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Contratos vs coronavírus: o que fazer?

Se os efeitos decorrentes da crise não são sentidos de forma igualitária, é preciso verificar quem está sendo mais desfavorecido a fim de reequilibrar a relação da maneira mais justa e proporcional.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Atualizado às 10:25

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É inegável que a pandemia provocada pelo covid-19 trouxe consequências para, praticamente, todas as esferas da sociedade. Em questão de semanas, as pessoas se isolaram, boa parte do comércio fechou e houve sobrecarga do sistema de saúde em diversos países.

Nesse cenário, a economia do Brasil sofreu forte impacto, sendo difícil projetar o tamanho e o tempo da recessão, principalmente por se tratar de uma crise com efeitos mundiais.

Por tabela, as relações contratuais também foram afetadas. Dessa forma, torna-se inevitável questionar: como proceder com os contratos firmados antes da crise?

Com o objetivo de responder essa pergunta, muito se tem discutido sobre a caracterização do coronavírus como uma força maior, caso fortuito, fato imprevisível ou até mesmo hipótese de fato do príncipe devido às medidas de combate à propagação do vírus implementadas pela Administração Pública.

Por sinal, o estado de calamidade pública provocado pelo covid-19 já foi reconhecido como hipótese de caso fortuito ou de força maior para o cancelamento de serviços, reservas e eventos referentes aos setores de turismo e cultura, por meio da MP 948/2020.

As consequências decorrentes da pandemia sobre os contratos cíveis também foram enquadradas na mesma categoria pelo PL 1179/2020, o qual institui um regime jurídico emergencial e transitório na esfera cível (já aprovado no Senado Federal e que agora segue para a Câmara dos Deputados).

Do mesmo modo, recentemente, a Advocacia-Geral da União reconheceu que os efeitos da atual crise sanitária e econômica podem ser compreendidos como caso fortuito, força maior ou um risco extraordinário, possibilitando, assim, o reequilíbrio dos contratos de concessão firmados com a Administração Pública, como aqueles referentes aos aeroportos.

Contudo, para além da discussão jurídica de qual seria, tecnicamente, a justificativa mais adequada, na prática, é mais vantajoso debater sobre as possíveis soluções.

Sendo assim, após demonstrar a existência de um certo alinhamento no sentido de caracterizar a pandemia como um fator externo à relação contratual, trataremos da seguinte questão: de que forma a legislação brasileira regula situações como a que estamos vivenciando?

No campo dos contratos cíveis, o devedor não se responsabiliza pelos prejuízos decorrentes de caso fortuito ou de força maior (artigo 393 do Código Civil), o que, frente ao atual cenário, também poderia ser interpretado em favor do credor, de modo que a culpa por não cumprir integralmente com as disposições contratuais não venha a recair sobre apenas uma das partes, já que o motivo do descumprimento resulta de fato extraordinário.

Nesse sentido, nos casos de contratos de execução continuada (por exemplo, a prestação permanente de serviços) e de execução diferida (quando serão cumpridos em um só ato, porém em data futura), também é possível revisar e, em último caso, extinguir o contrato, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, é a chamada teoria da imprevisão (artigos 478 e 479 do Código Civil).

De forma semelhante, os contratos administrativos podem ser alterados, por acordo entre as partes, em caso de fatos imprevisíveis - ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis -, força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, quando afetam o equilíbrio econômico-financeiro inicialmente determinado (artigo  65, inciso II, alínea d, da lei 8.666/1993; e artigo 81, inciso VI, da lei 13.303/2016).

Certo! Compreendemos as possíveis saídas para o problema que se impõe, mas ainda resta descobrir como essas hipóteses seriam aplicadas, tendo em vista que o estado de calamidade pública provocado pelo coronavírus afeta ambos os lados da relação.

Assim sendo, para a efetiva manutenção dos contratos, seja no campo do Direito Administrativo ou Privado, tanto o contratante quanto o contratado precisarão observar aspectos que vão além das cláusulas contratuais e das alternativas citadas.

