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Falando na latinha

Paulo Sérgio Cornacchioni

Em toda a estrada, não importa qual a fronteira e malgrado minhas limitações - inatas e adquiridas -, a todas as incitações jurídicas pude responder, pelo menos com alguma razoabilidade, graças a lições sublimes como aquelas que nos ministrava o querido mestre Walter Ceneviva.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Atualizado às 10:40

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Por aqueles dias o então senador Tancredo Neves liderava o lançamento do Partido Popular, enquanto Barbosa Lima Sobrinho fazia eloquente defesa de eleições diretas gerais e a CNBB mobilizava-se em prol de uma reforma agrária.

Lá pelas Perdizes paulistanas, o cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns fazia eco à conferência nacional de bispos e afirmava a inexistência de solução factível para o país sem o prévio enfrentamento da questão agrária.

Turbulentos e sensíveis temas nacionais polvilhavam o noticiário naquele início de 1980, não menos do que hoje.

O carismático cardeal dom Paulo Arns, com intensa introjeção naquelas pautas nacionais, não se furtava, contudo, de também cuidar da Fundação São Paulo e da condução doutrinária da PUC de São Paulo, pontifical universidade que vinha igualmente engajada, a confrontar as asperezas do regime político autoritário que, três anos antes, protagonizara uma brutal invasão de seu principal campus.

O empolgado calor não surpreendia, sobretudo porque ainda corria o verão. Mas eu suava mais que o esperável ao tomar a descida principal da universidade. Ia ansioso. Afinal, seria o primeiro dia de aula no bacharelado de Direito - pelo menos para mim, que havia faltado um punhado dos dias iniciais do calendário acadêmico, por conta do temor que o trote me infligia.

Na minha estreia particular, a despeito do nervosismo, um inesperado otimismo me contagiara de modo especial. Tinha a sensação de colocar os pés num pedacinho da história e de receber um certificado de admissão no mundo adulto.

Não foi difícil encontrar a relação de turmas, afixada nos quadros de avisos das festejadas rampas onde a vida estudantil era pulsante (quem por lá andou sabe a que me refiro).

Veio o susto. Aturdido, encontrei vazia a sala designada para minha turma. O incômodo logo se dissipou com a aparição de outros estudantes que me explicaram o ocorrido. Um certo professor de Direito Civil reunira várias turmas para uma aula conjunta que ministraria no auditório ali do prédio novo mesmo. E lá fui eu.

Havia, acho, mais de cem alunos já acomodados ou se ajeitando na plateia do auditório. Rapidamente os imitei.

Não tardou e entrou um grupo de homens engravatados. Não podiam ser senão professores. E eram.

Um deles claramente capitaneava o time. Apesar da fisionomia ainda bastante jovem, tinha cabelos já completamente brancos. Sob o bigode, igualmente cândido, reluzia um sorriso franco e incansável que chamava a atenção. Com os olhos vívidos e reluzentes, lenta e cuidadosamente ele vasculhava audiência, aos passos serenos com que se dirigia à mesa elevada do auditório.

Quando ele se sentou, sem que houvesse até ali pronunciado uma única palavra, o homem já havia conquistado cada um daqueles universitários que, isso eu me lembro bem, adotaram um sorriso natural e majoritário. Estávamos todos contagiados e inebriados - o que se operou em tão poucos segundos como eu jamais testemunharia em toda a vida. Seu nome ele então anunciou. Era Walter Ceneviva.

O mesmo Walter Ceneviva que nos acompanharia pelos cinco vindouros anos e nos faria especialmente jubilosos, no ocaso de 1984, ao aceitar o convite para ser o paraninfo da turma.

Mas voltemos a 1980.

Aquela aula inaugural teve formato e dinâmica que ainda se repetiriam ao longo dos cinco anos seguintes do curso de Direito Civil.

Eram aulas memoráveis e de um valor cujo contado ainda custaríamos algo para tomar. Sem descansar o sorriso ou desbotar os olhos, o estimado professor nos ia escalando aos pares. Cada dupla erguia-se do assento e acudia à convocação para debater um dado tema, sacado não por acaso pelo professor Ceneviva.

Às considerações e argumentos do escalado, fossem não importa quais, o par da vez deveria erguer desafio, com o propor nova interpretação, alterativa conjugação de normas, inovadora solução para a proposição discutida.

