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As medidas executivas atípicas e a partilha de valores constituídos em empresas offshore

Em caso de partilha de bens integralizados em empresa offshore, ao invés de buscar a lenta e ineficaz via da carta rogatória, há outras ferramentas à disposição do cônjuge hipossuficiente que permitem de certa forma forçar o detentor do patrimônio rumo ao cumprimento da obrigação.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Atualizado às 10:39

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Tem sido cada vez mais comum, em casais com elevada renda, que o cônjuge que administra o patrimônio, ao perceber que a relação se encontra na iminência de um fim, passe a enviar valores para o exterior, constituindo empresas offshore de modo a "ocultar" valores da partilha do cônjuge, por assim dizer, hipossuficiente. Trata-se de típica conduta fraudulenta já que, sob aparência de legalidade, busca indevido proveito contra o legítimo interesse do outro cônjuge. Vale destacar, inicialmente, que cada caso possui sua particularidade, sendo necessário analisar não apenas o regime matrimonial, mas a situação patrimonial do casal.

Por evidente, buscar o dinheiro do exterior pelas vias tradicionais é uma solução que apresenta diversos problemas: além de custosa, a medida esbarra no grande tempo necessário para ser concretizada. Primeiramente, deve-se demonstrar cabalmente os valores presentes no exterior (o que poderia ser feito tanto através da quebra de sigilo fiscal quanto por meio de informações de remessa do Banco Central), para em seguida buscar um provimento jurisdicional no Brasil. Somente após, mediante o envio de uma carta rogatória, cujo cumprimento passa pelo STJ, pelo Ministério da Justiça e ainda encontra óbices burocráticos conforme o país deprecado tenha ou não acordo de cooperação com o Brasil, é que seria possível executar eventual bloqueio de bens. Por evidente, nesse meio tempo seria perfeitamente possível que o cônjuge de má-fé movimente o dinheiro, mude-o de país ou adquira bens no exterior em nome de terceiros, tornando praticamente impossível o rastreamento dos valores.

Entretanto, o cônjuge prejudicado possui diversas alternativas processuais à sua disposição, hábeis a dissuadir ou pressionar o cônjuge que detém o controle do patrimônio a proceder à partilha ou mesmo entabular um acordo, que economizaria tempo e dinheiro de ambas as partes.

Em um caso concreto que enfrentamos em nosso escritório, apesar do patrimônio em dinheiro do casal estar inteiramente aplicado em uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, havia diversos imóveis alugados no Brasil, cujos proventos eram partilhados em igual proporção entre os ex-cônjuges. Demonstrada essa situação, foi deferida tutela de urgência incidental para que a metade dos alugueres que seria destinada ao cônjuge detentor do controle patrimonial fosse depositada em conta judicial, até o limite da meação sobre a integralidade do patrimônio, para posterior levantamento do cônjuge hipossuficiente.

Após tal medida, vendo-se repentinamente subtraído de sua principal fonte de renda, o cônjuge que detinha o controle patrimonial viu-se obrigado a firmar acordo, que acabou sendo benéfico para ambas as partes. Se, de um lado, o meeiro hipossuficiente não obteve acesso à integralidade do valor a que faria jus, de outro, evitou uma busca patrimonial que poderia se mostrar extremamente custosa e, ao final, até mesmo inócua.

Contudo, há ainda outras alternativas, denominadas "medidas executivas atípicas". O art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, prevê que "O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe (...) determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária". Isso significa que, superadas as tentativas convencionais de busca patrimonial do "devedor", é possível pleitear medidas que induzam a parte ao cumprimento da obrigação. Além disso, nos termos do art. 782, § 3º, do CPC de 2015, nada impede que o nome do devedor seja incluso nos cadastros de proteção ao crédito (SERASA).

As principais atitudes nesse sentido tem sido a suspensão da carteira de motorista e de cartões de créditos, além da retenção do passaporte do devedor. É importante ponderar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já assentou entendimento no sentido de sua plena possibilidade, contanto que as medidas executivas e coercitivas típicas tenham sido intentadas previamente, como a busca de valores em conta corrente via Bacenjud e o bloqueio de veículos via Renajud, a fim de assegurar a proporcionalidade e razoabilidade das medidas, nos termos da decisão paradigmática da ministra Nancy Andrighi (REsp 1.788.950/MT, DJe 26.04.19).

Para além disso, sendo a conduta praticada contra a mulher, configura-se violência patrimonial nos termos do que estabelece o art. 7º, inc. IV1 da Lei Maria da Penha, estando o "devedor" sujeito às penalidades nela previstas.

O cônjuge devedor, privado da possibilidade de realizar viagens internacionais, de seus cartões de crédito e/ou de sua carteira de motorista e, ainda, se homem, sujeito às penalidades da Lei Maria da Penha, acaba não vendo qualquer alternativa a não ser solucionar as consequências causadas por essa(s) privação(ões),o que justifica a adoção de tais práticas.

Portanto, em caso de partilha de bens integralizados em empresa offshore, ao invés de buscar a lenta e ineficaz via da carta rogatória, há outras ferramentas à disposição do cônjuge hipossuficiente que permitem de certa forma forçar o detentor do patrimônio rumo ao cumprimento da obrigação ou mesmo a um acordo, benéfico para ambas as partes. O próprio STJ já firmou entendimento recente permitindo a suspensão da CNH e retenção do passaporte, sem que se verifique qualquer ofensa ao direito constitucional de ir e vir - cremos que a demonstração de patrimônio expropriável no exterior, aliado à dificuldade de acesso e preexistência de outras medidas prévias (como a tentativa de bloqueio de valores e veículos) justificaria perfeitamente a adoção de medidas mais drásticas.

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1 "a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades".

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*Guilherme Alberge Reis é advogado mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Bacharel em Direito e Relações Internacionais pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito Processual Civil e Direito Empresarial. Secretário da Comissão de Juizados Especiais da OAB/PR. Sócio do escritório Reis & Alberge Advogados.

*Priscilla Barbiero é advogada e professora especialista em Direito de Família pela PUC/PR. Membro coordenador da Comissão de Direito de Família da OAB/PR. Membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família.

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