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Momento da fraude à execução praticada pelo sujeito atingido pela desconsideração: O STJ e o CPC

Embora sejam institutos diferentes, a desconsideração e a fraude à execução, têm em comum o fato de serem técnicas que protegem a responsabilidade patrimonial.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Atualizado às 10:34

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Temas muito técnicos não despertam muita atenção, senão por aqueles que lidam diretamente com o tema. Tentaremos quebrar este estigma com exemplos cotidianos para demonstrar que, embora bastante específica, a temática não é tão distante de nosso cotidiano.

Para entender a nossa exposição é preciso que estabeleçamos um alvo. Assim ficará ser mais fácil ser compreendido. O nosso alvo, sintetiza-se em resposta ao seguinte problema: se na ação condenatória movida pelo credor A contra o devedor (pessoa jurídica) B for deferida a desconsideração da personalidade atingindo o patrimônio do sócio C, qual o momento que este poderia alienar seus bens particulares sem ser considerado em fraude à execução?

Sem as descobertas feitas no final do epílogo, mas com desfechos inesperados típicos de Agatha Christie, antecipamos que a resposta dada pelo CPC é diferente da que foi dada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Segundo o CPC 792, §3º diz que "nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar".

Já o Superior Tribunal de Justiça entende que "a jurisprudência desta Corte Superior se firmou no sentido de que é necessário, para a configuração de fraude à execução, que corra contra o próprio devedor a demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, exigindo-se, para tanto, que o ato de disposição do bem seja posterior à citação válida do sócio devedor, quando redirecionada a execução originariamente ajuizada contra a pessoa jurídica". (AgInt no AREsp 1.402.956/SP, rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 02.09.19, DJe 17.09.19)

Para que sigamos uma das duas orientações é preciso compreender algumas premissas sobre o tema.

A primeira é que embora sejam institutos diferentes, a desconsideração e a fraude à execução, têm em comum o fato de serem técnicas que protegem a responsabilidade patrimonial.

A fraude à execução é o desfalque patrimonial praticado pela parte cujo patrimônio é responsável pela dívida inadimplida no curso de uma demanda que seria capaz de levá-lo a uma situação de insolvência frustrando a satisfação da futura execução. Observe que esse desfalque (oneração ou alienação) do patrimônio lesa não apenas o titular do crédito inadimplido, mas também a jurisdição porque frustra o resultado da demanda já instaurada. Se detectado no curso do processo este ato ardil, então ter-se-á o reconhecimento da ineficácia do tal ato fraudulento praticado pelo réu/executado em relação ao processo cujo propósito poderá ser impossível sem esse bem.

Por sua vez a desconsideração da personalidade é a consequência jurídica (sanção) que se impõe àquele que incide nos tipos previstos pelo direito material (consumidor, civil, fiscal, administrativo, ambiental, etc.); tipos estes que podem ser fruto de fruto de confusão patrimonial, má administração, fraude, etc. Por meio desta sanção (desconsideração) um terceiro que não integra a relação jurídica processual passa a ter, com a desconsideração da personalidade, o seu patrimônio sujeitável à execução. Logo, na desconsideração da personalidade há uma soma de patrimônios sujeitáveis ( o que já existia e o atingido) e não apenas um bem específico, a não ser que todo o patrimônio se resuma num único bem expropriável. Observe que o terceiro, atingido pela desconsideração, passa a integrar a relação jurídica processual como parte.

Por aí já se evidencia que ao desconsiderar a personalidade não se reconhece a ineficácia de uma alienação ou oneração de bem no curso do processo, mas sim se decreta uma situação jurídica nova para aquele terceiro que passa não só a integrar como parte a relação jurídica processual, mas também submete o seu patrimônio inteiro à responsabilidade executiva.

Não se confundem fraude à execução e superação (desconsideração) da personalidade. Nesta um terceiro passa a ser parte no processo e seu patrimônio sujeita-se à futura execução. Há, pois litisconsórcio passivo entre a pessoa desconsiderada e o atingido pela desconsideração. A execução poderá ser movida contra ambos e a desconsideração é a sanção jurídica aplicável para as mais variadas situações previstas pelo direito material como abuso de direito, má administração, confusão patrimonial, etc.

