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A judicialização do medo: A função atípica e o covid-19

Em 6 de fevereiro de 2020, o Governo Federal, diante de disseminação da pandemia do covid-19, promulgou a lei 13.979/20, traçando as normas gerais de combate a emergência sanitária que poderia vir a ocorrer, caso o covid-19 chegasse ao Brasil.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Atualizado às 12:12

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Introdução

O surgimento da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV2 ou Covid-19) trouxe ao mundo uma nova situação de ordem, onde os Poderes Constitucionalmente Instituídos, pós Constitucional Federal de 1988, não viveram o estado de calamidade pública ou emergência (decreto 7.257/10) ou estado de defesa (CF, art. 136) na proporção do tamanho da pandemia do covid-19, tomando medidas com características de estado de sítio (CF, art. 137), e provocando a ação do Poder Judiciário, o qual, fugindo as regras tradicionais da hermenêutica jurídica, está agindo por receio da possibilidade de uma imputação de responsabilidade, desrespeitando a ordem constitucional.

Assim, nasce no direito brasileiro uma nova figura jurídica: A Judicialização do Medo, que amplia o conceito do ativismo judicial, uma vez que o Poder Judiciário passa a invadir a competência constitucional de todos os EntesFederativos.

A lei geral do coronavírus: lei 13.979/20

Em 6 de fevereiro de 2020, o Governo Federal, diante de disseminação da pandemia do covid-19, promulgou a lei 13.979/20, traçando as normas gerais de combate a emergência sanitária que poderia vir a ocorrer, caso o covid-19 chegasse ao Brasil.

Em 26 de fevereiro de 2020 foi confirmado o primeiro caso positivo do Covid-19, no início de maio de 2020, os números de pessoas contaminadas chegam a mais de cem mil pessoas no Brasil.

Em seu artigo 1.º, a lei 13.979/20 define os objetivos da lei. Já no artigo 2º traz a definição legal de isolamento e quarentena. Por seu turno, o artigo 3º da lei 13.979/20 traz as competências dos atos que deverão ser praticados nas esferas de cada competência dos Entre Federativos, sendo esse dispositivo que estou analisando, principalmente no tocante a competência municipal, in verbis:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

I.     Isolamento;

II.    Quarentena;

III.  Exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

IV.  Restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:

a.    Entrada e saída do País; e

b.    Locomoção interestadual e intermunicipal;

§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:

II.    pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, V, VI e VIII do caput deste artigo;

Diante do texto objetivo, fica claro que o gestor local, quer seja Estadual, quer seja municipal, possui a competência legal para definir e executar os atos necessários para combater a disseminação do covid-19, dentro daquilo que a Constituição Federal já fixou.

Ocorre que, mesmo com a Lei Geral e a Constituição Federal atribuindo essa competência aos gestores locais, o Poder Judiciário vem tolhendo dos Municípios o exercício da competência legal, na defesa dos interesses locais, sob o argumento de que eles, os municípios, são hierarquicamente inferiores às normas Estaduais, hierarquia essa que não existe, conforme vamos analisar.

Por conseguinte, promulgada a regra geral e fixada a competência legal dos gestores locais de saúde, necessário se faz dar a correta interpretação das normas, visando evitar decisões divergentes entre os Órgãos do Poder Judiciário, bem como limitar a atuação deste ao âmbito de sua competência, sem invadir a competência legal dos outros Poderes Constitucionalmente reconhecidos.

As regras de hermenêutica da interpretação do texto constitucional

Diante da competência fixada pelo artigo 3.º da lei 13.979/20, surge no campo da aplicação da lei as regras definidas pela hermenêutica jurídica, para entrelaçar as competências definidas na Constituição Federal (artigos 22, 23, 24 e 30) e a lei infraconstitucional.

E, é neste exato momento que, diante da possibilidade de uma imputação de responsabilidade por parte do Poder Judiciário, este passa a interpretar as normas sem critérios técnicos, criando assim a tese aqui proposta, da Judicialização do Medo.

Pedro Lenza (2019, p. 243), sobre as regras de hermenêutica, leciona que:

As Constituições devem ser interpretadas, função essa atribuída ao exegeta, que buscará o real significado dos termos constitucionais. Tal função é extremamente importante, na medida em que a Constituição dará validade para as demais normas do ordenamento jurídico (Kelsen). Assim, devemos decifrar o seu verdadeiro alcance, a fim de sabermos, por consequência, a abrangência de uma norma infraconstitucional. A interpretação deverá levar em consideração todo o sistema. Em caso de antinomia de normas, buscar-se-á a solução do aparente conflito através de uma interpretação sistemática, orientada pelos princípios constitucionais.

Já Gilmar Mendes (2018, p. 135), expõe o seguinte:

O método clássico preconiza que a Constituição seja interpretada com os mesmos recursos interpretativos das demais leis, segundo as fórmulas desenvolvidas por Savigny: a interpretação sistemática, histórica, lógica e gramatical. A interpretação constitucional não fugiria a esses padrões hermenêuticos, não obstante a importância singular que lhe é reconhecida para a ordem jurídica.

Dessa forma, havendo, como está, o conflito aparente das normas, o Poder Judiciário, se provocado e não por mera liberalidade, deveria estar utilizando dos critérios técnicos de interpretação da norma jurídica, levando em consideração todo o sistema e não apenas o clamor social.

O desembargador Soares Levada1, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de forma centrada, disse que as "normas jurídicas devem ter interpretações teleológicas, finalísticas, e não literais, rígidas e inflexíveis. Para uma mera aplicação literal da lei nem é preciso formação em Direito, sendo bastante saber ler e escrever."

Por conseguinte, temos que as normas jurídicas devem buscar a sua interpretação e aplicação ao caso prático, através do seu fim, com a devida razoabilidade e proporcionalidade, principalmente quando temos a colisão entre dois ou mais princípios e normas constitucionais.

  • Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.

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1 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Órgão Especial. Mandado de Segurança Cível, Processo 2077099-17.2020.8.26.0000, proferido em 27 de abril de 2020.

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DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito Processual Constitucional. - 9. ed. - São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo. - 32.ed. Rev., atual.  e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2019.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. - 23. ed. - São  Paulo: Saraiva Educação, 2019.

MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo - 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2019.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro - 42ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo - 30ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. - 13. ed. rev. e atual. - São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. - 34. ed. - São Paulo : Atlas, 2018.

MOTTA, Fabrício. LINDB no Direito Público: lei 13.655/18/Fabrício Motta, Irene Patríca Nohara. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. - (Coleções soluções de direito administrativo: Leis comentadas. Série I: administração pública; volume 10 / Irene Patrícia Nohara, Fabrício Motta, Marcos Praxedes, coordenação)

NOHARA, Irene Patrícia. Manual de Direito Administrativo. - 10. ed. ver., atual. e ampl. - São Paulo: Altas, 2020.

SILVA, José Affonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1998.

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*Cesar Augustus Mazzoni é advogado e parecerista, pós-graduado em Direito Administrativo e Direito Empresarial pela rede de ensino LFG/Anhanguera. Docente em Direito Administrativo.

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