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A hora e a vez da arbitragem por equidade - Mais um efeito do coronavírus

Nesse período em que somente a incerteza é certa, a arbitragem por equidade será aquela que expressará o bom direito, estabelecendo uma situação de equilíbrio (que é de justiça), o que, repetimos, não significa dividir direitos e obrigações ao meio, fazendo-se por esse método, uma simples operação aritmética.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Atualizado às 08:35

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O momento como todos sabemos é de grande incerteza quando aos rumos que a sociedade humana tomará depois de minorado ou ultrapassado o seríssimo problema causado pela pandemia do covid-19. Ninguém sabe com algum grau de probabilidade quando isso acontecerá e quais as consequências que eles causarão à economia como um todo, e à vida das pessoas. O certo é reconhecer que nunca mais retornaremos ao modelo de vida que conhecíamos até novembro do ano passado. Essa pandemia provocou mudanças imediatas e globais em todo o planeta, muito mais avassaladora do que as originadas da substituição do carvão pelas máquinas a vapor ou do óleo de baleia usados nos candeeiros pela luz elétrica.

Esse fato se reflete diretamente nas relações jurídicas das mais diversas espécies e, como comercialista, me preocupa o que se dará em relação ao Direito Empresarial, destacadamente no campo dos contratos (dos quais fazem parte as sociedades mercantis), já presente um inadimplemento brutal, verificado a todos os instantes, do que resulta um processo negativo em cadeia linear, como também em rede, numa condição quântica, isso é aleatória. Os mesmos efeitos deletérios ocorrem no que diz respeito ao campo das recuperações judiciais. No tocante àquelas que estavam em curso antes de deflagrada a pandemia, as obrigações assumidas no plano aprovado pelos credores logo se revelaram inviáveis (atual ou potencialmente), analisando-se os horizontes de curto, médio e longo prazo. E as empresas que se viram em dificuldades pós pandemia e que têm procurado recorrer a esse instituto enfrentarão dificuldades muito sérias para apresentarem planos que se revelem viáveis nos mesmos horizontes temporais.

O financiamento bancário no momento não é uma saída viável. Isto porque, como se sabe, os bancos operam como intermediários financeiros entre os doadores e os tomadores de recursos, sendo-lhes obrigatório zelar pela liquidez de suas operações, nas quais se envolve obrigatoriamente o pagamento tempestivo das obrigações assumidas pelos devedores. A análise do risco de inadimplemento do cliente interessado em um empréstimo está fundada nos critérios históricos tradicionais, agravados pelos efeitos danosos do covid-19 em que o futuro é uma quase uma completa incógnita. Assim sendo, não tem como os juros não se elevarem, por mais que gritem os defensores do voluntarismo jurídico (feita uma lei, a situação que seja o seu objeto estaria prontamente resolvida).

Ora, tanto em relação ao mercado bancário, quanto ao das recuperações judiciais (que envolve o primeiro), a par de todas as relações jurídicas empresariais, dentro das quais o devedor procura uma proteção, há dificuldades justamente quanto ao panorama a ser considerado, nas condições acima referidas, observando-se que os fornecedores de recursos financeiros, de bens e de serviços estão obrigados, no seu próprio interesse, a adotar critérios que apresentem alguma segurança para poderem contratar operações com os seus clientes. Nesse sentido o banco suíço UBS adotou três fundamentos para a concessão de crédito, extremamente interessantes: liquidez, longevidade e legado.

Liquidez porque o mercado opera em cadeia, como estamos cansados de saber (e, mais modernamente em redes complexas, como é o caso dos arranjos de pagamento). Dessa forma o inadimplemento de um acarreta, naturalmente, o dos credores que se seguem em um processo de bola de neve; e, não estranhamente nos tempos modernos, para baixo e também para os lados.

