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O CNJ e a recomendação 63/2020: diálogos com a independência da magistratura

O CNJ, como qualquer órgão ou entidade, é suscetível a acertos e erros.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Atualizado às 08:12

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O controle externo do Poder Judiciário é tema sempre atual e, no Brasil, vem sendo discutido pelo menos desde a EC 45, de 2004, que alterou a Constituição Federal para instituir o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

As relações de freios e contrapesos entre os Poderes são essenciais para a manutenção de um Estado Democrático de Direito. A bibliografia sobre o assunto poderia ocupar bibliotecas imensas, desde os clássicos de Montesquieu e os artigos d'O Federalista até Karl Loewenstein. Mas se é necessário existir um mecanismo de freios e contrapesos é porque cada esfera de Poder (e seus agentes) deve ter independência e autonomia para atuar na consecução de seus escopos. O checks and balances serve para impedir os exageros, as arbitrariedades, promover orientações, sem se imiscuir nas minúcias da atuação de cada agente administrativo. A vontade do controlador não pode substituir a do controlado.

O episódio que queremos comentar nestas linhas envolve a interferência do CNJ na atuação dos juízes nestes tempos da pandemia covid-19, desconsiderando as peculiaridades de cada Estado, de cada caso concreto e de suas repercussões econômicas e sociais.

Ao longo da pandemia, o CNJ vem editando alguns atos administrativos - normativos ou não - para disciplinar o funcionamento do Judiciário no período de crise. A principal certamente é a res. CNJ 313/2020, que, com toda a propriedade, suspendeu os prazos processuais por mais de um mês e instaurou o Regime de Plantão Extraordinário no país inteiro.

E editou a controversa recomendação 63/2020 que "Recomenda aos juízes com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência a adoção de medidas para a mitigação do impacto decorrente das medidas de combate à contaminação pelo novo corona-vírus causador da covid-19". Em apertada síntese, o CNJ sugere que a pandemia configura hipótese de caso fortuito e força maior em benefício de devedores que se encontram em recuperação judicial.

Sob a roupagem de "recomendação", essa manifestação do CNJ, na prática, representa mais do que uma jurisprudência propriamente dita. Por exercer função correicional de todos os magistrados brasileiros, sua "recomendação" tende a ser replicada tanto quanto um precedente judicial e de forma independente da análise de circunstâncias casuísticas.

Dito isso, com razão se mostra a decisão do último dia 14, da pena do des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, no sentido de que "constitucionalmente, não compete ao Colendo Conselho Nacional de Justiça imiscuir-se na atividade jurisdicional, privativa do Poder Judiciário". (TJSP - AI 2089216-40.2020.8.26.0000).

Conclusão idêntica também foi alcançada em decisão de primeiro grau, que declarou a recomendação inconstitucional. A crítica feita pelo magistrado é contundente: "No direito, não há uma adesão absoluta e geral de toda a comunidade jurídica quanto à melhor aplicação da lei para a solução de determinado conflito, sendo uma constante a existência de pontos de vista contrários e respeitáveis". (proc. 0038328-39.2013.8.26.0100 - fls. 4499/4505)

Vale lembrar: há um Grupo de Trabalho (GT), instituído pelo próprio CNJ com a portaria 162/2018, relacionado às falências e recuperações judiciais de empresas. Este GT tem entre suas atribuições realizar estudos, audiências públicas, criar bancos de dados e, enfim, apresentar propostas destinadas ao aperfeiçoamento das atividades do Poder Judiciário - sempre com a colaboração dos diversos tribunais da Federação. Mas há um limite entre sugestões aparentemente inocentes para o aperfeiçoamento da justiça e a interferência nos órgãos jurisdicionais, na medida em que o estudo estatístico de um banco de dados se faz fundamental para a implementação de medidas mais incisivas na vida dos sujeitos do processo. Reside aí, justamente, a independência dos magistrados.

Proporcionar um ambiente de independência e autonomia à magistratura possui uma evidente função pedagógica, que deve ser estimulada para a construção de um Judiciário cada vez mais eficiente. A perspectiva de um cargo público dotado de prerrogativas constitucionais que permitam ao agente atuar de acordo com suas convicções e, nesse desiderato, efetivamente "fazer algo pelo mundo", é um dos nobres motivos pelos quais muitos estudantes de direito decidem por se debruçar nos livros e estudar para o concurso da magistratura.

Sem entrar no debate sobre ativismo judicial, é seguro afirmar que não se pode defender a existência de um juiz-robô, bouche de la loi. Há casos em que o juiz precisa atuar na implementação de políticas públicas, conceber uma solução original para assegurar a prestação de uma tutela jurisdicional efetiva, ou mesmo atuar de acordo com o que entende ser mais adequado, inclusive sob uma perspectiva institucional.

O CNJ, como qualquer órgão ou entidade, é suscetível a acertos e erros. A recomendação 63/2020, a despeito da boa intenção de seus Conselheiros, repercute diretamente na atuação dos Juízes, cuja independência estabelecida pela ordem jurídica deve ser preservada de forma a garantir o cumprimento do próprio Estado de Direito.

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*Ronaldo Vasconcelos é advogado e professor universitário.

*Gabriel de Orleans e Bragança é advogado do escritório Lobo de Rizzo Advogados.

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