Já a fraude à execução é uma situação jurídica processual onde o réu ou executado aliena ou onera bem para desfalcar o patrimônio de forma que o processo em curso seja infrutífero. Nesta hipótese, o adquirente do bem em fraude à execução não integrará a relação jurídica processual executiva e tampouco seu patrimônio responderá pela execução. Ademais, a sanção jurídico-processual pelo reconhecimento da fraude e a ineficácia da alienação ou oneração, ou seja, a execução poderá incidir sobre o patrimônio do executado aí incluído o tal bem alienado em fraude. A fraude à execução não é espécie de desconsideração e nem a desconsideração é espécie de fraude.

São institutos diversos, embora se comuniquem pelo fato de que são técnicas protetoras da efetividade da execução por expropriação e da tutela de crédito. Uma restabelece o patrimônio alienado em fraude à execução sem acréscimo objetivo ou subjetivo da demanda; outra amplia objetivamente o patrimônio executável em razão de igual ampliação do polo subjetivo com a decretação da desconsideração da personalidade.

Feitas estas explicações passemos agora a responder ao problema-alvo da nossa exposição. O Código de Processo Civil conecta os institutos em dois artigos:

Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução

(...)

§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

Para entender a hipótese do artigo 137 do CPC tomemos de exemplo a seguinte situação: A promove ação condenatória contra B e no curso desta A requer instauração de incidente para que seja desconsiderada a personalidade de B e assim sujeitar o patrimônio de C à responsabilidade executiva.

Assim, se for decretada em favor de A a sanção de desconsideração da personalidade de B (pessoa jurídica) para que o patrimônio de C (sócio) também integre a responsabilidade patrimonial, então, aí entra o art. 137 e diz que toda alienação ou oneração de bens praticada por C havida em fraude à execução será ineficaz em relação a A.

O dispositivo parte da premissa de que C (sócio), sabendo que B (pessoa jurídica) foi citado e que possivelmente poderá ser atingido em eventual desconsideração que vier a ser instaurada, pode resolver desfalcar o seu patrimônio tornando inócua a sanção de desconsideração pois infrutífera será a futura execução. Nesta hipótese, frise-se, o que diz o texto é que se C, atingido pela desconsideração, tiver alienado ou onerado bens de seu patrimônio em alguma das hipóteses de fraude à execução, então essa alienação será ineficaz para A, caso em que o bem ou os bens que tenham sido formalmente desviados para um terceiro D, será atingido no limite da fraude cometida.

Já o artigo 792, §3º reforça exatamente o que se disse anteriormente, mas vai além. Tomemos de novo o exemplo acima. Se C foi atingido pela desconsideração na ação movida por A contra B, a alienação ou oneração em fraude à execução praticada por C conta-se a partir da data em que B foi citado e não a que ele C foi citado. Enfim, mesmo que a sanção constitutiva de desconsideração tenha se dado no curso do feito, para fins de fraude à execução, o legislador retroage o momento de sujeitabilidade do patrimônio de C não à data da sua citação, mas sim à mesma data em que B foi citado. Eis aqui a celeuma do problema, pois para o STJ a retroação da sujeitabilidade do patrimônio para fins de fraude à execução por C deve ser à data da sua citação.

Para o STJ, em outro julgado, mas na esteira do que foi citado alhures "somente com a superveniência da desconstituição da personalidade da pessoa jurídica é que o sócio da empresa foi erigido à condição de responsável pelo débito originário da empresa." Isto é, ao tempo da alienação do imóvel, o sócio da empresa, Dr. Julio Henrique, não era devedor e, nessa condição, tinha livre disposição sobre seus bens desembaraçados, sem que isso implicasse em fraude à atividade jurisdicional do Estado ou configurasse má-fé (AgRg no AREsp 607.603/RJ, 3ª Turma, DJe 26.03.15). Inviável, portanto, o reconhecimento de fraude à execução (REsp 1.391.830/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22.11.16, DJe 01.12.16).