Longevidade porque não adianta dar-se um fôlego de vida para um devedor se ele não conseguirá permanecer no mercado, seja pela demora excessiva na retomada das operações em condições de normalidade - que nunca mais será a mesma - seja porque certas atividades desaparecerão efetivamente do horizonte empresarial ou sua expressão se tornará brutalmente irrelevante na economia como um todo.

Legado porque cada empresa favorecida de alguma forma pelos sistemas especiais de proteção, que estão sendo criados, precisará deixar a sua marca para o futuro distante, fazendo do seu produto ou serviço uma base para a manutenção dos mercados existentes (viáveis) e para a formação de novos mercados duradouros.

Vamos a exemplos bem marcantes. A Xerox foi uma empresa que apresentou um produto revolucionário, tendo sido líquida nos bons tempos; apresentou certo caráter de longevidade; e deixou um legado relativo, dado que as copiadoras modernas (as impressoras que quase todos nós temos em nosso escritório ou casa) descendem em sua concepção última daquelas máquinas, pois os princípios segundo as quais foram criadas apresentam uma relação mais ou menos próxima com elas. Mas a Xerox não sobreviveu ao tempo e seu legado ficou no passado.

A Napster foi um cometa que passou rapidamente pelo planeta terra e desapareceu no curto espaço de dois anos. Surgida em 1999 com um projeto pioneiro destinado a facilitar a maneira pela qual os interessados encontravam músicas MP3 na internet, seu pico chegou ao auge em 2000 com cerca de oito milhões de usuários conectados. Mas já em 2001 seus serviços foram suspensos e ela teve de fechar as suas portas. Isto significa que ela foi o que se chama hoje de um unicórnio, mas apresentou uma liquidez extremamente curta e nenhuma longevidade, nem legado porque as empresas que a sucederam não têm ligação - ao que eu saiba - com o seu sistema operacional. O mesmo aconteceu com o sistema operacional DOS (Disk Operating System) para computadores, que sumiu na poeira, pouco depois de ter surgido o Windows e somente aqueles usuários mais antigos da Internet se lembram dele e não saudosamente. Meus leitores que mexeram com computadores a partir do final da década de noventa do século passado se souberem do que estou falando ganharão um brigadeiro delivery.

Ora, fazendo-se uma análise puramente econômica, deve-se concluir que os sempre escassos (em sua conceituação econômica) recursos financeiros relativos aos mecanismos de proteção das empresas ao tempo do coronavírus não deveriam ser destinados àquelas que não apresentem em potência os três fundamentos requeridos, seja quanto aos financiamentos destinados a socorrê-las; seja quando se trata de recuperações judiciais, cujos planos também não os preencherem. Neste último caso percebe-se desde já que a estrutura do transporte aéreo deverá ser profundamente revista, como efeito da substituição de viagens de negócios pelo sistema do home office; ou porque o turismo não deverá voltar jamais (ou demorará muitos anos) aos patamares anteriores ao fatídico novembro de 2019. Afinal de contas, a perda de renda é geral e não haverá muito dinheiro sobrando para luxos. Assim sendo, a título de exercício, seus planos de recuperação judicial necessitarão encarar os novos desafios que podem ser percebidos à sua frente, para que se mantenham líquidas e longevas e que deixem um legado para épocas melhores. Quer dizer, mais carga e muito menos passageiros. O mesmo pode-se dizer dos cruzeiros marítimos, de maneira a que os navios a serem fabricados voltem ao antigo padrão misto de passageiros e carga. Mais uma vez, mais carga e poucos passageiros.

E agora passamos a entrar propriamente no tema da arbitragem por equidade.

O cenário acima, extremamente simplificado, mostra à evidência que os empresários prejudicados em sua atividade e no caixa de suas empresas pelos efeitos do coronavírus devem em primeiro lugar buscar uma solução por via, progressivamente, de negociação (direta ou assistida por advogados); de mediação; e de litígio (judicial e arbitral), desde que os dois primeiros caminhos não venham a dar certo, tendo-se em mente que um mau acordo sempre será melhor do que uma boa briga. 

