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Ética e lealdade no processo arbitral

O fundamento constitucional da boa-fé decorre da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atualizado às 12:11

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Honrado pela oportunidade de contribuir para a prestigiosa Revista do Advogado em merecida homenagem ao advogado Walter Ceneviva, dedico algumas linhas à ética e à lealdade, que sempre exornaram a personalidade do ilustre e querido homenageado.

Comportamento dos protagonistas

A boa-fé objetiva, nos domínios do Direito Privado, consubstancia-se numa cláusula geral, que pressupõe um comportamento ético das partes contratantes, as quais têm o dever de lealdade, tanto na manifestação da vontade, ao ensejo do aperfeiçoamento do negócio jurídico, quanto na interpretação das cláusulas contratuais, durante a execução do contrato e até mesmo após o cumprimento das obrigações pactuadas. Concebida como um verdadeiro princípio, a boa-fé foi contemplada, em nosso ordenamento jurídico, no art. 422 do Código Civil, com a seguinte redação: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

A aferição da boa-fé decorre da interpretação do padrão de conduta normalmente exigível dos sujeitos e dos efeitos jurídicos que razoavelmente deveriam ser esperados pelos contratantes. A resposta a essas duas indagações estabelecerá o conteúdo objetivo do negócio jurídico, ao qual estarão vinculadas as partes.

A teoria da boa-fé objetiva encerra um formidável instrumento de hermenêutica jurídica para detectar eventual abusividade das cláusulas contratuais expressas ou para reconhecer a inaplicabilidade parcial dos efeitos do negócio jurídico, ou ainda para proceder à interpretação integrativa da declaração de vontade, sempre que seja preciso restabelecer o equilíbrio contratual.

Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas "Normas Fundamentais do Processo Civil", constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil (CPC) em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabeleceu, no art. 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a atuação, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da justiça (serventuários, peritos, intérpretes, etc.).

O fundamento constitucional da boa-fé decorre da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do due process of law.

A jurisprudência dos nossos tribunais tem se baseado no princípio da boa-fé processual como critério válido para rechaçar a invocação maliciosa das normas processuais e o comportamento inadequado de uma parte, em detrimento do direito à efetividade da tutela jurisdicional do outro litigante. Isso tudo encontra campo fértil no âmbito do processo arbitral, no qual, com maior razão, a atitude leal e proba das partes deve estar presente desde o requerimento de instauração da arbitragem até a decisão final a ser proferida na respectiva demanda. Não se trata, como é cediço, de transplantar pura e simplesmente a referida norma do CPC para a arbitragem, mas, sim, de reafirmar a interação que deve existir - quando compatível e coerente - num mesmo ordenamento jurídico, entre diferentes sistemas processuais.

Note-se que a boa-fé processual se desdobra nos deveres de veracidade, de transparência e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos arts. 77 e 142 do CPC de 2015. O descumprimento destes deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas nos arts. 77, 80, 81, 100, parágrafo único, 334, § 8º, 536, § 3º, e 702, §§ 10 e 11.

Nada obsta, à evidência, que estas regras materiais sejam aplicadas pelos árbitros no processo arbitral, visando a reprimir a conduta temerária do litigante, como bem frisado por Hermes Marcelo Huck, em original ensaio intitulado "As táticas de guerrilha na arbitragem"1, ao asseverar que:

