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A mistanásia e a saúde pública

Não se cobra a entrega de todo um sistema perfeito de saúde, mas um que possa realizar as funções necessárias para o atendimento básico e emergencial e que, em caso de uma epidemia ou ainda mesmo de uma pandemia, que esteja pronto para servir a comunidade dentro de razoáveis padrões de qualidade.

domingo, 3 de maio de 2020

Atualizado em 4 de maio de 2020 07:05

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O abalo mundial proporcionado pela pandemia do coronavírus desestabilizou as grandes nações do mundo, desde as mais ricas que injetam fabulosas cifras tanto no combate à doença como na recuperação de seus doentes, até as mais pobres, sem a ínfima condição de qualquer reação, ficando, desta forma, à mercê da solidariedade entre os povos.

A pandemia deixou bem claro que não respeita limites geográficos e, como um tsunami, com ondas cada vez mais avassaladoras, vai arrasando as populações, prostrando-as, seja em hospitais seja em seus próprios lares.

E a comunidade mundial, principalmente a representada pelos grupos de maior poderio econômico, foi se curvando aos poucos ao domínio do coronavírus quando se viu impossibilitada de oferecer não só hospitais preparados com recursos técnicos compatíveis, como também pessoal de saúde em número razoável para enfrentar as intempéries da doença.

O que se viu, na realidade exposta pelos meios de comunicação, não foi a ocorrência de morte provocada exclusivamente pela doença, mas sim pelo colapso hospitalar em não ter condições de abrigar mais pacientes em leitos de UTIs, devidamente equipados com respiradores e outras máquinas adequadas para a recuperação do paciente. Basta ver que grande parte que teve acesso a esses recursos, conseguiu êxito no tratamento. A outra, mesmo doente, não ingressou nem na categoria de paciente.

No Brasil, principalmente nos Estados onde ocorreu o esgotamento de atendimento hospitalar, com as UTIs abarrotadas, não restou outra alternativa a não ser providenciar caminhões-frigoríficos ou contêineres para receber os cadáveres em necrotérios provisórios, enquanto que os cemitérios, despreparados da mesma forma, abriam covas rasas, sequenciais e coletivas à espera dos corpos das vítimas que faleceram por covid-19, numa inesquecível cena dantesca.

Tem-se a impressão de que, juridicamente, é um caso de omissão de socorro estrutural, cuja responsabilidade recai sobre os entes Federal, estadual e municipal, por não cumprirem as normas atinentes ao direito à saúde e às políticas públicas referendadas.

Até se poderia cogitar na ocorrência da mistanásia, cujo significado etimológico aponta para uma morte infeliz, miserável, antes da hora, desprovida dos cuidados básicos de saúde, também chamada de "vida abreviada" em nível social. Pessini, bioeticista de projeção e responsável pelos estudos mais avançados sobre o tema, cuja morte é lastimada pela comunidade, focou a precariedade dos serviços de atendimento médico e hospitalar e profetizou:

"Fatores geográficos, sociais, políticos e econômicos se juntam para espalhar pelo nosso continente a morte miserável e precoce de crianças, jovens, adultos e anciãos, a chamada eutanásia social, mais corretamente denominada mistanásia. Fome, condições de moradia precárias, falta de água limpa, desemprego ou condições de trabalho massacrantes, todos contribuem com sua parcela para espalhar a falta de saúde e uma cultura excludente e mortífera"1.

Mas, na realidade, não se permite um raciocínio nesta linha de pensamento porque a pandemia vem revestida dos contornos de força maior e caso fortuito, dois institutos que, com a ocorrência de acontecimentos que refogem à linha da previsibilidade natural, extrapolam a realidade humana. Apresentam-se, ao mesmo tempo, como causa e efeito.

Mas não se pode deixar de apontar, por outro lado, que hoje, em pleno processo pandêmico, em ritmo acelerado e com uma inevitável aparência de improvisação, muitos hospitais são erguidos, aparelhos e equipamentos adquiridos, profissionais especializados alocados e retomadas as pesquisas envolvendo seres humanos. A lição de casa está sendo feita tardiamente.

Não se cobra a entrega de todo um sistema perfeito de saúde, mas um que possa realizar as funções necessárias para o atendimento básico e emergencial e que, em caso de uma epidemia ou ainda mesmo de uma pandemia, que esteja pronto para servir a comunidade dentro de razoáveis padrões de qualidade.

Oportuna a manifestação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, no ensaio intitulado "A cruel pedagogia do vírus", a respeito da ausência de recursos públicos em favor da saúde: "As pandemias mostram de maneira cruel como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências. As respostas que os Estados estão a dar à crise variam de Estado para Estado, mas nenhum pode disfarçar a sua incapacidade, a sua falta de previsibilidade em relação a emergências que têm vindo a ser anunciadas como de ocorrência próxima e muito provável"2.

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1 Pessini, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo/ Edições Loyola, 2004, pág. 211.

2 A Cruel Pedagogia do Vírus.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

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