Nessa perspectiva, destaca-se o princípio da boa-fé objetiva, já conhecido no campo do Direito Civil, do qual derivam os chamados deveres laterais ou anexos, que extrapolam a obrigação principal e trazem contornos interessantes para o contrato.

Como um desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, os contratantes devem se atentar ao dever de cooperação, pois, se ambas as partes são afetadas pelos efeitos da pandemia, é necessário que, juntas, busquem a solução que melhor atenda aos interesses dos dois lados, visando, é claro, a manutenção do negócio jurídico.

Isso posto, não se pode deixar de lembrar que, embora os princípios mencionados pertençam à lógica dos contratos cíveis, diante do contexto vivenciado, não há obstáculos para que sejam igualmente aplicados à esfera administrativa.

Até porque a lei 13.140/2015 expressamente autoriza a utilização da mediação como modo de resolver as controvérsias na esfera pública, em plena harmonia com a busca de métodos "amigáveis" estabelecida pelo Código de Processo Civil.

Seguindo este entendimento, a Primeira Jornada de Prevenção e Solução de Extrajudicial de Litígios promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), por meio do enunciado 60, decidiu que as soluções consensuais de conflito, como a conciliação e a mediação, são aplicáveis à Administração Pública.

Aliás, a ideia de cooperação e, consequentemente, de flexibilização das obrigações, já que as partes poderão repactuar as condições anteriormente impostas com o intuito de salvar o contrato da extinção, pode ser relacionada a um princípio exclusivo do Direito Administrativo: o princípio da realidade.

Esse princípio reconhece que a atuação do gestor é influenciada pelos obstáculos e condições contemporâneos à época da tomada de decisão. Por isso, a conjuntura deve ser levada em consideração no momento da análise de suas decisões (artigo 22 do decreto-lei 4.657/1942, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro-LINDB).

À propósito, o princípio da realidade vem sendo encampado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), dando maior respaldo ao Administrador Público (acórdão 60/2020/Plenário).

Logo, em meio a um cenário de crise, a fim de dar validade às decisões tomadas, sobretudo quanto aos ajustes necessários à manutenção dos contratos, é necessário que tanto agentes públicos quanto órgãos de controle confirmem o princípio da realidade.

Mas será que a balança está pesando da mesma forma para todos?

A resposta é negativa! Aliás, percebe-se que alguns setores estão até mesmo lucrando com a crise.

Se os efeitos decorrentes da crise não são sentidos de forma igualitária, é preciso verificar quem está sendo mais desfavorecido a fim de reequilibrar a relação da maneira mais justa e proporcional.

Para isso, é fundamental que o contratante e o contratado ajam de forma transparente, evidenciem o seu real problema no cumprimento do contrato e apontem as cláusulas que mais lhe oneram naquele momento com o intuito de apresentar uma possível proposta de readequação.

Não há fórmula pronta, portanto!

Talvez, a única prescrição inquestionável para o momento seja a negociação com o intuito de preservar o equilíbrio econômico-financeiro da relação contratual e, consequentemente, garantir a estabilidade do ajuste (visando a famosa segurança jurídica), de modo que a roda da economia continue girando e os efeitos sejam, ainda que a médio/longo prazo, amenizados.

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*Marina Ferraz de Miranda é advogada do Marina Miranda Assessoria e Consultoria Jurídica, gerente de contratos da Defensoria Pública do Estado de SC, graduada em Direito pelo CESUSC (2016), administradora de empresas pela UDESC (2010), mestre em Finanças e Desenvolvimento Econômico pela UFSC (2013) e Especialista em Processo Civil (com ênfase no Novo CPC) pelo CESUSC (2018). Pós-Graduanda em Compliance e Gestão de Riscos: Ênfase em Governança e Inovação (Faculdade Polis Civitas). 

*Tayná Tomaz de Souza é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), voluntária no Observatório Social de Florianópolis, membro externo da Comissão Parlamentar Especial pela Transparência da Administração Pública de Florianópolis.

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