"há práticas processuais de guerrilha que extrapolam os limites e podem ser consideradas litigância de má-fé. A tática primeira do guerrilheiro arbitral é fugir do processo. Tão logo notificado do requerimento de arbitragem ou se queda silente ou encaminha a petição à Câmara argumentando sobre o descabimento da arbitragem. São os brados de inarbitrabilidade objetiva ou subjetiva que primeiro são ouvidos pelas Câmaras. A lei oferece instrumentos para superar tais chicanas, porém a inafastável consequência dessas práticas - por mais infundadas que sejam - implicam o retardamento do início do processo. Não raro, a parte fugitiva, esgotadas as manobras diversionistas, acaba por surgir no dia da audiência para assinatura do termo, reiterando protestos e clamando ameaças de nulidade. Essa é apenas a tática inicial, pois outras tantas podem surgir, na sequência. Recusar-se ao pagamento das taxas administrativas e honorários de árbitro, mesmo com recursos para arcar com tais despesas, é comportamento pouco original. Essa recusa retarda o andamento do processo, além de transferir para a parte contrária o ônus financeiro da disputa. É incidente que pode desincentivar o seguimento da arbitragem ou mesmo decretar sua morte. Da mesma forma, e com certa frequência, nota-se o comportamento de guerrilha no momento da discussão do termo. O guerrilheiro faz exigências descabidas, convencido de que a parte contrária não as aceitará... Cabe também mencionar o velho estratagema de retardar o processo apresentando impugnações frívolas ao nome do árbitro indicado pela parte contrária ou ao presidente do tribunal. Casos há em que o guerrilheiro apresenta impugnação ao próprio árbitro por ele nomeado. Não raro, para postergar a formação do tribunal, a parte chicaneira submete questionários despropositados a serem respondidos pelos árbitros já indicados, e, quando não, levanta exigências solicitando revelações descabidas, que resultam em impugnações igualmente descabidas. A literatura arbitral é prolífica em tratar casos dessa estirpe que, ao final, são resolvidos - mas não raro -, implicam renúncias desnecessárias e significativo atraso no curso do processo" (HUCK, 2017, p. 312).

Permito-me aduzir a situação na qual a parte que perdeu ingressa com sucessivos e impertinentes pedidos de esclarecimentos, tentando "plantar" nulidade na sentença, além de baixar o nível, de forma absolutamente grosseira, em relação aos árbitros.

Expedientes dessa natureza devem ser reprimidos, com veemência, pelo tribunal arbitral, sendo de todo recomendável a imediata imposição à parte que abusa do processo desde advertência até sanção pecuniária, a evitar posteriores tentativas de procrastinação indevida do processo.

Bem é de ver que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) encontra-se atento a essa espécie de conduta, como se infere do julgamento pela Corte Especial da Sentença Estrangeira Contestada nº 3.709, da relatoria do saudoso ministro Teori Albino Zavascki, ao decidir que:

"a requerida ingressou no procedimento arbitral vislumbrando a possibilidade de dele auferir vantagens e assumiu, em contrapartida, de forma clara e consciente, os riscos decorrentes de eventual sentença em sentido contrário às suas pretensões, não podendo, ao não obter êxito em seu intento, alegar nulidade do compromisso arbitral, ferindo o postulado universal da boa-fé objetiva".

Acrescente-se, por outro lado, que a legislação processual em vigor também exige comportamento ético e diáfano do órgão judicante, coibindo-o, por exemplo, de proferir "decisão-surpresa" (art. 9º). A conduta leal do julgador em relação aos litigantes vem, outrossim, expressa na preciosa regra do parágrafo único do art. 932, que confere prazo à parte para corrigir vício formal do processo.

Significativo precedente do Supremo Tribunal Federal bem destaca que:

"O formalismo desmesurado ignora, ainda, a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz" (1ª Turma, ED no ARE nº 674.231-RS, Rel. Min. Luiz Fux, v.u., j. 27/8/2013).

Os arts. 322, § 2º, e 489, § 3º, do CPC, dispõem, respectivamente, que a interpretação do pedido e da decisão judicial deve ser governada pela boa-fé.

De ressaltar-se, a propósito, que tanto o juiz quanto as partes não podem, sem motivo justificado, dar causa ao adiamento da realização de atos processuais, sob pena de responder, por força do disposto no art. 362, § 3º, do CPC, pelas custas de retardamento.

A experiência tem demonstrado, nesse particular, que, geralmente, os árbitros organizam e gerenciam o processo de modo muito mais profícuo do que ocorre na esfera do Poder Judiciário. Esse importante fator não apenas atende ao princípio da duração razoável do processo arbitral, como também enaltece a lealdade e o diálogo que normalmente caracterizam o inter-relacionamento do tribunal arbitral e das partes.

