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O fim do voto de qualidade e a paridade no CARF

O processo administrativo é o exercício da prerrogativa da autotutela pelo Poder Público a partir de provocação do particular. A prerrogativa da autotutela é a que atribui o poder/dever de rever seus próprios atos à Administração Pública.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Atualizado em 26 de maio de 2020 11:57

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A lei 13.988/20 extinguiu o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), retomando, dessa forma, o debate público sobre a legalidade e a constitucionalidade do instrumento aplicado nos casos de empate durante os julgamentos do Conselho Administrativo. Já foram, inclusive, ajuizadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.399 ,6.403 e 6.415.

Além de ser um órgão técnico, o Conselho Administrativo é reconhecido por ser um órgão paritário, cujas turmas são compostas, em partes iguais, por representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes. Tal previsão decorre do artigo 25, caput, do Decreto 70.235/72 com redação dada pela lei 11.941/09. Entretanto, nas hipóteses de empate, a paridade das turmas julgadoras era desequilibrada já que o Presidente da turma votava duas vezes: por meio do voto ordinário e do voto de qualidade.

Em um órgão julgador composto por um número par de membros votantes, é necessário que seja definido algum critério para as hipóteses de empate. O Supremo Tribunal Federal (STF), formado por um número ímpar de Ministros, atribui o voto de qualidade ao Presidente nas decisões do Plenário em que o empate decorra de ausência de Ministro por i) impedimento ou suspeição; ou ii) vaga ou licença médica superior a 30 (trinta) dias nos casos em que a matéria votada é urgente e não é possível a convocação do Ministro licenciado (artigo 13, IX, do Regimento Interno do STF). A composição de número ímpar que impediria o empate, com a ausência de Ministro nas hipóteses destacadas, torna-se necessária uma solução que resolva eventual impasse no plenário.

Entretanto, o STF não é órgão paritário e seus Ministros não são divididos entre representantes de classes. São todos juristas nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. E aqui coloca-se o núcleo do problema do voto de qualidade no CARF: o conceito de que é composto de bancadas.

De um lado ou de outro, a lógica do sistema tributário brasileiro é baseado no sistema de oposição: contribuintes vs. Administração tributária. Portanto, o fato de que os Presidentes das turmas são sempre conselheiros representantes da Fazenda Nacional na forma do artigo 25, §9º, do Decreto n.º 70.235/1972, fazia surgir  a preocupação nos contribuintes com a imparcialidade desses julgamentos, inclusive, com a judicialização quase que permanente das controvérsias para buscar a invalidação das decisões tomadas com base no voto de qualidade pelo Poder Judiciário. Aliás, a própria administração tributária exacerbou esse conceito quanto, mediante o Parecer PGFN/CRJ 1087/2004, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional adotou a Portaria 820/2004 (posteriormente suspensa) que admitia a possibilidade de que fossem ajuizadas ações judiciais contra as decisões do CARF (à época Conselho dos Contribuintes) que, no entendimento da própria PGFN, fossem matéria temática relevante e gerassem grave lesão ao patrimônio público.

A configuração do "nós contra eles" tem tomado uma dimensão catastrófica para o Estado e a sociedade brasileira. O relatório Justiça em Números produzido pelo Conselho Nacional de Justiça apontou que, em 2019, tramitavam 31 milhões de execuções fiscais no Poder Judiciário, o que corresponde à 39% dos 78 milhões de processos judiciais que tramitam no Brasil. Se considerarmos também os demais processos que tem por objeto matéria tributária este volume alcançaria facilmente a marca de 50% dos processos que tramitam no Poder Judiciário.

Em abril de 2018, o próprio Conselho Administrativo mostrou-se preocupado com o volume deste  de ações judiciais e da repercussão quanto ao voto de qualidade ao divulgar nota de esclarecimento na qual afirmou que 1.199 dos 21.758 acórdãos/julgamentos realizados nos anos de 2016 e 2017 foram decididos por voto de qualidade a favor da Fazenda Nacional, o que representaria 5,5% do total. Nesta oportunidade, o Conselho Administrativo não divulgou o percentual de casos decididos a favor dos contribuintes com base no voto de qualidade, nem qualificou este percentual a partir dos temas e valores envolvidos. Todavia, a ausência de uma análise mais detalhada do uso do voto de qualidade no Conselho Administrativo qualquer consideração sobre o tema não deixará de ser uma mera generalidade a seu usada no embate do "nós contra eles".

Para colaborar de forma mais sistemática como este debate e no esforço de trazer dados ao debate público, o Núcleo de Tributação do Centro de Regulação e Democracia do Insper divulgou recentemente relatório com a análise de recorrência dos votos de qualidade no CARF, preparado por Breno Ferreira Martins Vasconcelos e Maria Raphaela Dadona Matthiensen.

De acordo com o referido Relatório, considerando o total de recursos voluntários, especiais e de ofício julgados com base no voto de qualidade, entre o período de janeiro de 2017 a maio de 2019, 76,61% foram favoráveis à Fazenda Pública e 23,39% favoráveis aos contribuintes. Se considerarmos os valores envolvidos a Fazenda Pública obteve como resultado favorável em decorrência do voto de qualidade 196 bilhões de reais em contrapartida dos contribuintes que tiveram como resultado 51 bilhões de reais.

A concessão de direito ao voto de qualidade, em um sistema de antagonismo permanente, acaba assim por constituir-se em torno da busca de resultados, desfocando a função estabilizadora e redutora de litígios da jurisprudência, A concessão do voto de qualidade, necessariamente a um representante da Fazenda Nacional em um órgão que, por lei, deve ser paritário, acaba, assim, por fortalecer o antagonismo e a busca de resultados, violando o próprio  princípio republicano  da imparcialidade e do julgador independente. Evidentemente, a transferência do peso da balança para a posição do contribuinte não resolve este problema, mas certamente traz uma luz nova e, eventualmente, retirar o CARF da clausura em que foi colocado e, assim, evoluir para ser um Tribunal Administrativo que seja capaz de realizar a sua principal função: aplicar a lei sem buscar um lado.

Em última análise, o processo administrativo é o exercício da prerrogativa da autotutela pelo Poder Público a partir de provocação do particular. A prerrogativa da autotutela é a que atribui o poder/dever de rever seus próprios atos à Administração Pública. A autotutela é um dos instrumentos dado ao Estado para evitar o próprio arbítrio que contradiz a Justiça e o equilíbrio das decisões administrativas. Se, ao fim do processo administrativo tributário, a Administração Pública, representada por seus conselheiros votantes, está dividida quanto ao lançamento tributário, estaria fulminado o requisito de certeza essencial a uma imposição tributária no Estado de Direito. Desse modo, parece razoável a aplicação do princípio do in dubio pro contribuinte promovida pela lei 13.988/20.

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*Luís Inácio Adams  é sócio das práticas de Contencioso, Arbitragem e Compliance do Tauil & Chequer Advogados. No escritório de Brasília, ele é responsável por assuntos relacionados aos Tribunais Superiores e Supremo. Adams tem uma vasta experiência tributária, trabalhando como advogado do Tesouro Federal no Ministério das Finanças por 24 anos, de 1993 até sua solicitação de demissão em 2017.

*Rachel Delvecchio é associada na prática tributária de Tauil & Chequer Advogados em associação com Mayer Brown no escritório do Rio de Janeiro. Rachel trabalha com direito tributário desde 2011 e concentra sua prática em litígios e planejamento tributário, impostos diretos (imposto de renda corporativo), contribuições para a previdência social, questões de desembaraço aduaneiro e cumprimento de obrigações acessórias federais.

 

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