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A (in)constitucionalidade da influência religiosa no processo legislativo nacional

Para alguns estudiosos do tema, trata-se de conceito de impossível dedução, senão como uma ideia (filosófica) ou como entidade histórica, real, empírica.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Atualizado às 10:35

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O processo legislativo, compreendido pela proposta ou propositura de um projeto de lei, sua discussão, emendas de variadas formas1, votação e promulgação, seja pelo presidente da República ou pelo presidente da Casa Legislativa Respectiva, é inegavelmente uma das característica do Estado. Fenômeno este de não uníssona conceituação, e de gênese não identificada na história da humanidade, desconhecido tal qual hoje o entendemos na Idade Média, mas que, ao se tornar objeto de estudo científico, permitiu, ao menos, a delimitação de sua evolução desde a Polis grega e da Civitas Romana.

Teria sido a Itália o primeiro país a empregar a palavra Stato, embora com uma significação muito vaga. A Inglaterra, no século XV, depois a França e a Alemanha, no século XVI, usaram a palavra Estado com referência à ordem pública constituída. Foi Maquiavel, criador do direito público moderno, quem introduziu a expressão, definitivamente, na literatura científica.2

Para alguns estudiosos do tema, trata-se de conceito de impossível dedução, senão como uma ideia (filosófica) ou como entidade histórica, real, empírica, subdividindo-se a dualidade na tentativa de busca de um signo para o significado, como fato social, como organismo natural ou produto da evolução histórica, como entidade artificial, resultante da vontade coletiva manifestada em um dado momento, como objeto de direito (doutrina monárquica), como sujeito de direito, como pessoa jurídica (doutrina democrática), como expressão de uma só realidade fundindo Direito e Estado (Teoria Monista), ou ainda, como realidade jurídica estrita (positivismo).

O Status, o estar de pé, firme, que nas palavras de Duguit, "é criação exclusiva da ordem jurídica e representa um organização da força a serviço do Direito", para Rudolf Smend "é uma incessante luta de integração. Reflete, na sua estrutura, forças independentes que congrega e comanda. É um ângulo de convergência de todas a forças sociais propulsoras, sob disciplina, da felicidade, e da ordem, no seio da comunhão. Ascultando tendências, e as influências...". Entretanto, seja qual for a tentativa de definição de um Estado, o mesmo tem como pedra angular de existência, uma Constituição Federal3. Texto basilar que traz os princípios fundamentais norteadores dos direitos e das garantias fundamentais, das regras sobre sua própria organização, Tributação e Orçamento, Ordem Econômica, Financeira, Social e da organização dos Poderes.

Movimento Constitucionalizador (Streck) na feição que hoje conhecemos, gestado no transcurso do século XVII na Inglaterra, e no correr do século XVIII na França, culminando com o marco histórico da Declaração de Independência das colônias norte americanas e sua Constituição de 1787, findando o assim chamado período dos estados medievais, limitando, já na perspectiva moderna de Estado, tanto o poder do soberano/rei/príncipe, quanto distinguindo o Estado da Igreja4.

O Estado brasileiro, arquitetado sobre as bases de oito Cartas Políticas[5], hodiernamente se levanta sobre a base da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[6], a qual, na esteira da Constituição de 1891, a primeira de período Republicano, promulgada, presidencialista e sufragista, fincou, para nós, o marco inicial separatório entre Estado e Igreja, buscando o necessário distanciamento com o período monárquico e fortemente clerical anterior.

O texto constitucional atual, em vigor e vigência, muito embora tenha inspiração normativa nos anseios liberais das Cartas Políticas anteriores, anota em seu preâmbulo que:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (Sem grifos no original)

Contudo, a leitura do corpo constitucional, a aplicação de seus conceitos, a atividade exegética, a obediência aos comandos ou a fruição das garantias nele insculpidos, não devem se dar de modo dissociado, em nociva admissão de se buscar sentido em um comando normativo - para além da discussão do aspecto dogmático do preâmbulo7 -, que contradiga outro(s) comando(s) do mesmo texto. Pois, muito embora anote o introito da Constituição Federal "sob a proteção de Deus", a norma outorgada, não permite qualquer leitura ou o exercício das atividades legislativas nela previstas, que contrariem a laicidade do Estado, sob o risco de enodar-se pelo vício de inconstitucionalidade formal e/ou material, o produto da atividade legiferante.

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1 Lei complementar 95 de 26 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.

2 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 25ª edição, atualizada pelo Prof. Miguel Alfredo Malufe Neto, São Paulo, Saraiva, 1999, página 20.

3 Tratando-se de uma Constituição (...) Esta norma é - como mais tarde se verá melhor - a norma fundamental de um ordem jurídica estatal. Esta não é uma norma posta através de um ato jurídico positivo, mas - como o revela uma análise dos nossos juízos jurídicos - uma norma pressuposta sempre que o ato em questão seja de entender como ato constituinte, como ato criador da Constituição, e os atos postos com fundamento nesta Constituição como atos jurídicos. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado, 8ª ed., São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2009, p.51).

4 É emblemática a pintura deJacques-Louis David: A coroação de Napoleão (1807).

5 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1697, 1969 e 1988.

6 Publicado no Diário Oficial da União nº 191-A de 5 de outubro de 1998.

7 Preâmbulo da Constituição: não se constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. [ADI 2.076, rel. Min. Carlos Velloso, j. 5-8-2002, P, DJ de 8-8-2003].

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A Constituição e o Supremo / Supremo Tribunal Federal. - 5. ed. atual. até a EC 90/15. - Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2016, 3 volume.

BRASIL. Lei complementar 95 de 26 de fevereiro de 1998 (DOU 27.02.98).

Constituição da República Federativa do Brasil: de 5 de outubro de 1988/organização Alexandre de Moraes - 45. Edição, ver. ampl. - São Paulo: Atlas, 2018.

DE NICOLA, José. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias/colaboração Lorena Mariel Menón, Lucas Santiago Rodrigues De Nicola. - 18 ed. - São Paulo: Scipione, 2011.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; tradução João Baptista Machado, - 8ª ed., - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. - (Biblioteca jurídica WMF).

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 25ª edição, atualizada pelo Prof. Miguel Alfredo Malufe Neto, São Paulo, Saraiva, 1999.

STREK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. - 5ª ed., - Rio de Janeiro: Forense, 2018.

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t*Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior é pós-doutor em Direito Constitucional na Itália, advogado, professor universitário, sócio fundador do escritório SME Advocacia. Conselheiro da OAB/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO, membro consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB Nacional e árbitro da CAMES.


t*Marcos Antônio Nicéas Rosa é especialista em Direito Civil e Processo Civil, advogado, professor universitário e secretário da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO.






t*Tiago Magalhães Costa
 é especialista em Direito Civil e Processual Civil, advogado, professor universitário, sócio fundador do escritório SME Advocacia. Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/GO.

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