Embora possa haver situações excepcionais, não seria arriscado afirmar que, no terreno da arbitragem, o alto nível dos advogados das partes e o reconhecido preparo dos árbitros permitem que a realização dos atos do procedimento arbitral atinja realmente o fim colimado por todos os integrantes do respectivo processo.

Vale ainda salientar que esse esperado liame cooperativo entre os protagonistas do processo arbitral, individualizado pelo comportamento ético e revestido de boa-fé, a um só tempo, minimiza o grau de tensão entre os litigantes e, sobretudo, direciona o processo, tanto quanto possível, para uma decisão rápida e justa!

Dever de revelação

Considerando o caráter preponderantemente consensual da arbitragem, verifica-se que, durante o procedimento de escolha dos árbitros, têm estes o dever de declinar absoluta isenção ao assumir o encargo para atuar de forma independente e imparcial. É esse o momento no qual os árbitros indicados têm também o dever de revelar qualquer relação, mínima que seja, com uma das partes. A inobservância do dever de revelação já evidencia inaptidão para o exercício legítimo da função de árbitro.

A rigor, é exatamente o que ocorre na esfera do processo estatal, no qual o juiz deve, de logo, afastar-se de um determinado caso se tiver alguma espécie de relacionamento que possa comprometer a sua imparcialidade e independência.

Com efeito, dispõe o art. 146 do CPC que o próprio juiz pode reconhecer a sua suspeição, remetendo os autos ao seu substituto legal. Dúvida não há de que o juiz que descumpre esse mister afasta-se da postura de impessoalidade, isto é, do dever de revelar aspecto crucial que caracteriza a pedra angular da imparcialidade.

O art. 14 da Lei de Arbitragem, nesse particular, faz expressa remissão ao CPC, aplicando aos árbitros os mesmos motivos de impedimento e de suspeição, previstos respectivamente nos arts. 144 e 145.

Assim, nos domínios da arbitragem, exige-se a imparcialidade e a independência dos árbitros como pressuposto de validade do respectivo processo.

Daí por que o § 1º do aludido art. 14 dispõe que:

"As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência".

Esse conhecido critério da "dúvida justificada", adotado pelo texto legal pátrio, segundo ensina Gary Born, deve ser analisado de forma objetiva, ou seja, "qualquer objeção em relação à imparcialidade ou independência do juiz deve fundamentar-se em provas suficientes a afastar o árbitro" (BORN, 2009, p. 1.477-1.478).

O art. 148, inciso II, do vigente CPC, estende os motivos de impedimento e de suspeição aos auxiliares de justiça, incluindo-se aí, por certo, o perito nomeado pelo juiz.

Ora, isso significa que o perito de confiança indicado pelo tribunal arbitral está igualmente adstrito ao dever de revelação, impondo-se-lhe, no momento de assinar o termo de independência, a obrigação de declinar todas as circunstâncias que possam, de uma forma ou de outra, evidenciar relacionamento próximo com uma das partes.

Eventual omissão injustificada do perito é fatal a comprometer a isenção que se espera de seu trabalho técnico.

O dever de revelação, exigido pelo art. 14 da lei 9.307/1996, consiste na consagração material da obrigação moral de independência do árbitro e, igualmente - permito-me acrescentar - do perito.

E, assim, por esta importante razão, presta-se como parâmetro de avaliação da independência e da imparcialidade do árbitro e do perito. Espera-se que a função a ser desempenhada pelo perito - exorta Sundra Rajoo (2017, p. 459) - seja conduzida pela imparcialidade, para instruir os árbitros nos limites de sua especialidade. Desobedecido o dever de revelação pelo perito, prejudicado estará o valor intrínseco do trabalho técnico por ele apresentado.

Há fatos - salienta Paulo Henrique dos Santos Lucon (2013, p. 672) - que podem parecer irrelevantes para o caso concreto, causando certo desconforto ético ao perito, mas que necessariamente devem ser revelados, para que sua atuação não caia em total descrédito.

