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Os impactos do Covid-19 nos contratos Built to Suit

Não bastasse o impacto nos contratos em andamento, a tendência é que os projetos futuros também sejam prejudicados, afinal, a disponibilidade financeira dos protagonistas desse mercado (em especial, dos potenciais locatários) tende a ser comprometida.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Atualizado às 09:39

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A pandemia do novo coronavírus ("COVID-19") desencadeou uma crise de escala global que vem afetando as mais diversas áreas da economia mundial. Apesar de ainda não conseguirmos mensurar precisamente os efeitos decorrentes dessa crise, certo é que a suspensão parcial das atividades econômicas e os altos investimentos emergenciais prometem consequências significativas.

O setor de construção civil, que exerce papel importante na economia do Brasil, está sendo fortemente impactado. Isto porque esse segmento, que já vinha sofrendo com o cenário econômico ruim, agora tende a experimentar uma longa temporada de recursos escassos e poucos investimentos, sejam eles públicos ou privados.

Os contratos Built to Suit (em português, "construído para se adequar" ou "feito para servir/caber"), por possuírem uma estrutura que viabiliza investimentos, já que o próprio valor do aluguel é utilizado como garantia, estão conquistando cada vez mais espaço no mercado brasileiro. Por isso, mesmo que de forma breve, é válido discorrer acerca dos impactos da pandemia nesses contratos.

Conhecido pelo acrônimo BTS, o contrato Built to Suit é o contrato que viabiliza a chamada "construção sob medida". Nesses casos, o investidor (uma construtora, via de regra) viabiliza uma obra civil conforme as necessidades e interesses do seu futuro locatário, que, em contrapartida, se compromete a ocupar o imóvel por um prazo razoavelmente longo (capaz de amortizar a dívida). O investidor, com o lastro do aluguel de longo prazo, consegue viabilizar o investimento e tem a garantia do respectivo retorno. O locatário, por sua vez, não precisa imobilizar patrimônio, nem se descapitalizar, e ainda aluga imóvel totalmente customizado.

Com o novo coronavírus, certo é que os contratos BTS em execução deverão sofrer impactos diretos, tais como a alteração do cronograma das obras, em razão de regras (sejam elas de âmbito Municipal, Estadual ou Federal) que determinem a paralização ou suspensão das obras e serviços, bem como das restrições no transporte público, da própria política de isolamento social e da escassez de mão de obra. Temos visto, ainda, uma crescente interrupção das cadeias de produção, o que afeta o fornecimento de suprimentos, insumos e materiais essenciais usados na construção, especialmente os importados.

Outro possível impacto do COVID-19 nos contratos BTS é a impossibilidade, por parte dos locatários, de adimplir as obrigações assumidas. Nesse cenário, poderão surgir pleitos de revisão ou rescisão contratual baseados em argumentos de caso fortuito, força maior ou, eventualmente, teoria da imprevisão.

O caso fortuito e a força maior, ambos previstos no parágrafo único do art. 393 do Código Civil1, dizem respeito a eventos necessários, previsíveis ou não, cujos efeitos não eram possíveis de evitar ou impedir, acarretando a impossibilidade de cumprimento da obrigação. O caput do mencionado artigo2 determina que, na ocorrência de caso fortuito e/ou força maior, o devedor da obrigação inadimplida não responderá pelos prejuízos resultantes do descumprimento, salvo se tiver por eles se responsabilizado.

Já a teoria da imprevisão é construção teórica que, conforme disposto no art. 478 do Código Civil3, pressupõe a existência de contrato de execução sucessiva ou diferida, alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exagerado para outro, e, por fim, a imprevisibilidade dessa alteração. Coexistindo estes quatro requisitos, poderá o devedor pleitear a extinção do contrato ou a revisão de suas cláusulas.

Como regra geral, pode-se afirmar que os contratos foram feitos para serem cumpridos. É conforme determina o princípio da pacta sunt servanda (obrigatoriedade dos contratos), segundo o qual "os pactos são para serem observados". No entanto, a mencionada obrigatoriedade deve ser flexibilizada em casos excepcionais, tais como os mencionados, devendo, cada relação contratual específica, ser examinada levando em conta as suas especificidades, a fim de apurar a real necessidade dos pleitos de revisão ou rescisão.

Também vale destacar que, na realização de tal exame, deve ser considerada não apenas a natureza da obrigação inadimplida, mas também a causa do inadimplemento, o contexto da assunção da obrigação, além das consequências financeiras e sociais para os envolvidos.

Dada a vultosidade dos contratos BTS, é provável que estes tenham a definição do que deve ser considerado caso fortuito, força maior e onerosidade excessiva (para fins de aplicação da teoria da imprevisão), bem como que prevejam as consequências de tais eventos, tais como a prorrogação de prazos, reajuste de preços e possibilidade de rescisão.

Não havendo previsão contratual, as partes ficam sujeitas às disposições genéricas previstas em nosso ordenamento jurídico, razão pela qual pode-se esperar um aumento de pleitos de contencioso judicial e arbitral. Vale ressaltar, no entanto, que as partes envolvidas devem manter a boa-fé e o espírito de parceria, esforçando-se, de forma conjunta, para buscar soluções conciliatórias que busquem mitigar os impactos sofridos.

Ainda nesse cenário de descumprimento contratual, a possibilidade de não pagamento (ou de pagamento parcial), por parte do locatário, do valor do aluguel devido ao investidor, merece atenção especial nos contratos BTS. Isto porque, conforme dito, a garantia de recebimento do aluguel é elemento essencial desse contrato e representa não apenas o lucro do investidor, mas também os custos da construção do empreendimento.

Ora, não é difícil perceber o ciclo negativo que essa inadimplência pode gerar: o investidor que sequer reembolsa os custos assumidos para viabilizar o empreendimento também tende a descumprir com as suas obrigações. Empregados, fornecedores e demais participantes desse mercado deixam de receber (ou recebem parcialmente) e, por essa razão, tendem, de igual maneira, a se tornar inadimplentes. E por aí vai...

Não bastasse o impacto nos contratos em andamento, a tendência é que os projetos futuros também sejam prejudicados, afinal, a disponibilidade financeira dos protagonistas desse mercado (em especial, dos potenciais locatários) tende a ser comprometida. O recrudescimento das exigências para liberação de financiamentos por parte das instituições financeiras também parece inevitável, além da fatal recessão econômica.

Apesar de o cenário futuro para novos empreendimentos no setor de construção civil ser pessimista, resta-nos torcer para que esse momento atual de disrupção, ocasionado pela pandemia do COVID-19, seja superado com a maior brevidade possível. Com solidariedade e cooperação, em especial entre os principais agentes do setor, enfrentaremos as adversidades, em um mútuo esforço para que os contratos BTS continuem a conquistar cada vez mais espaço no mercado brasileiro.

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1 "Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir."

2 "Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado."

3 "Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação."

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*Isabela Caddah Guimarães é advogada do escritório Tolentino Advogados.

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