O querido mestre naturalmente aparteava com desafiadoras considerações, no discreto corrigir a direção do debate. Não raro chegava-se logo a um resultado consensual. Quando não, novas duplas entravam em cena e outras locuções eram acareadas. Mas sempre havia o final feliz, em que os discentes aportavam em uma solução satisfatória e bem fundamentada, sob a sorridente aprovação do professor.

Tudo isso - importante contar também, à conta da afetividade da memória - era feito ao microfone. Isso mesmo. Com timidez ou sem ela, ninguém falava não fosse ao microfone. "Precisa aprender a falar na latinha", advertia carinhosamente o professor Ceneviva.

E assim fomos, na sucessão dos anos, aprendendo a pensar o Direito, a falar o Direito, a ouvir o Direito, a construir o Direito. E a falar na latinha, naturalmente.

Arrisca-se deselegante, não duvido, dizer da predileção por um ou outro professor que parte tenha tomado na formação intelectual e profissional do narrador.

No caso daquela turma de formandos de 1984, todavia, o enredo é de desfecho fácil. Tivemos, sim, magníficos professores de tal ou qual disciplina. Mas o doutor Walter Ceneviva, objeto de nossa especial admiração, não concorria e jamais concorrerá nesta ou naquela categoria. Não se trata, afinal, de um professor de Direito Civil ou qualquer outra especialidade da ciência jurídica. Quando se fala em professor Ceneviva, quer-se dizer professor de Direito. Ponto. Isso. Nada mais. Direito. Em toda sua inteireza e unicidade ontológica. Com toda uma uniformidade de trato hermenêutico e epistemológico. Direito.

As trajetórias de cada um daqueles novos bacharéis, graduados no final de 1984, foram as mais variadas, qual parece natural.

De minha parte, após algum advogar, acabei ingressando na carreira do Ministério Público de São Paulo, de que me aposentei depois de mais de três décadas, para agora reassumir a advocacia. Nessas veredas foi-me cometido atuar nas mais variadas especialidades do Direito. Do tribunal do júri à vara da família. Da execução criminal ao Direito Empresarial. Do Direito Previdenciário à tutela coletiva dos consumidores. E assim por diante, não vale a pena alongar a lista.

Em toda a estrada, não importa qual a fronteira e malgrado minhas limitações - inatas e adquiridas -, a todas as incitações jurídicas pude responder, pelo menos com alguma razoabilidade, graças a lições sublimes como aquelas que nos ministrava o querido mestre Walter Ceneviva.

Nada parecesse solucionável e lá eu sacava do meu cofre os encantados métodos hermenêuticos que ele nos ensinara. Pronto. Isso só e já era possível divisar uma solvência para o embaraço jurídico proposto.

"Como será que pensaria o Ceneviva nessa sinuca?", com frequência me via a perguntar ao espelho. Isso foram lá não poucos anos. Mais de 30. Indo logo para os 40.

Nos últimos tempos não tenho tido a felicidade de me avistar amiúde com o admirado professor. Tempos apressados esses. Mas não deixo de contar a todos como ele segue, com seu sorriso franco e perene, a desfilar generosa fidalguia, tão progressiva quanto sua sabedoria.

Por conta dessas, recorrente ao pensamento me veio a gratidão, enquanto recebia o honroso e imerecido convite para escrever para esta especial edição de justo homenagear o doutor Walter Ceneviva.

Alguns temas jurídicos me ocorreram. Cheguei a rabiscar alguns parágrafos aqui e acolá. Mas nada parecia fazer sentido. A uma, porque sabia que notáveis juristas aqui escreveriam textos cuja proficiência nem imitar eu saberia. A duas - e principalmente - porque o agradecimento vinha obstinado em minhas ideias, quase proibitivo de qualquer desconversar. Fazia-se onipotente e onipresente a gratidão. Como ubíquos sempre foram os ensinamentos que tive o inapreciável privilégio de fruir sob o magistério deste incomparável jurista, professor e distribuidor de sorrisos.

Muito obrigado, querido professor Walter Ceneviva.

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tO artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

 

 

 

  

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*Paulo Sérgio Cornacchioni é advogado. Procurador de Justiça aposentado. Ex-professor assistente de Direito Civil da PUC/SP.

 

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