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Dilemas em tempos de pandemia: o que fazer com os contratos de locação comercial e em shopping center?

Giovana Benetti

Um panorama sobre as decisões judiciais envolvendo a discussão sobre os reflexos da pandemia do covid-19 em contratos de locação comercial e de locação em shopping center.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Atualizado às 12:22

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Os tempos atuais, diante dos reflexos da pandemia do covid-191 na sociedade, trazem à memória uma passagem de Charles Dickens que parece adequada para retratar o período presentemente enfrentado: "It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to Heaven, we were all going direct the other way [.]"2.

O misto de esperança e solidariedade, de um lado, e de incredulidade e desespero, de outro, acompanha a todos em razão das incertezas e das adversidades atualmente experimentadas. A pandemia impactou em cheio a sociedade, manifestando-se sobre os mais diversos setores. Basta pensar que a análise de seu reflexo no mercado de trabalho demonstra ser esta a segunda maior queda histórica, perdendo apenas para a ocorrida em virtude da crise de 2008-20093. Além disso, poucos dias após a publicação do decreto que reconheceu o estado de calamidade pública em território nacional4, já se indicava queda significativa no faturamento de lojas físicas5 e, mais recentemente, concluiu-se ter o setor de serviços - o mais impactado desde o início do surto - apresentado queda de 58,4% no período de 1º de março de 2020 a 29 de abril de 20206.

Diante deste cenário e da dificuldade de realizar previsões, é preciso ter extrema cautela ao buscar resposta única para todos os casos em que se invoca a pandemia. Como bem destacado em recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, "o momento é difícil e não há soluções mágicas"7. Apesar desta dificuldade, afigura-se relevante o exame de problemas práticos já submetidos à apreciação do Poder Judiciário.

Para tanto, escolheu-se enfocar o tema do impacto da pandemia nos contratos de locação comercial, abarcando, igualmente, a locação em shopping center, tendo em vista o número considerável de decisões judiciais disponíveis a este respeito8. É inegável o reflexo da pandemia nessa espécie de contrato9, tanto que o PL 1.179/2020, acerca do "Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)" - ora em tramitação na Câmara dos Deputados10 - contém dispositivo específico voltado à suspensão temporária da concessão de liminar para desocupação de imóveis urbanos em ações de despejo11. É importante notar, porém, não haver "presunção automática de impacto", cabendo à parte que estiver impedida de cumprir total ou parcialmente com a sua prestação comprovar que, efetivamente, se encontra neste estado.

A proposição destas notas é, assim, apresentar panorama sobre as decisões judiciais envolvendo a discussão sobre os reflexos da pandemia do covid-19 em contratos de locação comercial e de locação em shopping center12. Antes, porém, serão brevemente contextualizados o regime e as peculiaridades desses contratos.

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1 Em 11/3/2020, a Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) classificou como pandemia a doença provocada pelo novo coronavírus - covid-19 (Disponível aqui.  Acesso em 27/4/2020). 

2 DICKENS, Charles. A Tale of Two Cities. A Story of the French Revolution. Disponível aqui. Acesso em 25/42020. Tradução livre: "Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, estávamos todos indo direto para o Céu, estávamos todos indo direto para o outro lado [...]". 

3 "Mercado de Trabalho: Sob impacto do COVID-19, indicador sinaliza ritmo forte da taxa de desemprego". Acesso em 24/4/2020. Vide, ainda, acesso em 24/4/2020. 

4 Decreto Legislativo 6 de 2020, publicado em 20/3/2020. 

5 Pesquisa CIELO, 24/03/20, p. 3 e 5. 

6 Conforme o Boletim Cielo sobre o Impacto do COVID-19 no Varejo Brasileiro. Acesso em 1/5/2020. É certo, porém, terem poucos setores indicado crescimento, como o de Supermercados e Hipermercados, que apresentou crescimento de 16,9% (Idem). 

7 TJSP. Agr. nº 2069928-09.2020.8.26.0000. 34ª Câmara de Direito Privado. Relator Des. L. G. Costa Wagner. J. em 15.04.2020. 

8 Para a realização da pesquisa jurisprudencial, utilizou-se, primordialmente, a base de dados constantes do Observatório Imobiliário Covid-19, conforme o conteúdo disponibilizado até o dia 01.05.2020. A base de dados conta com diversos julgados, dentre os quais, há decisões envolvendo discussões sobre as obrigações pecuniárias atinentes a contratos de locação comercial e em shopping center. 

9 Note-se, ademais, que a figura geral do contrato de locação - aí estando abarcada a modalidade residencial - já reclamou providências legislativas temporárias em outros períodos de crise, especialmente no entremeio das guerras mundiais. Recorde-se da crise de habitação provocada pela Primeira Guerra Mundial, oportunidade em que se inaugurou o regime especial do inquilinato por meio do decreto legislativo  4.403/1921, posteriormente revogado pelo decreto 5617/1928, que restaurou a aplicação do Código Civil de 1916. Posteriormente, o decreto 24.150/1934 regulou as condições para renovação dos contratos de locação de imóveis destinados a fins comerciais ou industriais. Pouco tempo depois sobreveio o Decreto nº 4.598/1942 acerca da locação residencial, em razão da Segunda Guerra Mundial. Para um panorama da evolução histórica do contrato de locação, vide PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. Atualizado por Caitlin Mullland. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 252-253. 

10 Disponível aqui. 

11 Art. 9º da versão aprovada pelo Senado: "Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX da lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020". Na versão original do Projeto, havia dispositivo disciplinando a suspensão temporária da exigibilidade do pagamento do aluguel: "Art. 10. Os locatários residenciais que sofrerem alteração econômico-financeira, decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração, poderão suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020. § 1° Na hipótese de exercício da suspensão do pagamento de que trata o caput, os alugueres vencidos deverão ser pagos parceladamente, a partir de 30 de outubro de 2020, na data do vencimento, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos. § 2° Os locatários deverão comunicar aos locadores o exercício da suspensão previsto no caput. § 3º A comunicação prevista no § 2º poderá ser realizada por qualquer ato que possa ser objeto de prova lícita".

12 Como está na nota de rodapé 9 supra, utilizou-se, primordialmente, as decisões disponíveis na base de dados Observatório Imobiliário Covid-19 até o dia 1/5/2020.

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*Giovana Benetti é doutora em Direito Civil pela USP. Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogada, sócia do escritório Judith Martins-Costa Advogados. Professora convidada em cursos de graduação e pós-graduação.

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