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Desafios ao federalismo: A covid-19 e o debate em torno das políticas públicas locais

A crise gerada nas últimas semanas impôs desafios à influência do Governo Federal sob as medidas administrativas adotadas estrategicamente pelos Estados e municípios no combate ao covid-19.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Atualizado às 12:37

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Ninguém imaginaria que a covid-19 poderia desafiar, além dos sistemas econômicos e de saúde de diversos países, a estrutura do federalismo brasileiro.

A crise gerada nas últimas semanas impôs desafios à influência do Governo Federal sob as medidas administrativas adotadas estrategicamente pelos Estados e municípios no combate ao covid-19.

A tensão entre os poderes foi desencadeada em razão das divergências de visão entre a presidência da República e alguns governadores de Estado, no que diz respeito às políticas públicas criadas na área da saúde para combater o contágio do covid-19, o que envolveu a determinação de isolamento social e fechamentos dos comércios, mantendo em funcionamento somente atividades e serviços essenciais. Estas determinações foram realizadas em consonância com as orientações técnicas da Organização Mundial da Saúde e da observação da experiência da comunidade internacional para diminuir a famigerada "curva de aceleração" do contágio do vírus.

A situação em si envolve conceitos relacionados ao federalismo e a distribuição de atribuições entre a União, Estados, Distrito Federal e municípios, sobretudo em relação a autonomia de cada ente sob seu território.

O federalismo pressupõe a união de estados autônomos, baseada na confiança e horizontalidade, e visa a distribuição de competências e formação de uma entidade central representativa do pacto, a União. O principal movimento histórico desta forma de organização de Estado é encontrado na formação histórica dos Estados Unidos da América no ano de 1787. Em outras palavras, o sistema confederativo é o [...] acordo capaz de estabelecer um compartilhamento da soberania territorial, fazendo com que coexistam, dentro de uma mesma nação, diferentes entes autônomos e cujas relações são mais contratuais do que hierárquicas [...].

O federalismo brasileiro (art. 1º, caput, da CFRB), inserido no cenário político brasileiro através do decreto 1, de 15.11.89, posteriormente convalidado na Constituição de 1891 - este decreto também regulamentou a opção pela forma republicana de governo -, trouxe uma particularidade que torna o federalismo brasileiro atípico em razão da inserção de municípios dotados de autonomia orçamentária, política e legislativa. Em relação a competência legislativa, destacam-se as atribuições de suplementar a legislação federal e estadual e legislar sobre os assuntos de interesse local, competências editadas justamente para possibilitar a aplicação da norma federal - por exemplo - às peculiaridades da sua população.

A Constituinte de 1988, no artigo 18, revela "a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos [...]". A autonomia dos entes pressupõe independência - não estamos dentro de um estado unitário - e, desse modo, é incorreto o raciocínio inicial de que entre os entes da federação haja relações de hierarquia. Conforme ressalta a ministra Carmen Lúcia:

[...] Na história constitucional brasileira, a Federação é mais que apenas a forma de Estado escolhida e acolhida pelo sistema de Direito: é uma garantia contra as investiduras centralizadoras e antidemocráticas que teimam em rondar o poder. Federação é garantia de democracia no Brasil, por isso mesmo impõe uma vigília permanente.

A União não manda nos Estados.

Os Estados não mandam nos municípios constituídos em seu território.

Quando a constituição distribui competências entre os entes da federação, não se busca escalonar ou criar relações de subordinação, mas sim distribuir atribuições para atingir de forma cooperativa o desenvolvimento nacional (art. 3º, inc. II da CFRB).

Nesse sentido, retomando ao objetivo deste artigo e utilizando dos conceitos já analisados até este ponto, quando a Constituição regulamenta a defesa da saúde, é fixada a competência concorrente entre os entes, o que determina à União editar normas gerais e, aos Estados e municípios, editar normas complementares, com vistas a regulamentar a aplicação das leis às peculiaridades dos entes.

O embate citado no início deste artigo se deu após a edição da lei 13.929/20 que disciplinou, no âmbito federal, "as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus", conforme se extrai da sua ementa.