Desse modo, "o profissional nomeado para colaborar com a justiça deve mostrar-se tão isento em relação aos litigantes como o próprio julgador, sob pena de comprometer gravemente o devido processo legal"2.

E isso porque o dever de revelação está intrinsecamente ligado ao dever de transparência, de modo que, se houver alguma comprovação de relação entre o perito e uma das partes, que possa, ainda que em tese, afetar a independência de sua atuação, a arbitragem estará objetivamente viciada, salvo se aquele auxiliar da justiça for incontinenti afastado do respectivo processo arbitral.

Conclui-se que o perito de confiança que se omite em revelar circunstância que deveria ter informado às partes e aos julgadores já suscita inexorável suspeita sobre a sua isenção, equidistância e autonomia funcional, pois a inobservância do dever de revelação por si já é motivo mais do que suficiente para levantar "dúvida razoável" sobre o comportamento independente do perito.

Resulta, pois, que a desobediência ao dever de revelação implica inarredável nulidade da sentença arbitral!

A demonstrar que o atual posicionamento de nossas Cortes de Justiça é sensível a essa questão, invoco, e.g., precedente da 3ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.433.098-GO, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual restou acolhida a exceção de suspeição do perito à vista de seu manifesto interesse no resultado do processo em que fora nomeado, in verbis:

"[...] estou convencido de que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, a exceção apresentada revela a existência de fato concreto e objetivo a evidenciar a parcialidade ou interesse do perito no julgamento da causa, consubstanciado na existência de ação em que ele demanda contra o mesmo banco [...]".

Em senso análogo, o mesmo órgão fracionário do STJ proveu o Recurso Especial nº 1.135.150-RS, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, ao considerar o estreito relacionamento entre a parte e o perito, lastreando-se no seguinte fundamento:

"A reconhecida suspeição do perito que trabalhou no processo, por sua íntima relação com o hospital-réu declarada no processo, obriga a repetição da perícia. Forte nessas razões, reconhecendo a violação da lei processual e tendo em vista a imprescindibilidade da perícia urológica cujo conteúdo foi comprometido pela suspeição do médico que nela atuou, determino a reforma do acórdão recorrido, com a anulação da sentença anteriormente prolatada e a realização de novo laudo pericial, aproveitando-se todos os demais atos praticados no processo, na esteira do devido processo legal".

À luz de todas estas premissas e considerações, dúvida não há de que a sentença arbitral se descortina viciada quando baseada em prova técnica elaborada por perito que desprezou o dever de revelar motivo ensejador de suspeição para atuar no processo arbitral. E, nesse caso, a violação do devido processo legal, em particular, dos princípios da imparcialidade e da igualdade de tratamento das partes, constitui fundamento para o ajuizamento de ação anulatória da sentença arbitral, com arrimo no art. 32, inciso VIII, c.c. art. 21, § 2º, ambos da lei 9.307/1996.

Bibliografia

BORN, Gary. International Commercial Arbitration. v. 1. Kluwer Law International, 2009.

HUCK, Hermes Marcelo. As táticas de guerrilha na arbitragem. In: CARMONA, Carlos Alberto; LEMES, Selma Ferreira; MARTINS, Pedro Batista. 20 anos da lei de arbitragem. São Paulo: Gen-Atlas, 2017.

LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Imparcialidade do árbitro e do juiz na teoria geral do processo. In: ZUFELATO,

Camilo; YARSHELL, Flávio Luiz. 40 anos da teoria geral do processo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Malheiros, 2013.

RAJOO, Sundra. Law, Practice and Procedure of Arbitration. 2. ed. Malaysia: LexisNexis, 2017.

__________

1 Publicado na coletânea 20 anos da lei de arbitragem (2017).

2 Cf. Carlos Alberto Carmona, parecer inédito.

__________

tO artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

 

 

 

  

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*José Rogério Cruz e Tucci é professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP. Advogado. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

 

 

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