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Considerações sobre relações locatícias empresariais em época de pandemia: Suspensões, rescisões e revisões

Alexandre Carneiro Gomes

São fatos públicos e notórios os problemas derivados da pandemia de covid-19.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Atualizado às 11:18

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São fatos públicos e notórios os problemas derivados da pandemia de covid-19. A existência de força maior pode ser comprovada pela declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca da existência de uma pandemia, pela promulgação da Lei nº 13.979/2020 declarando o coronavírus uma emergência de saúde pública de importância internacional, e pelo reconhecimento do Congresso Nacional através do decreto legislativo nº 6/20 quanto ao estado de calamidade pública no Brasil.

Sabe-se, ainda, que praticamente todos os Estados da Federação editaram decretos no mesmo sentido, e ainda regulamentando as atividades que podem funcionar.

Assim é que a pandemia atinge as operações da maioria das empresas a ponto de impossibilitar a continuidade, em definitivo, de matrizes e/ou filiais, e consequentemente a necessidade de desmobilização do ponto comercial, demissões.

 

A excepcionalidade da ocorrência e a gravidade de seus efeitos inibem argumentos relacionados à previsibilidade de tal risco. Ou seja, não há cabimento em afirmar que o vírus, seus efeitos relevantes, e a sua difusão na sociedade, são eventos "possíveis", razão pela qual caberia ao contratado/devedor arcar com todos os prejuízos.

O quanto aqui narrado possui base na teoria da imprevisão, onerosidade, força maior, ditadas no art. 37, XXI, da CRFB de 1988 e no Código Civil, artigos 317, 478, 479 e 480, que tratam ainda da função social, boa-fé objetiva, equivalência material, todos com base sólida assentada nos preceitos constitucionais da solidariedade e justiça social.

Ainda quando se cogite de omissão a respeito do assunto na lei de locações, lei 8.245/91, seu artigo 79 remete ao Código Civil o suprimento de eventuais lacunas.

A boa-fé exige a adoção de providências preventivas e mitigadoras de efeitos danosos em contratos como os de locação nesta crise. Deixar de enfrentar a magnitude dos reflexos da pandemia não seria juridicamente tolerável

Abrem-se então três repercussões diretas no contrato de locação comercial: rescisão, suspensão ou revisão.

Na hipótese de a crise redundar no fechamento definitivo da atividade ali instalada, com demissão dos funcionários, ainda que não baixado imediatamente o CNPJ, entendemos ser possível a rescisão antecipada da locação e devolução da posse do imóvel.

A multa contratual por rescisão e entrega antecipada do imóvel, no mesmo sentido, existe para incidir nas condições normais contratuais e econômicas, como penalização por o locatário não ter planejado corretamente sua atividade e sua liquidez, o que decididamente não é o caso presente.

Avisos prévios exagerados, de mais de 30 (trinta) dias, ainda no mesmo passo, são incompatíveis com a situação atual.

Por outro lado, não sendo o caso de fechamento em definitivo do estabelecimento, mas desde que a crise tenha trazido impactos imediatos e significativos ao faturamento, ou suspensão de atividades, é indicada a renegociação dos valores locatícios, a fim de reestabelecer o equilíbrio econômico financeiro.

O artigo 19 da Lei de Locações alberga a revisão de contratos para situá-los ao preço de mercado. Muito embora apenas preveja tal modificação após 03 (três) anos de contrato, é cediço que não contém a premissa do fato extraordinário e de força maior, que então atua na hipótese para permitir a revisão mesmo antes do prazo ali indicado.

Desse modo, de acordo com o impacto em cada estabelecimento, pode- se revisar cada contrato, chegando-se até à suspensão parcial do contrato em atividades cujo funcionamento esteja dentre aqueles proibidos pelas autoridades.

Vertente especial é o caso dos Shoppings Centers e Lojas em Aeroportos. Tais centros de compras, na grande maioria dos Estados, foram fechados integralmente, ou o funcionamento parcial permanece tão somente para ajuda alimentar de funcionários e tripulações, como é o caso de Aeroportos.

Estas circunstâncias chancelam a possibilidade de suspensão de cada contrato de locação, sem ônus, até o retorno ao funcionamento.

Ações com essas premissas acontecem pelo Brasil, dentre as quais o pedido cautelar em ação proposta por CARNEIRO GOMES, MACHADO E ALCOFORADO, em nome da Associação dos Concessionários Aeroportuários de Recife/PE, no sentido de suspender contratos e pagamentos após a decretação da calamidade pública: 

 

