos mesmos fundamentos jurídicos, não pode a municipalidade, responsável pela aprovação dos projetos construtivos, simplesmente se negar a aprova-los. Neste sentido realça ainda, e aqui com toda a razão, o mestre Hely Lopes Meirelles (1994, p.158): "Ilegal é a conduta da Prefeitura quando indefere sumariamente o pedido de construção ou de loteamento, sem dar oportunidade de correção do projeto ou do plano ao interessado ...". E na mesma obra, mais adiante conclui o autor:

Ilegal é a recusa de aprovação de projeto de construção ou de plano de loteamento pelo simples fato de haver decreto expropriatório do terreno, ou mero plano de obras públicas para a área, ou qualquer outra circunstância que, de futuro, possa impedir a construção particular, pois a Administração Pública não tem o poder de bloquear a propriedade privada e estancar o direito de construir, indefinidamente e sem indenização do proprietário prejudicado. Se há interesse público na área, incumbe à Administração interessada efetivar a justa e prévia indenização constitucional para apossar-se dos terrenos necessários e impedir a construção particular; sem isto, a recusa da licença para construir ou lotear, quando o projeto ou o plano estiver em ordem, é ilegal e abusiva, podendo, mesmo, ser obtida por mandado de segurança, dada a ofensa a direito líquido e cento do proprietário. (MEIRELLES, 1994, p.159)

Assim, diante desses elementos, fica evidente que o conteúdo da propriedade urbana ganha novas variáveis, se comparadas com os elementos civilistas e liberais, recebendo o direito de construir uma nova escala frente ao direito e ao exercício da propriedade, influenciado determinantemente pelas regras e princípios constitucionais.

Esses direitos sempre terão, como fundamento primeiro, a realização da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos fundamentais, garantindo os valores constitucionais e aqueles identificados já no art. 2º do Estatuto da Cidade.

Conclusão

A partir da previsão de uma Política Urbana instituída diretamente na Constituição brasileira, em seu art. 182, bem como, do destaque normativo adquirido pela função social da propriedade (art. 5º, XIII, da CF), compreendido pela mais alta Corte do país como inerente à propriedade, conclui-se definitivamente que tanto esta quanto o direito de construir são relativos.

Assim, ambos estão sujeitos ao regime jurídico de direito urbanístico, proveniente da função social da propriedade e da regra prescrita no §2º, do art. 182, da Constituição da República, que prescreve que aquela função será alcançada por meio da aplicação do plano diretor.

Nessa nova compreensão, o direito de construir não é mais apenas um direito subjetivo, como prescrito no art. 1299 do CC, reconhecidamente elaborado como uma faculdade daquele que advoga o direito de propriedade. Esse direito passa a ser, em sua outra face, também um dever para com a sociedade, seus vizinhos e com toda a cidade.

Portanto, como já dito, o direito de construir assume uma condição "descolada" do próprio direito de propriedade, ainda que permaneça sobre o seu suporte físico. O fato de haver uma dependência física, não implica em uma dependência jurídica. Essa compreensão possibilita que diversos mecanismos e instrumentos jurídicos possam ser assimilados pelo ordenamento e colocados em prática, como é o caso do direito de superfície (art. 21 à 24), da outorga onerosa do direito de construir (art. 28 à 31) e da transferência do direito de construir (art. 35), todos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade (lei 10.257/01).

Com isso, conclui-se que a propriedade urbana está um passo à frente da propriedade privada, lida simplesmente com base nas prescrições do Código Civil. O processo histórico e a complexidade das atuais cidades, local de convívio da maior parte da população, não permite mais uma visão puramente individualista da propriedade nele inserido, como aquela identificada na ordem liberal. A propriedade imobiliária agora deve se adaptar às necessidades produzidas para o bom convívio e o bem estar coletivo em todas as cidades. 

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Referências Bibliográficas

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*Evaldo José Guerreiro Filho é advogado em Santa Catarina.

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