O Superior Tribunal de Justiça estabelece como marco para início da contagem de eventual fraude à execução pelo atingido da desconsideração da data da sua citação. Se a desconsideração foi pleiteada na própria petição inicial ou em tutela provisória requerida em caráter antecedente não teremos problemas, mas se ela for requerida em momento posterior, em qualquer fase seguinte do processo como normalmente acaba sendo, aí sim surge o problema da distinção de datas em que o responsável originário e que o sujeito atingido pela desconsideração foram citados.

Argumentos não faltam para afastar a regra expressa do artigo 792, §3º que é claro como o sol ao estabelecer que a retroação dos efeitos para fins de fraude à execução do atingido pela desconsideração conta-se da data da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar. Pode-se dizer, por exemplo, que sendo pessoas diferentes (o réu original e o atingido) seria ilegal (privação indevida do seu patrimônio) que alguém fosse punido por um ato que praticou quando contra si não pendia nenhum processo e tampouco poderia imaginar que um dia - às vezes anos depois - poderia ser atingido pela desconsideração da personalidade jurídica. A sua ciência do risco só existiria quando tivesse sido citado, e não quando o réu original tenha sido citado. Poder-se-ia invocar a segurança jurídica para dizer que inúmeros terceiros que adquiriram bens deste sujeito ficariam à mercê de uma situação imprevisível, já que quando adquiriram o patrimônio o fizeram quando nenhuma restrição existia no bem, e nem contra o sujeito que o vendeu. De fato, são argumentos sérios e certamente foram levados em consideração pelo Superior Tribunal de Justiça.

Mas o que fazer diante da clareza do dispositivo citado acima? Ou, mais ainda, por que o dispositivo trouxe esta regra de retroação da verificação da fraude contra o sujeito atingido pela desconsideração?

As respostas a estas indagações podem ser extraídas do próprio STJ, especialmente vendo os julgados referentes apenas à desconsideração. Nele vamos encontrar, por exemplo, inúmeros casos de confusão patrimonial (art. 50 CCB) entre o réu original e o atingido pela desconsideração onde há de fato uma mistura entre ambos de forma que é verdadeiramente impossível estabelecer uma linha divisória entre onde um inicia e onde o outro termina. Além disso há casos em que, "coincidentemente", citado o réu original, aquele que poderia ser atingido futuramente, desfalca todo o patrimônio com atos de disposição suspeitos quanto ao preço ou quanto ao terceiro adquirente.

A opção do Código foi rígida, sem dúvida, talvez porque saiba que em muitos casos de desconsideração direta é muito difícil o sócio - ou a empresa no caso da inversa - não saber que corre demanda capaz de levar a insolvência, e, já sabendo desta insolvência, antecipe a uma eventual desconsideração para alienar o patrimônio em ato que no futuro seria talhado como de fraude à execução.

Não se tem a pretensão de dizer que o Superior Tribunal de Justiça julgou errado, de forma alguma, até porque, sem medo de errar, os citados Ministros Relatores são excepcionais julgadores, mas era preciso que enfrentasse o tema sob a perspectiva do texto expresso do CPC para rejeitar a sua aplicação diante das circunstâncias do caso concreto.

Somos partidários de que a regra (art. 792, §3º combinado com o art. 137) deve ser aplicada para a desconsideração direta e tomada como presunção que pode ser afastada diante de cenários e circunstâncias que envolvam o caso concreto o que pode ter ocorrido nos arestos citados. Contudo, se a regra jurídica passar a ser a exceção alguém duvida que os possíveis atingidos pela desconsideração irão desfalcar o patrimônio tão logo tenham conhecimento de que tramita contra o devedor originário ação capaz de reduzi-lo à insolvência?

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*Marcelo Abelha Rodrigues é pós-doutorando em Direito Processual Universidade de Lisboa. Doutor em Direito PUC-SP. Mestre em Direito PUC-SP. Professor da Graduação e Mestrado da UFES. Advogado e Consultor Jurídico do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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