A aludida lei prevê de forma exemplificativa que os poderes executivos da federação poderão editar medidas para o enfretamento do vírus, para os fins deste artigo destacaremos apenas três das medidas elencadas no artigo 3º da referida lei: isolamento (separação de pessoas doentes ou contaminadas, incluindo no caso da contaminação a separação de objetos); quarentena (restrição de atividades, separação de pessoas e suspensão de atividades comerciais para evitar aglomerações); locomoção interestadual e intermunicipal mediante o fechamento de estradas, rodovias e divisas.

As medidas destacadas impactam de forma direta a organização econômica do país, pois impõe a suspensão de atividades comerciais, circulação de bens etc. Dada a magnitude de seus impactos, a lei vinculou a realização de tais atos a pareceres técnicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (após a edição da medida provisória 926/20)

A controvérsia que surgiu junto ao STF se deu em virtude de as edições das ações mencionadas no âmbito dos Estados e municípios estarem vinculadas a pareceres da Anvisa, que é autarquia federal. O que poderia significar uma vinculação das legislações estaduais e municipais às escolhas do ente federal.

Neste sentido, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 6341) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), pugnando pelo reconhecimento da inconstitucionalidade da política sanitária instituída pela norma.

Na análise da ADIn 6341, o Plenário do STF, por unanimidade, entendeu que ainda que o Governo Federal tenha editado a MP 926/20, isto não anula a competência dos Estado e municípios a legislarem de forma concorrente em relação a política sanitária de saúde, principalmente em relação ao exercício do poder de polícia.

Assim, capitaneado pelo voto do ministro Edson Fachin, foi conferido ao artigo 3º a técnica hermenêutica de interpretação conforme à Constituição, para repetir o que já dizia o texto constitucional acerca da competência concorrente, pois a possibilidade de o chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, poderia representar uma afronta ao princípio do federalismo.

Ademais, é prematuro dizer que a situação excepcional - ocasionada por uma pandemia - não tenha sido prevista pelo ordenamento jurídico, pois havia substrato legislativo para tratar da matéria, tanto que o próprio STF optou em aplicar a técnica de interpretação conforme a Constituição nas normas questionados na ADIn. Contudo, seguindo à risca do debate político brasileiro, soluções que já estavam previstas pela lei, tiveram de ser revistada pelo Poder Judiciário, fortalecendo a judicialização da questão.

Além dos esclarecimentos acima, o que buscamos destacar é a necessidade de o STF apresentar entendimento do que já está expresso na Constituição, em meio a vigência de um estado de calamidade pública em que há emergência em diversos setores da sociedade.

A necessidade de provocação do STF para chancelar o entendimento aplicável ao tema, revela a falta de debate entre os poderes e a tentativa, por parte da União, de deslegitimar a autoridade dos Estados e municípios em relação às políticas públicas locais.

Nesse processo, tempo, dinheiro e vontade política foram lançadas às vespas, sobretudo, em razão da falta de diálogo.

As políticas dos governos devem se voltar ao atendimento desta pandemia, eventuais disputas políticas ou tentativas de criar "espólios" eleitoral apenas retarda o remédio imediato que devemos apresentar no combate a "peste" desta década.

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ABRUCIO, Fernando Luiz; FRANZESE, Cibele. Federalismo e políticas públicas: o impacto das relações intergovernamentais no Brasil. In: Maria Fátima Infante Araújo; Lígia Beira. (Org.). Tópicos de Economia Paulista para Gestores Públicos. 1 ed. Edições FUNDAP: São Paulo, 2007, v. 1, p. 13-31.

SERAFIN, Gabriela Pietsch. O princípio federativo e a autonomia dos entes federados. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 58, fev. 2014. Disponível em: Acesso em: 27 abr. 2020.

ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 157).

Com recados a Bolsonaro, Supremo autoriza estados e municípios a decidirem sobre isolamento. Folha. Disponível em Clique aqui Acesso em: 25 abr. 2020.

MERLIN, Meigla Maria Araújo. O Município e o Federalismo: a participação na construção da democracia. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2004.

STF reconhece competência concorrente de estados, DF, municípios e União no combate à Covid-19. STF. Disponível em: Clique aqui Acesso em: 25.04.20.

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*Thiago Gonçalves Coriolano é advogado graduado em direito pela Universidade São Judas Tadeu, pós-graduando em direito material e processual do trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, sócio proprietário da banca Pires e Coriolano Sociedade de Advogados.

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