Centenas de decisões judiciais foram prolatadas dentro desse cenário negativo e nota-se uma clara tendência no sentido de se dar fôlego imediato aos devedores, por meio do diferimento ou alongamento do prazo para o cumprimento de suas obrigações, bem como redução do valor das prestações contratuais.

Ora, no ambiente de extrema incerteza em que vivemos, a arbitragem de direito, que levará à aplicação dos normas vigentes (legais ou contratuais)1 não servirá aos interesses das partes porque a estruturação das operações feita anteriormente a essa pandemia revelar-se-á inteiramente desvinculada de uma realidade posterior à celebração dos contratos sob litígio. De ambas as partes, porque quem é credor hoje será devedor amanhã. Mas daí a deixar de se aplicar o direito posto para se fazer algum tipo de acomodação é defeso aos árbitros. O recurso à teoria da imprevisão, à onerosidade excessiva e a outros mecanismos previstos em lei na maioria das vezes se mostrará limitado - e, portanto, ineficaz -  ou inaplicável, como pode ser visto em outro texto de minha autoria conjunta com a Profª Rachel Sztajn, publicado neste mesmo "Migalhas"2. 

É muito interessante observar que a equidade penetrou claramente no direito positivo. Aliás, o direito mesmo é construído sobre a base da equidade, pois ele é destinado a fazer realizar a justiça de maneira geral. No campo do direito contratual ela está diretamente presente, precisamente no tratamento dado àquele pelos artigos 473 (subsistência do contrato nos casos da realização de investimentos consideráveis nas situações de resilição unilateral) e 478 a 480 (resolução por onerosidade excessiva).

Mais recentemente, devido a abusos judiciais, o legislador entendeu necessário estabelecer mecanismos de freio e contrapeso na utilização pelo julgador dessas regras abertas, por meio da inclusão art. 421-A no Código Civil, cuidando, pois, de uma equidade temperada por normas cogentes.

No tocante à arbitragem por equidade, existe certo nível de dúvida quanto ao seu entendimento, muitas vezes considerada uma porta aberta para que os árbitros decidam segundo uma orientação da justiça do caso concreto quando, em alguns casos, fosse tomada ume orientação salomônica, por simplesmente, à margem de qualquer critério jurídico/econômico, dividir pela metade os interesses em jogo. É, portanto, muito provável, que em vista desse receio a opção pela arbitragem por equidade seja de muito pouco utilização na prática arbitral brasileira, ao que se tem conhecimento.

Já abordei esse tema em artigo neste mesmo Migalhas, cuja leitura indico para que não seja necessário aqui abordar as questões que foram então colocadas3. Naquela ocasião afastei o recurso à função social (da propriedade, da empresa e do contrato) como fundamento de decisões na arbitragem por equidade. Para assim concluir entenda-se que a função social é instituto é de natureza normativa, encontrado na Constituição Federal, na Lei das Sociedades Anônimas e no Código Civil, entre outras. Portanto o recurso a ela se dá no campo da arbitragem de direito. Isto é afirmado independentemente de constatar-se que houve um desvirtuamento substancial da função social pelo Judiciário, a partir de uma visão deturpada de alguns operadores do direito, que a transformaram em uma ferramenta mágica, apta a resolver todo tipo de problemas em relação aos quais o julgador procura proteger uma das partes, nela vendo uma situação de hipossuficiência. Passemos ao largo dessa discussão por inoportuna.

Na arbitragem por equidade não se trata, portanto, de dar corda a uma parte que se entende necessitada de proteção, segundo alguma avaliação subjetiva. Ela apresenta rigor científico/jurídico em sua aplicação, a partir por exemplo, a nosso ver, do tão conhecido aforisma atribuído a Ulpiano: "Honeste vivere, Alterum Non Laedere, Suum Cuique Tribuere" - "Viver honestamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um o que lhe pertence".               