"A evolução e o desenvolvimento das relações de direito civil, diante das diversas mutações sociais e econômicas, conduz o interprete a uma nova concepção do contrato, onde ganha mais importância os seus efeitos na sociedade e as condições sociais e econômicas das pessoas nele envolvidas. No momento atual, deve-se respeitar muito mais a ideia de utilidade social dos contratos, decorrente do princípio da confiança e da boa-fé, do que as próprias regras impostos individualmente, em favor de uma ou outra parte. O Código Civil de 2002, traduzindo sua atual concepção de contrato, dispõe em seu art. 421 que a "liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". (...) Para fixar o conteúdo jurídico do contrato, reconstruindo o significado das declarações e o comportamento das partes, o intérprete não poderá deixar de prestar atenção aos fatos que envolveram a relação jurídica, baseada em sua função social. E nesse caso, o fato relevante para a atual interpretação das regras contratuais é a existência de uma crise sanitária e econômica, em face de uma Pandemia mundial, a qual não existia na base contratual quando de sua origem. (...) Com isso, é fácil reconhecer também que ocorreu uma enorme redução no número de voos domésticos e internacionais no Aeroporto do Recife, com consequente diminuição do número de pessoas circulando no aeroporto. Esse fato é incontroverso, e de ciência pública e notória. Agora, para entender a relação jurídica entre as partes faz-se necessário recordar um antigo conceito de Direito Comercial que diferencia o cliente do freguês. No caso, aqueles que procuram as lojas localizadas em Aeroportos e Rodoviárias são em regras considerados fregueses, uma vez que a procura ocorre em face da localização do estabelecimento, e não por sua qualificação em si. Com isso, a inexistência de freguesia nos aeroportos, em face da Pandemia, faz com que ocorra uma redução das vendas e da prestação de serviços, ocorrendo um desequilíbrio natural no contrato de locação, pois, a maior referência desse modelo de contrato é a valorização da localização, no caso o aeroporto, em face do natural grande fluxo de pessoas. Os estabelecimentos localizados em aeroportos permitem a atração do público consumidor, que se dirige para o local com interesse em realizar uma determinada atividade envolvendo o serviço aeroportuário. Contudo, com o quase fechamento por completo dos aeroportos, em face da enorme redução dos voos, e com a determinação de não aglomeração e distanciamento humano, a localização do aeroporto, como elemento objetivo do contrato de locação não está produzindo os seus efeitos. (...) Em face da natureza do contrato,   a   manutenção   do   fluxo   normal   de   fregueses,   os   quais, são necessários para a manutenção do equilíbrio econômico do contrato. Mas como o fluxo normal dos fregueses está comprometido pela Pandemia do Covid-19 e por normas públicas que impedem a circulação e aglomeração de pessoas, com o convite para a população permanecer em suas residências, o objeto do contrato e a referência de valor para a cobrança dos alugueis não vem sendo cumprida. (...) Nesse sentido, o valor do contrato de locação sofre interferência de causa alheia à vontade das partes. E o custo do produto sofre uma aumento desproporcional, pois, não consegue cumprir a finalidade a qual se prontificou. Destaco ainda, que os serviços e os produtos postos à venda pelos lojistas , diante da falta de procura, passam a ter um maior valor de  custo, pois, com a manutenção das despesas ordinárias com o estabelecimento e com os empregados, os produtos vendidos não serão suficientes para equilibrar as despesas. (...) Nesse mesmo sentido, é legitima a suspensão das atividades dos lojistas em seus estabelecimentos localizados  no aeroporto do Recife, em defesa da saúde pública da população e privada dos empregados. É possível, ainda, impedir a cobrança, o protesto e a negativação dos locatários, durante o período de crise econômica, pois, a mora não pode ser atribuída exclusivamente ao locatário, em face da existência de circunstância extraordinária, e o valor do aluguel durante esse período não será o justo para que somente uma das partes suporte o ônus da força maior. O valor do aluguel nesse período de pandemia, não obedece a fórmula pactuada quando do início da relação contratual, pois, há uma enorme onerosidade para uma das partes, em face da alteração das circunstâncias. Diante do exposto, resolvo deferir a tutela cautelar antecedente para determinar: 1- A possibilidade legal de suspensão das atividades comerciais de estabelecimento localizado no Aeroporto do Recife, durante a vigência do decreto de calamidade pública, como forma de proteção da saúde pública da população e privada dos empregados. 2- A obrigação de não fazer ao locador (Aeroportos do Nordeste do Brasil S/A(ANB)), para abster-se de cobrar, protestar ou negativar em quaisquer sistema de registro de dados, faturas vencidas após a decretação de calamidade pública, bem como suspender as cobranças a partir da referida data, até que as atividades normais de voos sejam restabelecidas. (JUIZ SILVIO ROMERO BELTRAO.  PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL 0018675-76.2020.8.17.2001. Seção B da 18ª Vara Cível da Capital.)

 Suspensões e revisões de contratos e pagamentos, registre-se, por fim, que serão objeto de novas revisões, consensuais ou judiciais, pós pandemia, a fim de trazer os valores locatícios para o "novo normal" de fluxo de clientes e faturamento de acordo com cada ramo de atividade.

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 *Alexandre Carneiro Gomes, sócio de Carneiro Gomes, Machado e Alcoforado Sociedade de Advogados.

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