Não se trata de normas no sentido estrito, ainda que tenham sido versados em dispositivos legais constantes de leis especiais promulgadas sobre os mais diversos assuntos. Por exemplo, aplica-se ao direito de propriedade quando se fala em viver honestamente, o que significa não subtrair ou usurpar direito alheio. O mesmo se diga no tocante a dar-se a cada um o que lhe pertence. Por sua vez, não prejudicar ninguém delimita o campo de atividade de determinado agente à sua esfera própria de interesses, de forma que é vedado ultrapassar a linha fronteiriça que integra os interesses de terceiros. 

Veja-se ainda que a sentença arbitral proferida em juízo por equidade jamais poderá ferir a ordem pública e os bons costumes que são esteio do estado democrático de direito. 

Mas devemos reconhecer a existência de corrente doutrinária que abre mais espaço o recurso à equidade pelo árbitro, buscando a sua expressão no contexto histórico em que aparece pela primeira vez, verificando a sua evolução ao longo de muitos séculos. Essa pesquisa mostraria a sua conceituação e as razões para que seja atendida nos litígios entre as pessoas. No fundo, dando-se uma olhada desde os filósofos gregos, veremos que ela seria uma virtude a ser implantada (digamos assim) pelo julgador para estabelecer uma situação de equilíbrio. Dessa forma ela está ligada ao princípio democrático da isonomia. Pelo recurso à equidade a decisão tomaria uma feição mais democrática, diferentemente do que aconteceria tão somente pela aplicação da lei posta, cujo formalismo foi uma característica do Direito Romano.               

Não há dúvida alguma de que, na evolução da percepção da equidade e do recurso a ela feito, a partir de SãoTomás de Aquino em sua Suma Teologica, deu-se nela uma profunda afetação como resultado de uma visão cristã.

De acordo com essa percepção, mesmo se entendendo que a equidade foi em certos pontos normatizada pelo direito, isto não quer dizer que, em uma arbitragem que a tenha tomado como fundamento, não possa o julgador buscar aquilo que seja justo (ou equânime), de maneira a que a norma de direito positivo possa ser flexibilizada de alguma forma, dando-se a cada um o que é seu.               

Ressaltemos, por último, a aplicação pelos árbitros da soft law (sistema aberto, não normativo)4 que tem sido aplicada na solução de litígios em lugar da hard law (sistema normativo). 

Em conclusão, nesse período em que somente a incerteza é certa, a arbitragem por equidade será aquela que expressará o bom direito, estabelecendo uma situação de equilíbrio (que é de justiça), o que, repetimos, não significa dividir direitos e obrigações ao meio, fazendo-se por esse método, uma simples operação aritmética. 

Ora, os casos novos de opção pela arbitragem deverão dar preferência à por equidade, assim expresso na cláusula compromissória redigida pelas partes sendo oportuno, evidentemente estabelecer um rito programático, conforme visto acima: (i) negociações diretas, de preferência com a assistência de advogados e de outros profissionais cuja contribuição seja essencial; (ii) mediação; e (iii) arbitragem. Quanto às cláusulas compromissórias redigidas anteriormente à pandemia e que tenham prevista arbitragem de direito, se as partes forem sábias elas as renegociarão em favor da arbitragem por equidade.

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1 O termo norma pode ser considerado como o direito positivo, posto por meio de lei em sentido amplo, como também em princípios gerais de direito e os usos e costumes mercantis, os quais têm força de lei.

2 "O Coronavirus e os Contratos Empresariais", edição de 25.03.2020.

3 "Arbitragem por Equidade: por que temos medo dela? Breve Análise no campo dos contratos incompletos", edição de 18/5/2016

4 Também chamada de direito brando, quase-direito, direito não cogente e até de direito verde (não maduro). Não é o caso de nos estendermos sobre esse instituto no presente momento.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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